Há que
distingüir entre intelectual católico e católico intelectual, conforme
as personalidades sugiram ênfase no substantivo ou no adjetivo (Antônio
Carlos Villaça. O pensamento católico no Brasil. 2ª edição. Rio:
Civilização Brasileira, 2006). Entre nossos católicos intelectuais,
previamente intelectuais católicos, Antônio Carlos Villaça enumera
Jackson de Figueiredo, Alceu Amoroso Lima, Hamilton Nogueira, Joaquim
Nabuco, Júlio Maria, Felício dos Santos, Gustavo Corção, Paulo Setúbal,
Murilo Mendes, Jorge de Lima e Cornélio Pena, muitos deles deixando
documentos das respectivas metamorfoses espirituais: Joaquim Nabuco, com
Mysterium fidei, Paulo Setúbal, com Confiteor e Gustavo Corção, com A
descoberta do Outro.
Claro, não
são memórias de conversão e apostolado que faltam na obra de Alceu
Amoroso Lima, caso entre todos exemplar, passando a Tristão de Athayde
enquanto crítico literário na década de 1920, e de Tristão de Athayde de
volta a Alceu Amoroso Lima com a conversão de 1928. Nas palavras de
Villaça, “entre 1938 e 1947, Alceu abandona o seu direitismo, que se
estendera de 29 a 38, para se lançar numa perspectiva nova, condensada
nos seus artigos (...) sob o título geral de Letras e problemas
universais. Abandonara a crítica literária militante em 1945 (...) para
se dedicar, logo dois anos depois, a um apostolado ideológico, aberto e
flexível, sob a influência de Lebret, Congar, Maritain, como crítico de
idéias, ou filósofo social, não mais como simples (sic) crítico
literário”.
Aberto e
flexível? Não tanto quanto parece ou quanto fazem parecer os
lugares-comuns que sobre eles se acumularam com a força das verdades
aceitas. Ocorre que ele automaticamente se transformara de intelectual
católico (por educação e tradição de família) em católico intelectual,
com a inevitável intolerância inseparável dos convertidos. Social,
política e intelectualmente os preceitos religiosos passaram a
conformar-lhe os julgamentos de valor. Sabe-se da ativa militância que
exerceu sobre os constituintes de 1934, ao ponto de comunicar a um amigo
que fizera incluir na nova Constituição todos os preceitos recomendados
pela Igreja. Mesmo em matéria estritamente literária tais parâmetros
condicionavam-lhe as decisões, votando, por exemplo, contra o livro de
Cecília Meireles no rumoso prêmio da Academia porque ela, àquela altura,
mantinha uma coluna jornalística em favor da Escola Nova, oficialmente
condenada pelas autoridades católicas, ou, ainda, no episódio lembrado
por ANtônio Carlos Villaça: “Tristão de Athayde me contava que, em 1955,
vetou o romance O valete de espadas (de Gerardo Mello Mourão, ele
saberia depois), na comissão julgadora do prêmio de romance do Diário de
Notícias. Votou contra. Pensou que o livro fosse escrito por um monge
apóstata e o considerou demoníaco. ‘É um romance demoníaco. Foi feito
por um défroque’”. (Antônio Carlos Villaça. O livro dos fragmentos. Rio:
Civilização Brasileira, 2005).
Muito
semelhante, em substância, ao que Agripino Grieco escreveu sobre Alceu
Amoroso Lima na década de 1930, é impiedoso e em grande parte
irrefutável o julgamento de Antônio Carlos Villaça: “Alceu era um
comentarista inteligente e requintado. Não tinha, porém, o vigor de
pensamento, vocação de filósofo. Não pensava. Jamais pensou com sua
própria cabeça. (...) Assusta-se com a perspectiva de largar as amarras,
correr o risco da aventura (...). Repete, copia, cita, comenta. Mas não
alça vôo com seu próprio. Faltava-lhe vocação especulativa ... a
capacidade de reelaborar, dissecar os esquemas alheios ... Alceu
aceita-os, sem desarmá-los ... Sua inteligência aceita com facilidade,
compraz-se com fórmulas, esquemas, diagramas. Schmidt gostava de me
dizer que o Alceu é uma inteligência diagramática ... O esquema alheio,
assimilado rapidamente e facilmente por ele, salva-o de si próprio, dos
abismos de inquietação, angústia, desespero, que ele esconde e sua letra
caótica, inquietíssima, revela”. (O natiz do morto. Rio: Rocco, 1975).
É possível
que “a grande tristeza consista em não poder ser santo”, segundo o
escritor católico citado por Villaça, mas, creio eu, o intelectual é o
contrário do santo. Em suma, como todos os convertidos, Alceu Amoroso
Lima partiu em busca de certezas e continuou a procurá-las mesmo depois
de as haver supostamente encontrado. Bem diferente foi a conversão de
Joaquim Nabuco: “Foi uma conversão mais afetiva e artística do que
racional. Mais temperamental do que dialética. Mais do coração do que da
razão. Mais do homem poético do que do homem lógico”. Ponto por ponto,
como se vê, o contrário de Alceu Amoroso Lima: “Envolveu do ceticismo,
da dúvida, para a fé católica integral, não tanto por causa da
argumentação lógica, sistemática, mas por causa do sentimento”.
Ainda nisso,
são duas conversões diferentes, s enão opostas, pois a de Alceu Amoroso
Lima resultou precisamente da argumentação lógica e sistemática,
proposta e imposta por esse espírito dominador que se chamou Jackson de
Figueiredo, temperamento reacionário, autoritário e antiliberal,
irresistível para um espírito amoldável e amolgável como o do seu
discípulo sob o martelamento da doutrinação: “Reacionário era, para
Jackson, o antiliberal. O que detestava, o que pretendia combater era a
democracia liberal, vinda de Rousseau e da Revolução Francesa. O que
amava era a ordem, a autoridade, a estabilidade (...). A sua reação pode
resumir-se numa palavra: a reação de ordem contra o revolucionarismo
latente”. Latente e cada vez mais deliberado desde 1917, no Brasil e no
mundo e que, já na década de 1920, preparava a Revolução de 1930, contra
a qual, desnecessário lembrá-lo, amoroso Lima se posicionou, assim como,
logo depois, acolheria o integralismo como promessa de salvação dos
princípios católicos.
Villaça data
de 1932 a sua ruptura com a “burguesia”, palavra de código, àquela
altura, tanto para a Direita quanto para a Esquerda, até à guinada final
que o levaria, nos seus últimos anos, a queimar o que havia adorado e a
adorar o que havia queimado. É uma história de conversões que, na
realidade, contradizem as verdades que, em cada momento, afirmava haver
conquistado e que expressamente reivindicava como Verdade absoluta e
evidente por si mesma.