Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Biblioteca Cururu

 

Livro de graça para todo mundo?

Pode crer, é real!

 

 

 

                                                                                   Soares Feitosa

 

 

Sempre fui um bibliófilo, não no sentido de aprisionar o livro, fazendo-o objeto de um culto pessoal e avareza; mas de gostar de livros, de ler livros, de manuseá-los e, sobretudo, passá-los adiante. Comentar um livro com quem também o leu? Um raro prazer!

Outro dia, a escritora Eleuda Carvalho passou ligeira no meu modesto escritório. Começamos a escarafunchar o «Pedra do Reino». Ela simplesmente sabe tudo desse livro estupendo. Conversamos a tarde toda, que assuntou não faltou. O meu exemplar, de muitos anos, da 1ª edição, já rodou em muitas mãos, dez, vinte, seis lá quantas. Vou mandar encaderná-lo, não para que fique bonito e vistoso, prisioneiro numa estante de luxo, mas a emprestá-lo muitas mais vezes. [Desconfio que a magna justificação para qualquer obra escrita é o prazer de discuti-la com outro leitor.]

Livro, um objeto de usar, emprestar, dar, perder, ganhar, levar, reencontrar — este o meu entendimento.

Tenho o maior prazer em emprestar livros. Recebê-los de volta? Nem tanto! Um dia, na Cidade da Bahia, quase arranjei um inimigo. Um colega meu da Receita Federal, veio-me devolver o Lanterna de Popa, de Roberto Campos. Objetei que me sentia ofendido com aquela devolução, que livros não se devolvem. Pois o amigo danou-se. Disse-lhe que me "emprestasse" outro livro. Com isto, "empréstimo" de cá, "empréstimo" de lá, a amizade ficou preservada. Nem lembro que livro ele me "emprestou", que já devo tê-lo passado adiante. Depois recomprei o Lanterna, a ler as anotações sobre o mestre Manoel de Barros, conterrâneo e companheiro de juventude de Roberto Campos, desde o Pantanal à cidade do Rio de Janeiro.

Detesto estantes, sobretudo as fechadas, arrumadas. Livros, melhor des'petrechados, pé com cabeça, a gente catando, escolhendo, levando e passando avante.

Por isto mesmo, nunca tive uma biblioteca no sentido clássico da palavra. Aliás, detesto-as! O filósofo Oscar D'Alva de Souza Filho ficou muito assombrado quando lhe contei as idéias da Cururu. Disse-me:

— Veja Feitosa, aqui, algumas centenas de livros "aprisionados"!

Ele ajudou-me e levá-los até a mala do carro. Contou-me de um intelectual do trecho, sapientíssimo, que se propôs a formar uma biblioteca de 100.000 volumes, já tendo entesoirando sessenta e tantos mil, que não empresta, não dá, nem vende. No meu modesto entendimento, aquele "sábio" apenas seqüestra o conhecimento, retirando de circulação os exatos sessenta e tantos mil volumes que, soltos, estariam por aí lorotando, divertindo, ensinando, rodando.

Acho que o governo (?) devia contratar engenheiros para colocar rodinhas em livros, tal qual as malas modernas.

— Malas modernas?

Isto mesmo, meu caro jovem. As malas de uns 40 anos passados não tinham rodinhas. Contratava-se um carreteiro, um "chapeado" para carregá-la da estação do trem até o Hotel Bahia (Rua Senador Pompeu, naquele tempo). Nunca tive o menor sobrosso de colocar a minha velha mala na cabeça deste eu-mesmo, poupando assim os trocados para o pão-doce com caldo de cana. Pois bem, rodinhas nos livros, também um mecanismo de alarme, coisa assim, o bicho a disparar um berreiro de acordar os vizinhos: «Quero ser lido, meu senhor! Me solte!»

De fato, a que serve uma estante de livros?

De que valia os sessenta e tantos mil volumes do sábio-ilustríssimo-doutor-daqui? Um fenômeno local? De forma alguma! Ter livros, muitos livros, sempre foi sinal de status, instrumento de dominação. Não colocarei o nome dele aqui, de pura vergonha, de coisa que ele, inversamente, orgulho dele, propaga. Consta que toda vez que consegue fechar uma casa redonda, 50.000, 55.000, 65.000 volumes, dá uma grande festa; os livros ali, imponentes, trancafiados, doidos para caírem no festejo, mas quem disse, o doutor não os empresta nem os dá a ninguém. Claro que não irei. Ainda que convidado, que nunca fui.

Os poetas Dimas Macedo e Floriano Martins são grandes cururuzistas, sempre enriquecendo as expedições da Cururu. Contudo, a coisa não é fácil: amigos outros contam-me de pesadelos, a perder dedos, mãos, pés, orelhas - os livros! - para a Cururu, ainda que só em sonhos.

Você, meu caro leitor, tem todo o direito de indagar:

— Qual o meio termo? Livro nenhum casa? Onde, pois, os livros?

Bom, o razoável, dois pontos, com todo respeito a quem pense em contrário. Em primeiro ponto, bibliotecas públicas de alto gabarito e salários justos, com o objetivo de divulgação, sobretudo empréstimos; com o objetivo de conservação, um exemplar mínimo a salvo, cópia digital na rede mundial de computadores, em aberto, a depender dos direitos autorias, ou sob senha, no caso de impedimento.

Em segundo ponto, uma biblioteca mínima, em casa, dos livros rodantes, prontos para serem lidos, relidos, consultados. No meu caso em particular, são exatos 800 livros. Oitocentos? Não houve motivo outro senão o espaço disponível do apartamento.

Toda semana compro livros, toda semana ganho livros. Substituo-os, de modo que o número 800 se mantenha mais ou menos uniforme. O excedente? Para a Cururu, é claro! Conto-lhe agora como surgiu a idéia da tal Biblioteca Cururu e como a coisa funciona. Foi assim:

Um belo dia, vi-me em aflições. Como editor de poesia (deste Jornal de Poesia), recebo muito livros. Fazer o que com eles? Amontoavam-se. Tive que alugar uma sala vizinha ao meu escritório, comprar várias estantes, a arrumá-los. E lá estavam, muitos, alguns milhares, com a cara para cima, doidos por um leitor.

Apareceram por lá os jovens poetas Diego Vinhas e Rodrigo Marques. Dei-lhes a chave da sala. Aliás, mandei fazer duplicata da chave para eles. Ficavam por lá, lendo, revirando, arrumando. Vinham para o café e alegria do convívio, em cima, que o escritório é em cima. Levavam braçadas e mais braçadas, que traziam de volta e pegavam outras.

Um dia, conversávamos, no café costumeiro, os dois jovens poetas e eu. Saiu da conversa a historinha que aqui está: Dos Sapos e dos Livros, Três Pequenos Enigmas. Rodrigo Marques leu, gostou, comentou e disse mais coisas, mais uma historinha. Foi assim que surgiu a idéia das Edições Cururu.

Continuava eu incomodado com aquele monte de livros tomando espaço, tempo para arrumá-los e aluguel ($$$) e condomínio ao proprietário da sala. Foi assim que surgiu a idéia da Biblioteca Cururu. Ela existe! Livros de graça, pode crer!

Já fizemos três expedições. Apronta-se uma quarta expedição para antes do fim do ano. O local? Acho uma boa a Faculdade Medicina ou Engenharia. Botar os técnicos para ler poesia! As outras expedições, de grande proveito: Faculdade Letras da UFC. Uma beleza! Mais de de três mil livros distribuídos. Gratuitos! Os alunos assombrados. Nos links, relato e fotos. Em suma, compadre Cururu tem rendido! É só clicar:

 

Clique para ampliar.

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

A bibliotecária ideal, segundo o grande amigo

Edson Alves Damasceno,

um juramentado cururuzista:

a jovem que está recostada, saia vermelha, à colunata.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Paul Delaroche, França, 1797-1856, Hemiciclo da Escola de Belas-Artes 

Quer comentar?
Escreva para o editor