Continuação
14. Carlos Willian Leite
- E Paulo Coelho é literatura?
SF:
Poeta, o século XX foi o século do desespero,
oriundo da desesperança dos
Baudelaires
e dos rimbauds, agravada pelo
desencanto
nietzschiano
para quem legítimo só o super-homem. Ah,
meu caro Willian, o que fazer com essa escumalha, judeus, nordestinos,
palestinos; com esta nossa mestiçaria, os mal-amados, os baixotes e feiosos como este seu
amigo aqui, barrigudo e de cabelo pixaim?! Sim, isto mesmo, o
que seria de nós? E, por seu favor, você, goiano (Brasil?!), não se considere fora
da lista dos enjeitados. Ante tamanho horror, imperioso surgissem
“esperanças”, ainda que todas falsas: nazismo, comunismo, fascismo,
integralismo e mais uma centena de outros ismos, inclusive
o concretismo. O século XX assistiu, como nenhum outro, à derrocada
das certezas científicas. Espie num avião, um bichão daquele
tamanho, avoando igual a um passarim – quem acreditaria? Einstein
e outros monstros do saber puseram abaixo todas as certezas.
A complicar, ainda aparece um certo "Vintém-não-sei-o-quê" e diz que a
filosofia seria apenas uma patologia da linguagem (Ludwig Wittgenstein). E Freud, tanto pior, a garantir que
os meninos, ainda na barriga da mãe, estão todo o tempo a imaginar
safadezas para tomá-la, mãe, do pai, matando-o. Tanta confusão
e incertezas, muitos caíram em descrença, como quem passa um
apagador na lousa. Crucial surgissem as crenças,
muitas, de reposição, uma atrás da outra, Duchamps e penicos. Apareceu
até um “profeta”, doido como todos os profetas, um certo Jim Jones,
um norte-americano que provocou um suicídio coletivo de centenas
de pessoas aqui na América do Sul, na Guiana. Mas, saciadas
as novidades, adveio a certeza de que era tudo fraude, Stalins,
penicos, Hitlers, Picassos, Fidéis, latas de sopa, Pol-Pots,
Pinochets, os generais daqui e os de lá. Um grande vazio tomou
conta do mundo no final do século XX. Dois gênios surgiram a
preencher o caos: Paulo Coelho escrevendo, e sua
reverendíssima, o bispo Edir Macedo, pregando. Tenho que tirar o
chapéu, mas nem uso chapéu algum: gênios, ambos! Com direito ao
Nobel, digamos um Nobel da Paz. Por que não, também o de Medicina?
A cura! Sim, meu caro poeta, você não imagina o bem interior
que a leitura do escritor e a mensagem do bispo a quem
passou a vida acreditando num ideal subitamente morto. Prozac?
Melhor ouvir sua reverendíssima! Apavorações com o giro do mundo? Melhor
peregrinar com o mago e chorar bem sentadinho à margem do
Rio Piedra! Veja, poeta, o Roberto Freire, político do Recife,
um cara para além de sério, corretíssimo, inatacável como
homem público, passou a vida toda pregando o comunismo como
o maior bem do mundo. Num segundo, o comunismo desaba. Fazer
o quê? Ler o Paulo Coelho! Nem sei se ele o lê, e se não lê,
não sabe o que está perdendo. Há mais um, o monge Boff. Puxaram-lhe,
de uma hora para outra, o tapete. O que fez o frei? É um
novo Paulo Coelho, menos místico é certo, do mesmo saco porém,
farinha fina, escrevendo sobre galinhas e águias, ele, é claro,
a águia; nós, as galinhas. O Gates exporta tecnologia?!
Pois nós exportamos esperanças, galinhas e novelas.
O resto é apenas inveja dos cifrões do mago e dos milhões
de sua reverendíssima. Lanço a idéia de o Banco Central premiá-los
urgente. São milhões de dólares que o Brasil
carreia por conta dessa dupla, Edir e Paulo. Agora,
se o Coelho vai continuar a ser lido quando essa fase de "desconsolo"
passar, eu não sei não. Aliás, sei. Lá em casa [casa de minha
mãe], havia um livro de um certo Orizon Swift Made. Nunca mais
soube dele. Era do ramo "conselhos". Nem daquele outro, das amizades e
influências — também "conselhos" —, simpaticíssimo, Dale Carnegie.
Muito menos de Humberto de Campos. Nem do Laranja Lima.
Tenho que literatura não é "conselho", mas a abordagem do
humano, lá dentro, faca bem afiada cortando tão fino que
a gente nem o percebe. Literatura? Coisa naturalmente muito fácil de fazer...
desde quê. "Desde que o quê"? Pergunte a Dostoievsky.
15. Chico Perna
- PSI, a penúltima - com quantos mandacarus se faz um candelabro?
SF:
Veja, o poema funda-se todo numa notícia de jornal, o Diário
do Nordeste, uns cinqüenta, cem mil exemplares, não faço idéia
quanta gente leu, mas um só escreveu. Os demais, desconfio, passaram
batidos àquela notícia. Em suma, há de ter todos os mandacarus
do mundo para fazer um Psi-candelabro; há de ter mandacaru
nenhum para fazer um Psi-candelabro. O Menino nunca andou
em Paulo Afonso, mas ele a descreve com força tal que você, quando
se dá conta, já está lá dentro. A várzea dos touros e garças,
na tarde rubra do Velho Chico, meu caro Chico! Tudo resume-se,
parece, ao sinistro “desde que”, tal como naquela maldita história
dos talentos, do Cristo, vide Mateus, «A quem já tem,
tudo se lhe será dado; e de quem não tem, tomar-se-lhe-á o que
não tem». O Menino, tinha-os todos! O resto é Bilac
e Haroldo de Campos falando mal dele.
16. Carlos Willian Leite
- Qual o grande poema brasileiro?
SF:
O Navio, de Antonio Frederico Castro Alves. Ninguém lhe foi
maior. É o gênio da língua. Outra expressão grandiosa, Cruz
e Souza, pena que não se tenha assumido da negritude. Ninguém
escreveu mais branco, parecia um concurso de sabão em pó a disputar
a brancura de um tanque de roupas. Contudo, ainda que branquelo,
o gênio sopra em Cruz e Souza. Um registro em prol de Augusto
dos Anjos, embora eu lhe desgoste o lado triste, lúgubre e
crepuscular. Nem sei com que coragem me atrevo a expressar
uma opinião destas. Outro dia, a Folha de São Paulo correu uma enquete entre
os poetas brasileiros. Os meus, acima, levaram chumbo. Elegeram
Sousândrade. Com todo respeito, nunca consigo passar do primeiro
verso desse maranhense ilustre. Não estou nem aí! Gosto porque
gosto, não porque tenha ouvido dizer que a senhorita Bíundinchen
gostasse, que aliás, nada ouvi. Uma moça muito distinta, essa
Bíundinchen. Dia destes,
a sandália despregou-se-lhe em pleno desfile. Ela continuou
desfilando, com a alpercata pra lá e pra cá, pendurada no mocotó,
como se nada tivesse acontecido. Impávida “colossa”!, meu caro
poeta, com todo respeito! Aquilo é que é classe!
Poema em estado puro! O resto é barraco. E palavrão.
17. Carlos Willian Leite
- E o grande poeta?
SF:
Antônio Frederico Castro Alves, ainda que sob a maledicência
de Bilac, no passado, e de Haroldo de Campos bem recente.
Castro Alves é o POETA. Outro dia, fui ver a tradução da Ilíada,
de Haroldo de Campos, que o Deus o tenha em Sua "gulória".
Pois lá estava, na última estrofe, a mais bela de todo o poema,
quando Homero canta em onda alta o final de Heitor. Haroldo
seguiu as pegadas da péssima tradução de Odorico Mendes, que
apelida Heitor de “doma-corcéis”, expressão que não existe no
falar brasileiro. Aqui, Brasil, meu caro poeta Carlos Willian,
você que é quase pantaneiro, sabe que a maior patente do sertanejo
é a de «domador de cavalos». Assim mesmo, a expressão forte,
do coração para cima: domador de cavalos!
Esta outra, “doma-corcéis”?! Por Zeus! Evidente que o compêndio
da tradução, de rica expressão gráfica, do doutor Haroldo retornou à prateleira feito um
relâmpago. Se você está pensando em me presentear com um exemplar,
mande, por seu favor, uma manta de carne de sol com duas garrafas
de manteiga da terra. Sal, fogo e azeite — precisa mandar não,
dou jeito por
cá. Voltemos a Castro alves. No Navio há uma mágica ligação do
Menino com a Quinta, d’ELE, via Beethoven.
Muita gente desavisada pronuncia “Estã...”, quando o correto
é iniciar o poema, pode contar as sílabas, com “Tã...!” Agora,
por favor, tente pronunciar o “tã”, nada a ver com a empresa
de aviação. Veja, a língua vai-se postar no palato, à raiz dos
incisivos, para se explodir, mantra universal,
Tã...! É d’ELE...! A do Destino, também conhecida
como Quinta, Tã-tã-tã-tãann!
Direto d’ELE para as oiças surdas daquele surdo muito doido.
Quem copiou quem? Ninguém! Quinta e Navio,
ELE que entregou-os, gratuitos, sem intermediários, com Suas
próprias mãos, ao surdo, ao Menino. No Navio,
há mais, muito mais, veja isto: «Auriverde pendão de minha
terra/ que a brisa do Brasil beija e balança...» Pergunto, a terra,
quantas são as terras em Castro Alves? Em primeiro, a terra
do Menino, um solo utópico, Geo, Gaia, auriverde
de riquezas e esperanças, com todos esses nomes bonitos que
ecologistas saíram a inventar; mas há esta outra, nada utópica,
a do Brasil, aqui, debaixo dos nossos pés, uma terra carrasca,
madrasta, escrava, banal, cruel. Há infinitas coisas outras no
Navio. Faço um ensaiote, já disse, mostrando
as “rimas do lado de fora”, os “ascendimentos”, os “acendimentos”.
Quando aprontar, avisarei.
18. Chico Perna
- Qual é a importância da oralidade para poesia brasileira?
SF:
Brasileira? Claro que a oralidade é fundamental à poesia,
não apenas à brasileira. A escrita só veio a ser inventada
muito recentemente. No Nordeste, muitos cantadores de prestígio
não sabem ler. Alguns até sabem, mas lêem muito engraçado.
No meu tempo de menino, eu também lia assim, «pantasma», que
era como se escrevia “phantasma” na ortografia dos cordéis
antigos. Um dia, assisti a uma discussão de que «pantasma»
seria um bicho muito mais perigoso que fantasma. Chamado
a opinar, desempatei pró-pantasma, meu caro Chico, um bicho
muito mais terrível. Poesia visual tem oralidade? Claro que não.
Apenas um pantasma, perdoem-me os concretos, que já não assombra nem
um pouco. mas ainda faz muito barulho. Parece que só no Brasil.
Poeta Francisco, naquela minha caminhada silenciosa de cinqüenta
anos, houve um momento que, de tão desesperado com os concretos, me segurei nos cantadores, precisamente
no grande Orlando Tejo, com o seu magnífico Zé Limeira, O Poeta
do Absurdo. Ali eu tive a certeza de que a Arte não morrera. Escreviam
os incautos que a poesia estava morta. Não! Não estava. Nunca
esteve. Nem morrerá. Eles, sim, cum Christo!
19. Carlos Willian Leite
– O Rodrigo Petrônio disse em entrevista publicada no Jornal
de Poesia que o Paulo Leminski era um lúdico barato e que
o Chico Alvim era um Jeca Tatu inventado pela Folha de São
Paulo, concorda com ele?
SF:
Devem ser! Nunca me pari de amores por aquele Leminski. Aforismos
de frases curtas, o dedo em riste. Prefiro ler o Livro das
Lamentações, Provérbios, Eclesiástico, Eclesiastes ou o doido
Jeremias e sua jumenta esturrando ao cio das primeiras chuvas,
no deserto. Contudo, a convivência obriga-me ao respeito. Há
quem goste. Por que ofendê-los? Viva o poeta Leminski! [Viva
Bilac! Viva o poeta Haroldo Campos!] O outro, Alvim, já escrevi
para ele diversas vezes, nunca me respondeu sequer convite enterro.
Não pode prestar! Perdão, pode sim! Ele é amigo da Maria Maia, de Brasília,
gente minhíssima e grande poeta. Pelos santos, e não são poucos,
inclusos São Francisco do Canindé e Santa Maria Maia, vivo
beijando
e abraçando urtigas, cansanções e cururus. Quem sabe,
esse Alvim seja dos bons. Cururu coisa nenhuma! Deve ser dos
melhores. Aliás, dos ótimos! Claro que é! Viva a poeta Maria
Maia! Viva o Alvim! Nunca li nada dele. Um amigo me disse que
um poema dele é assim, só isto, nem uma letra a mais:
Mas
é limpinha.
Poema? Deve haver um engano. Do meu amigo, é
claro. Se o Alvim aparecer aqui farei festa, festa
grande. É de lei. Se você vai fazer uma festa, que a festa seja decente.
Sou do sertão, já disse! O Rodrigo Petrônio? É um cara de altíssimo
valor! É jovem. Aposto um monte de fichas nesse Petrônio.
Garanto-lhe festa. Das grandes!
20. João Aquino:
Você só começou a escrever na maturidade. Para referência
aos seus milhares de admiradores no Brasil inteiro, quem você
nomearia, individualmente, como seu herdeiro poético?
SF:
Veja, meu caro poeta Aquino, os poetas são duas famílias:
os crespusculares, do triste e do soturno; e os aurorais,
alienados certamente, loucos que andam achando graça sem ver
de quê. Acho que não há meio termo. Mais de 90% dos poetas,
dos melhores poetas, são do triste e do sortuno. «Minha alma
é triste» — já estou ouvindo alguém recitar. O Menino, assim
o chamo carinhosamente, é auroral. E Pessoa, quando travestido
de Álvaro de Campos, e Whitman, e Jó. Como negar que Jó é um
super-poema dos mais belos que o engenho humano já produziu?
Os aurorais estão em franca desvantagem numérica. Por isto
é que é tão fácil falar mal do Menino. Outro dia, um escritor até
muito bom nos ensaios, Flávio Kothe, desceu a ripa no Menino, que
seria plagiário de Heine. Nada, absolutamente nada a ver! Pois
bem, recebi recente um livro belíssimo, do Mayrant Gallo, da
Cidade Bahia, muito bom poeta, famoso em todo o trecho. Vejamos,
pois, este belo poema de Mayrant:
CEDO
O rapaz que entrega jornais
é o primeiro a se levantar
mas você não sabe.
Noite ainda, sol ou chuva.
É o primeiro e de moto percorre
toda a cidade.
Enquanto você dorme,
enquanto você morre.
O poema faz o maior sucesso! Ilustra a 4ª capa do livro de
Mayrant, um livro muito bonito. A revista Iararana, do meu amigo
Aleilton Fonseca, um grande poeta, publicou-o com destaque.
Merececidamente. Parabéns, meu caro Mayrant! Quando o li, disse
aos meus botões: Que bom, o entregador de jornais agora tem
moto! No meu tempo, entregava-os a pé! Pois enquanto o Mayrant
vê só-desgostos ao jornaleiro, vejo-lhe a vitória de uma moto,
pra cima e pra baixo: vruuummm...! Certamente,
o Mayrant não quer que eu vá, nem ele vai por mim, bem cedo,
pegar o jornal lá na redação, a muitos quilômetros daqui de
casa, ainda que manhã bem calma, tanto pior se for chovendo ou
fazendo sol, ou no “casamento da raposa”, que é sol-com-chuva ou
chuva-com-sol, tanto faz. Ele diz que eu (leitor) não sei que
o rapaz da moto, desde muito cedo, está no trabalho enquanto
eu durmo. Claro que sei, meu caro poeta Mayrant. São as tarefas
do humano, as tarefas da noite, as tarefas do dia. Os animais
não se revezam em turnos, só o Homem. As galinhas, todas de uma
vez, mal escurece na fazenda, caem no sono. Os galos, todos os
galos do mundo, acordam o dia na hora exata, vide
Tecendo a
Manhã, belíssimo, de João Cabral, e
Rio
Macacos, do filho de
véia minha mãe. A prevalecer a reclamação do poeta Mayrant, os
hospitais não atenderão à noite, nem os padeiros aprontarão o
pão da manhã. Sequer teremos jornais matutinos, da madrugada,
manhã. Evidente que, depois da tarefa noturna, quem as faz de
noite, tem que dormir de dia. No meu tempo de jovem, 18 anos,
tomei conta de uma redação de um pasquim local, da política,
varando a noite inteira. De manhã bem cedo, numa hospedaria muito
modesta da Rua General Sampaio, o Hotel Brasília, jogava este
corpo aqui em cima de uma cama, a dormir feito um gambá. Aliás,
nem sei se gambá é bicho bom de sono. Sei que é muito bom de
catinga, assim eu, que as águas eram poucas e os banhos escassos.
Não sei se a catinga do redator é que levou o político ao insucesso, um certo
Pequim, boa gente, mas levou chumbo, chumbo grosso.
Se o candidato tivesse ganho, ainda hoje estaria eu mourejando
na prefeitura, ou, quem sabe, na política, seria um senador,
um presidente da Câmara ou do Senado. Ora, ora! Também sou nordestino,
igual ao Renan e ao bravo Severino. Pois quando acordava, ainda
morto de sono, era levantar feito um gato, almoçar bem ligeiro,
pegar um monte de livros, metê-los debaixo do braço a sovaqueá-los
até dizer chega, livros, que nada nos cai gratuito dos céus,
e a gente aprende mesmo é pelos sovacos, nem que seja ao rigor das muletas, a Srª.
Dona Vida, de professora. Meu caro poeta Mayrant, não consinta
que esse cabra do seu poema falte ao serviço, a me deixar sem
jornal. Ligarei reclamando meu exemplar, inclusive para você.
No segundo dia, se o dorminhoco repetir a proeza, cancelarei
a assinatura e me mudarei para a concorrência. Se o entregador do jornal concorrente
também for "descansado", terei a certeza de que a praça comporta
um jornal de gente ligeira, com sangue no olho, dormindo na
hora que é para dormir, acordando na hora que é para acordar.
De moto, poeta Maytant, eu, entregando os jornais: vruuummm!
E, durante as entregas,
entre um jornal e outro, passarei na porta dela (vide
sanfoneiro Dominguinhos, com o som à toda altura), detonando os
escapes, pruuuunnnmmmn! — que era assim que os pleibóis
do meu tempo faziam, eu liso, um pé-rapado, só olhando, de pés.
Veja, meu caro poeta Aquino, o Mayrant encerra o poema afirmando
que eu (leitor) estou morrendo. Qual é o mal de estar a morrer?
Morrer também é bom, meu caro Mayrant, vide
Estudos &
Catálogos – Mãos:
Ah, meu caro Vergilius – Nunes Maia ou Publius
Maro, tanto faz –, a legitimidade do nosso canto é tão-só a
sustentar o júbilo. Se cantamos a vida, cantemo-la como a não-morte;
se cantamos a morte, que seja um psalmo de ressurreições.
Poeta Virgílio, creia-me, o catálogo das mãos é inesgotável
porque as mãos dos novos hão de garantir as nossas mãos. Por
sobre, sempre por sobre; assim tem sido. |
Poeta
João Aquino, o
poema de Mayrant é perfeito, afinal verbera contra a “injustiça”
de alguns dormirem enquanto outros trabalham. Atende perfeitamente
ao plano utópico, do Paraíso, é claro. Nem sei se por lá os
anjos dormem ou passam dia e noite cantando benditos. Muito
menos se há motocicleta ou "doma-corcéis" por lá. Por Zeus, se tiver
“doma-corcéis”, dispenso minha vaga. Ah, ia esquecendo, meu caro
poeta Aquino, o termo médio que você referiu na pergunta,
percebo agora que ele existe. Tomemos este exemplo em Álvaro
de Campos, Tabacaria,
que, para mim é pior poema de Álvaro Campos, mas é o que mais
agrada ao soturno geral, a crepuscular clientela da poesia,
poetas e leitores. Tabacaria começa com maldições do tipo «não
valho nada, não sou ninguém», um tom de ressentimentos e tristeza,
mas no final... Ah, meu caro poeta João Aquino, no final a
aurora escancara-se, explodindo-se de pura Aurora: Esteves,
o da Tabacaria, ele sorriu. É o gênio de Pessoa: a tristeza
absoluta... uma luz bem fininha (suficiente, porém) no sorriso
de Esteves — auroral!
21. Carlos Willian Leite
- Se o que sobra da literatura é a literatice, o que sobra
dos Blogs de poesia, é bloguice?
SF:
Sou a favor dos blogs. Um crítico local, Manoel Ricardo de
Lima, escreveu que o poeta Adriano Espíndola era ótimo porque
publicava no Rio de Janeiro. Adriano é excelente poeta e amigo
meu, mas nada a ver com o local em que editou seus livros.
Indaguei ao crítico local onde o livro de Jó e o livro de J
(o supremo poema da fundação do Gênesis!) foram publicados.
O blog serve para romper esse círculo perverso em que o autor
não tem, até mesmo pela distância geográfica, acesso aos jornais
da corte. O poeta cria o dele, blog, divulga-o para os amigos.
E nada mais fácil que fazer uma mala-email. O problema é que
não há tempo para ler tanta coisa. Sou a favor dos blogs. Inteiramente
a favor. Abaixo os colonizados, lobotomizados, que só vêem
o bem, o bom e belo se for de fora, das estranjas, no mínimo
da corte, Rio e São Paulo, uma indigência em todos os sentidos.
22. Carlos Willian Leite
- Existem as gerações de 70, 80, e 90, mas, mesmo já estando
na metade da década, ainda não existe a geração de 2000. Há
uma crise criativa na poesia brasileira atual ou isso é culpa
da Internet que nivelou todo mundo?
SF:
Franca palhaçada, isto de gerações. Não as creio. De que geração
é o cantador Chico Pires, um bardo nordestino nascido na Inglaterra?
E Cervantes? E Castro Alves? Gerações? Um tema muito ameno
ao Pedro Lyra, meu amigo, que fez uma antologia com os amigos
dele, naturalmente. Comigo não que ainda não era amigo. Botou
alguns até já ultrapassados de idade na suposta geração escolhida,
mas assim é que se faz: amigos! Acho uma bobagem isto de saírem
por aí enfiando grilo em cordão, os taxonomistas, tudo gente
do op-cit: você é preto, você é judeu,
você é palestino, você é nordestino, classificações que nada
têm a ver com a face do Homem, o espelho de Deus, à Sua imagem
e semelhança. E cá para nós, "classificações"
que nada têm a ver com o DNA, todos iguais, nós, desde a mais
escurecida savana africana até o mais louro dos viquingues.
Geração do poeta? Ora, ora! O poeta, se Poeta for, não tem geração, posto
que gerado de dentro da terra, desde os tempos, gerando o seu
próprio tempo, continuando-o, mãos sobre mãos, nesta ciranda
mágica, o Conhecimento, o Homem, a partir do dia em que descemos
das árvores, até o dia em que este planeta glorioso submergir
nas trevas da entropia. Pergunte a Dante.
23. Carlos Willian Leite
– Poeta, na pergunta nº 3, "Em qual Igreja o senhor
reza?", quis dizer literariamente. Aqui em Goiânia está cheio
de igrejas literárias. Qual a sua?
SF:
Poeta, desculpe-me ter metido os pés pelas mãos. Aqui, Ceará,
não freqüento igrejas, nem de clérigos, nem de poetas. Saio
muito pouco de casa ou do escritório e não vou a nenhum lugar
sem ter sido enfática e insistentemente convidado. Entrar de
"penetra"?! Nem no céu! Pois bem, no meu tempo de Bahia, 1994-1998,
um tempo bom, anote aí, por seu favor, estes nomes: Maria da
Conceição Paranhos, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Gerana Damulakis,
Hélio Pólvora, Carlos Cunha, João Augusto Sampaio, Aleilton Fonseca, Ruy Espinheira,
Ildásio Tavares, Aramis Costa, Florisvaldo Matos e mais uns
três ou quatro gatos pingados — estes os meus na
Cidade da Bahia. Freqüentávamo-nos. Vieram-me depois,
lá, o Inácio Melo, a jovem poeta Vanessa Buffone e o Cancão de Fogo,
meu amigo Miguel Carneiro. Em Pernambuco, meu convívio de poesia
foi praticamente nenhum. Era açougueiro e auditor, ambientes
em que a poesia pouco circula. Mas havia bons nomes dentre os
meus colegas de repartição: Diná Gasparini, Manoel Ambrósio de Queiroz Neto,
Lourival Francisco de Souza, Pedro Nunes Filho, Joel Marques
da Silva e Suely Annunciato. Dentre os poetas estabelecidos,
resumi-me a César Leal, Francisco Brennand, Weydson Barros
Leal e Sébastien Joachim. Disse "resumi-me" porque só vim a
conhecê-los, no Recife, quando já estava transferido para Salvador.
Anote mais, por favor, do Recife: Majela Colares e Cláudio Aguiar.
Deve estar faltando nomes, que véio é véio. Para que, meu Deus,
fui-me meter a citar nomes?! Anteriormente a 1993, não freqüentava
nenhum ambiente de poesia, nem tinha livros de poetas modernos
em casa. Aqui no Ceará, eis os nomes: Artur Eduardo Benevides,
Francisco Carvalho, Juarez Leitão, Dimas Macedo, os irmãos
Maia, Virgílio, Luciano e Napoleão; os Rodrigos, o Marques
e o Magalhães, dois jovens poetas de grande prometimento, e
mais uns poucos que a velhice me obriga à injustiça de esquecê-los.
Ah, veja estes dois, estou mesmo caduco: José Alcides Pinto
e o Sinésio Cabral, espie só que esquecimento imperdoável Eipa,
eipa, ia esquecendo o Paulo de Tarso Pardal e o Floriano Martins,
uma bela parelha de amigos. Ah, meu Deus, que bobagem esta minha de cair
na gelada de citar nomes! Faltam: Pedro Henrique Saraiva Leão, Beatriz
Alcântara, José Telles e Ruy Câmara. Como você vê, não freqüento maus
poetas. Já no plano literário, a igreja de que me considero fiel é
esta aqui: a igreja do lampejo do inefável. Se tal templo existe,
não faço idéia. Para mim, o poema pode ser triste, perverso, maldito até,
mas há de trazer, preferencialmente bem dissimulados o acendimento
e o ascendimento. Retomemos o exemplo de há pouco,
Tabacaria, de Álvaro de Campos. Claro que é um super-poema!
Toda aquela moldura de tristeza e desespero é tão-só para
dar azo ao sorriso do Esteves. Sem aquele lampejo,
Tabacaria, para mim, não seria nada. Tomemos outro exemplo:
O Crime do Padre Amaro, de Eça. Nenhum romance foi tão
anti-clerical. Pois bem, demonstro em Salomão que, pelo contrário,
O Crime do Padre Amaro é um livro devoto, santificado,
beato e carola, dois pontos. É que em meio a toda aquela patifaria
de Amaro e do padre mestre, cercada por todos os lados por
um clero absolutamente ímpio e corrupto, surge-nos, bem apagado
mas luminescente, lá dentro dos matos, um santo, o abade Ferrão.
Num único parágrafo, Eça nos descreve o bem-dentro-do-mal,
o justo em estado puro, como se fosse um Abrãao circundado
de Gomorras, Ferrão, bom e justo, apesar do nome. Em
Primo Basílio, também de Eça, outro lampejo da mesma
estirpe: a bondade do amigo do marido traído, que jura de pés
juntos que Luísa é pura e inocente. Ora, ora! Logo quem, a trêfega
Luísa! E por aí vai. De Machado, em
Cubas, a figura do bem naquela senhora que toma conta,
honestíssima, do "refúgio" do casal. Em Capitu, o bem sem
limites no agregado José Dias, para mim a figura central do
romance. Capitus, Bentinhos, Escobares e demais patifes servem-lhe
apenas de ornato e realce. Veja, meu caro poeta Carlos Willian, recebi
recente um opúsculo artesanal do poeta Renato Suttana.
O Livro da Noite, este o título; o email do Suttana
também soturno: fantasmananoite@ig.com.br. Ele escreve,
lá pelas tantas: «Vazio, branco, imerso em sombra e perplexidade,
apenas alcanço constatá-lo, vendo que, lenta e lucidamente,
estou sendo arrastado para baixo», pág. 37. Você acha pouco?
Um novo Augusto dos Anjos no trecho? Isto vejamos, se sim,
se não; parece que sim, parece que não. Saí catando e sublinhando em cada
capítulo do livro de Suttana mínimos laivos de luminescência,
uma tarefa quase impossível. Pois não deu outra! Por mais sombria
seja a noite-Suttana, grifei: «...o
morto optou pela sabedoria, erguendo...», pág.
9; «...esse fio de perplexidade por cima de um abismo...»,
pág. 14; «...olhando para o teto..., pág. 20»;
«...a única meta é a madrugada..., pág. 23»; «...tudo
o que faço é prosseguir..., pág. 24»; «...o dia
é claro e nítido..., pág. 29». Já chega, não? Um
poeta que se garante olhando para o teto, será qualquer coisa, menos
crepuscular. Presumo que Suttana vá levar um grande susto
quando ler isto aqui. Sabe-se ele um auroral? Quem, então,
escreveu por ele em tom de auroras? [Faça um contato com o poeta, quem
sabe, ele lhe presenteie um exemplar do belo Livro da Noite!
Basta clicar na foto, ao lado.] Acaso Eça sabia-se devoto,
religioso, carola, quando demonstrou que o verdadeiro clero português
era o padre Ferrão e não aquele bando
de facínoras, espelhado
em Amaro e Padre Mestre? Sei não, sei não, meu caro poeta! Tenho
apenas isto para concluir: um mínimo risco de auroras num panelão
de escuros é o contra-ponto, como se fosse uma gota apenas de
luninescência, por mais insignificante, para pôr a perder todo
o mal. Luminescência? Isto mesmo, meu caro Willian, a luz já
estava criada anteriormente ao sol, à lua, às estrelas
— Gênesis, capítulo inicial, confira por seu favor. Luz? Que
luz seria, se não é a do sol, nem a da lua? Haveria, então, uma outra
"luz"? É incrível, mas não é o mal que corrompe o bem. Pelo
contrário, o mal sempre perdeu, sempre perde, sempre perderá,
vide Auschwitz: de lá escapamos, ainda que a milhares de quilômetros de distância;
comemoremo-lo, vivos, nós, que, afinal também morreremos. Os
pósteros hão de ser melhores do que nós. Isto mesmo, meu poeta,
melhores! Até outro
dia, ninguém se atreveria a recriminar do tiro da "autoridade" na
nuca de um ninguém-vigia de mãos postas.
Hoje, sente-se a necessidade de garantir uma pensão alimentícia em favor do
inocente, o órfão. Alimentícia, não seria um indenização apenas? A
indenização, sem dúvidas! Mas a alimentícia também! Veja, o desatinado, no
tiro, assumiu-se de pai quando o privou de pai. Pelo bem, pelo mal, agora é
"pai". Se o tribunal vai conceder, é outra história. O próximo
tribunal, ainda
que só no Século Cem de Ésquilo (vide
Salomão), há de conceder. Não é fácil, meu
poeta Carlos Willian Leite, creia-me,
descortinar o lampejo. É ele que, quanto menor e mais dissimulado,
dá o grifo, o "sublinhado", da verdadeira obra de Arte. Esteves,
o da
Tabacaria, sorriu. Passe um risco debaixo, por seu favor.
[Goiânia e Fortaleza, 5.3.2005] Publicada em inteiro teor no
jornal Opção, Goiânia, GO.
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