The Gates of Dawn, Herbert Draper, UK, 1863-1920

 

 

 

 

 

José Alcides Pinto,

 

dossiê em sua homenagem,

 

2.6.2008

 


Esta é a página de homenagem do Jornal de Poesia ao poeta José Alcides Pinto: reportagens, notícias, poemas, crônicas, o que mais for aparecendo sobre o grande JAP, a partir de seu passamento em 2 de junho de 2008. Convido-o, meu caro leitor: mande o que tiver. (Soares Feitosa, leitor e amigo do JAP)



 

 

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

 

Nelly Novaes Coelho

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

3.6.2006

Insólita e irônica despedida

Dalwton Moura

Familiares de José Alcides Pinto choraram a morte do poeta - segundo a irmã, ironicamente vitimado quando saiu de casa para postar nos correios dois livros que acabaram de sair do prelo

"Tazinha, tu vai pro lançamento, com teu vestido mais bonito." O pedido, em tom de fraternal exigência, foi feito semana passada pelo escritor José Alcides Pinto a sua irmã mais nova, a também escritora Maria da Conceição Pinto Aguiar. O lançamento em questão seria o de dois novos livros do escritor - ´Diário de Berenice´ e ´O Algodão dos Teus Seios Morenos´, volumes de poesia, ambos publicados pelo Imprece Editorial e pela Jamaica Editora, homenagem do poeta a uma de suas filhas. A apresentação das obras estava marcada para agosto. Ontem, na sala de espera da Unidade de Terapia Intensiva de um hospital em Fortaleza, Conceição chorou a impossibilidade de cumprir a promessa feita ao irmão tão querido.
 

A irmã Maria da Conceição, a Tatá: ´Ele era tão humano! Falava aquelas coisas de poeta, que a gente ia passear, viajar. E dizia que queria ser enterrado no Acaraú´ (Foto: Juliana Vasquez)


José Alcides Pinto disse adeus às 12h50 de ontem, em decorrência de politraumatismo, após ser vitimado por um acidente nas proximidades de sua casa, no último sábado. Uma fatalidade, lamentariam os parentes reunidos no hospital no início da tarde de ontem. ´Foi bem perto do Frotão, bem perto da casa dele, ali na Praça da Bandeira. Ele ia andando, e a moto atropelou. Rapaz, que velocidade! Ele fraturou a bacia, perfurou o intestino, o fígado, tudo... E teve traumatismo craniano, vários, não foi só um´, descreveu Conceição. ´No instante viram logo: ´É o escritor, o poeta!´. Ele foi reconhecido de imediato, todo mundo ajudou ali na hora´.

De acordo com a irmã, ao IJF, José Alcides ainda chegou consciente. ´Ele ainda disse alguma coisa. Reclamou da dor na região do estômago, na perna... Falou que queria ir pra casa´. Do Instituto Dr. José Frota, o escritor foi transferido ao hospital São Mateus, onde familiares acompanharam todo o processo de assistência. ´O traumatologista se admirou com a violência da pancada que ele sofreu. Ele ainda chegou a ser operado do intestino, mas da cabeça ninguém pôde fazer nada. Aí pronto, foi a Via-crúcis dele´, atesta a irmã, agradecendo a atenção da equipe.

´Aqui era só entrando e saindo médico, aquela confusão. Um deles até disse: ´Eu não vou olhar mais pra ninguém. Vou ficar só aqui, com o Poetinha´. Todo mundo foi muito carinhoso com ele. Havia quem achasse que ele ia sair dessa, lembravam que ele era um guerreiro. Mas a gente sabia que o caso era crítico´, acrescentou Conceição, escolhida pela família para falar, em momento tão difícil, por ter sido particularmente próxima ao irmão. Na sala de espera, a insólita e irônica despedida era lamentada pela cunhada, Maria de Lurdes Pinto, e pelas sobrinhas Jessilene Araújo Lima e Francisca Alexandra Pinto. Entre a dor e a resignação.

Livros aos amigos

A figura do poeta maldito, de temas difíceis e escritos de densa tessitura, diverge da condição humana vivenciada por José Alcides no cotidiano do lar. Segundo Maria da Conceição, o poeta tinha hábitos simples e, em casa, costumava manter uma bem-humorada relação com os filhos e irmãos. ´Ele estava muito bem. Tanto que, na hora do acidente, estava passeando. Talvez tivesse ido andar, comprar um remédio, que ele adorava um remedinho, um melhoral, essas coisas...´, recorda, esforçando-se em buscar os detalhes na memória. ´Mas o que é mesmo que ele foi fazer ali naquela hora? Ah, já sei: ele foi colocar o envelope com os livros dele para os amigos. Ele vai lançar dois livros dele, lindos os livros, agora em agosto. Olha, eu dizendo ´Ele vai lançar´...´, percebe, emocionando-se. ´Devia estar voltando, porque já vinha sem os pacotes na mão. São lindos os livros, eu já tinha pego´, diz, exibindo os exemplares, em torno de 50 páginas cada.

Se o escritor tratava a irmã mais nova por ´Tatá´ ou ´Tazinha´, para Conceição Alcides era ´Didi´, ou Poetinha´. ´Ele me chamava de Tazinha porque eu era a mais nova, não sabia falar direito. Ele brincava comigo: ´Ô menina feia! O nome dela é Tatá´´, detalha. ´Ele era tão humano. Falava aquelas coisas de poeta, que a gente ia passear, viajar. Aqueles sonhos de poeta mesmo. E dizia que queria ser enterrado no Acaraú´, destaca, citando o município de Santana do Acaraú e dizendo ser desejo da família atender ao pedido do irmão. ´Agora não pode ser, porque tem os filhos, tá todo mundo em choque, não ia ter como irem pra lá. Então, ele vai ser enterrado em Fortaleza, mas daqui a uns anos, quando for o tempo, vai ser trasladado pra lá. Por que não, se era o que ele queria?´.

Versos finais

Não por acaso, os livros que restaram inéditos também celebram musas do autor de ´Os Verdes Abutres da Colina´. ´Ele falava muito de morte, era um dos temas dele. E muito sexo também, né? Ô homem pra gostar de mulher´, diz Conceição, encontrando forças para sorrir. ´Ele gostava de dizer: ´Tazinha, depois de mulher, não conheço nada melhor. Se Deus fez, foi pra ficar só pra ele´. Era a cara dele´.

´Diário de Berenice´ traz dedicatória a ´Josy (Joseane), estudante musa mulata´ e inclui como epígrafe versos da canção ´Já sei namorar´, dos Tribalistas Brown, Antunes e Marisa Monte. O autor assume então a palavra, em um dos pequenos trechos de prosa poética que compõem a obra:

´Num dia de imensa tristeza, Berenice atirou-se ao mar. E não voltou mais. Em seu caderno de anotações foi encontrado isso: ´Não tenho mais nada a fazer no mundo. Vou conviver com os peixes e as sereias, os corais e as algas. Não ouvirei o grito das gaivotas nem o ruflar das asas da rola chegando ao ninho. Essas cousas talvez nunca existissem: a não ser na sua imaginação: O periquito, o galo, o rádio de pilhas, uma cueca nova com uma nódoa recente de esperma, que ela raspou com a unha´.

Já em ´O Algodão dos Teus Seios Morenos´, volume mais lírico, em que José Alcides dedica poemas a amigos como Geraldo Jesuíno, José Telles, Sérgio Braga, João Soares Neto, Giselda Medeiros, além da filha mais velha, Belkiss Valéria, as musas dividem espaço com a morte, bem ao estilo do autor, que questiona: ´Baudelaire! Baudelaire! Baudelaire! Luis Nicolau Fagundes Varela, quando voltarei a ser poeta?´. E arremata, em versos agora carregados de ironia:

Que mais precisa o morto
a não ser do sossego
a paz que vem dos mortos
está no aconchego
da própria escuridão
que lhe serve de abrigo
à suma eternidade
trancado em seu jazigo
(...)
Mas quem pode afirmar
com absoluta certeza
se o morto não está vivo
embora morto esteja?

REPERCUSSÃO

Em memória de José Alcides Pinto


'Perdemos um grande intelectual, autor de belíssimos poemas, que muito fez pela literatura do Ceará. É uma ocorrência lamentável sobre todos os aspectos, constituindo um prejuízo muito grande para as letras do Ceará. Sobretudo no campo da poesia, em que ele se destacou de maneira brilhante e inquestionável. Lamento profundamente o seu desaparecimento e acho que nós que fazemos literatura estamos de luto'. (Arthur Eduardo Benevides, Poeta)

'É um dos maiores escritores do País, e um dos maiores do Ceará, ao lado de José de Alencar, Moreira Campos e Francisco Carvalho. A literatura cearense, toda ela, depois de Alcides, é tributária de sua influência. Foi fundamentalmente um poeta de estética moderna e criativa, que instaurou uma estética nova na literatura brasileira. Para mim, era uma espécie de pai literário e afetivo. Convivi com ele desde a juventude na Piedade. O Ceará precisa se orgulhar dele'. (Dimas Macêdo, Escritor)

'A perda foi grande para a literatura brasileira e cearense. Estive com José Alcides na última quinta, falando sobre seus dois próximos lançamentos. Foi uma convivência de toda uma vida. Estou muito emocionado. Não consigo expressar toda a dimensão deste grande escritor brasileiro'. (Sérgio Braga, Editor)

'Ele era o próprio compromisso com a literatura, viveu para a literatura. Atravessou muitas dificuldades porque fez a opção pela palavra. Deixou o emprego, deixou tudo para se dedicar à ficção e à poesia. Fez da literatura seu apostolado. Era inquieto e leal, a expressão da nordestinidade na vida, na literatura'. (Barros Pinho, Escritor)

 

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Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

3.6.2006

A escritura de José Alcides Pinto

Carlos Augusto Viana

José Alcides Pinto sempre constituiu um desafio ao leitor. Passo a passo, sua imensa trajetória literária implicou um encontro com o desvio da linguagem

Nesse sentido, tanto sua prosa quanto sua poesia revelam facetas pouco encontráveis em seus contemporâneos: hermético e mítico em “Cantos de Lúcifer” (1966), despojou a linguagem e valorizou os recursos visuais em “Águas Novas” (1975); erótico e lírico em “Ordem e Desordem” (1982), súbito converteu-se em um sonetista no livro “20 Sonetos do Amor Romântico / Novos Poemas” (1982), no qual está reeditado um de seus maiores poemas de força social: “Os Catadores de Siri” — um texto denso, composto de 552 versos, ora metrificados, ora livres, às vezes em rimas brancas ou não, consoante o seu espírito irrequieto.
 

Foto do arquivo DN

Nessa composição, ele visita o universo sórdido dos meninos que tiram o sustento da lama e nesta se convertem. Esse poema se realiza através de uma narrativa dramática. A oralidade impõe-lhe uns laivos de prosaísmo, mas não lhe despe a imperiosa musicalidade.

Quanto à linguagem, observam-se dois recursos: o da repetição e o jogo metafórico. A repetição se dá por dois processos: o estilístico e o simbólico, pela constante utilização de uma mesma imagem: “Quem não tem o direito de viver / cava a lama / como eu cavo / as crianças pobres do Recife”.

A expressão “cava a lama” apresenta um teor puramente sintagmático, pois denota um fenômeno real; o mesmo não ocorre com a expressão “como eu cavo / as crianças”, de conotações múltiplas: o universo real (cava a lama) dá passagem ao simbólico: (como eu cavo / as crianças). O poeta desenterra a cidade como se fosse um siri.

Em termos gerais, toda a obra de José Alcides Pinto se concentra em suas concepções acerca da vida e da morte, do bem e do mal, enfim, num mundo todo tecido a partir de contrastes. Ainda que, em alguns poemas ou algumas passagens de romance, o ambiente do sertão compareça, com suas paisagens descarnadas, a atmosfera que lhe marcou a infância (nasceu ele em São Francisco do Estreito — distrito de Santana do Acaraú) surge apenas como moldura, uma vez que visa, sobretudo, ao universal.

Seu verdadeiro intento foi o de procurar os abismos do homem, aquilo que é perene na condição humana: a angústia diante da brevidade do tempo e da certeza inexorável diante da morte. O regional, portanto, é apenas uma paisagem, um cenário para a construção de um universo mí(s)tico, povoado de imagens surrealistas.

Fundem-se , em sua escritura, o lírico e o grotesco, o paraíso e a queda, e seres estranhos habitam um espaço deformado pela força criadora. Pela poesia de seu povoado, dissolvem-se homens e demônios, como, por exemplo, na seguinte passagem de “Os Verdes Abutres da Colina”: “Rosa mal podia espiar o poste aceso no oitão da casa.

A lâmpada soltava uma luz amarela, embaciada, apagava e ascendia como a lanterna dos pirilampos, piscando ao pé das calçada ou abrindo buracos na escuridão do ar. De vez em quando, um se metia debaixo do chambre, focava inconvenientemente. Outros subiam-lhe pelas pernas trôpegas, cheias de mondrongos, e invadiam-lhe as virilhas num luzeiro que a fazenda do chambre não encobria. Rosa sapateava na sua inconsciência centenária: — Xô bicho”.

Como se vê, é verdadeiramente um universo dominado pelas forças fatais. A obra de José Alcides Pinto pode ser compreendida a partir do entrelaçamento de três temáticas essenciais: o sexo, a morte e a loucura, sendo instâncias inseparáveis, entregues ora ao sagrado, ora à maldição. Como todo símbolo, seu universo ficcional ou poético comporta forças positivas e negativas, criação e destruição, num digladiar-se interminável.

 

 

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Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

3.6.2006

Adeus ao nosso poeta maldito

Dellano Rios

No começo da tarde de ontem, chegou ao fim a vida do poeta José Alcides Pinto. Sua arte, no entanto, permanece e o ultrapassa

O protagonista já determinava que, fossem quais fossem as circunstâncias, a notícia causaria alvoroço. José Alcides Pinto está morto. Um dos gigantes na literatura cearense, o poeta foi vítima de uma fatalidade. Uma morte “estúpida”, como diria o escritor francês Albert Camus sobre os acidentes de trânsito.
 

 

 

 


No sábado (31.05.20080, às 11h30, foi atropelado por uma motocicleta na Rua General Sampaio, próximo a sua residência, no Centro da Capital. O escritor fazia uma de suas andanças rotineiras pelo bairro. Reconhecido no local, ele foi levado ao Instituto Doutor José Frota (IJF). No hospital, foi atendido pelo médico Almir Gomes, membro da Sociedade Brasileira dos Médicos Escritores (Sobrames). Alcides sofreu ferimentos graves, com ruptura de órgãos vitais e traumatismo craniano. A morte cerebral foi diagnosticada na noite de domingo. O poeta, por fim, faleceu às 12h50 de ontem. O corpo foi velado na Academia Cearense de Letras. Até o final da tarde de ontem, o local de sepultamento - se em Fortaleza ou em Santana do Acaraú - ainda não está definido.

Deixou seis filhos, de três casamentos. Deixou, ainda, uma vasta obra que inclui poesia, teatro, romance, contos, crônica, memórias, aforismos e crítica literária. Como poeta, foi o responsável pela chegada do concretismo no Ceará; na prosa, destacaram-se suas obras de realismo fantástico. Nestas duas dimensões da escrita, uma literatura marcada pelos temas malditos: o sexo e a morte.

Vida como obra
José Alcides Pinto nasceu em 10 de setembro de 1923, no povoado de São Francisco do Estreito, distrito de Santana do Acaraú, na região norte do Estado. Em 1945, partiu para o Rio de Janeiro, onde se formaria em jornalismo e biblioteconomia. Ocupou cargo no então existente Ministério da Educação e da Cultura e foi professor da UFC. Abandonou os empregos públicos para se dedicar, exclusivamente, à literatura.

“Todo minha obra é autobiográfica”, revelou o escritor em uma de suas últimas entrevistas ao Diário do Nordeste, em agosto último. O caráter memorialístico da obra do poeta causa assombro. Seus personagens vivem embates com a loucura, a morte, o sexo e experiências místicas. Na vida e na literatura, José Alcides Pinto vivia na zona de intercessão entre o sagrado e o profano. “Não existe distância (entre estas duas dimensões), eles se bifurcam”, afirmou em outra entrevista.

O escritor de obras transgressoras — como “O Relicário Pornô”, coleção de poemas e aforismos que o título descreve bem — se dizia um homem religioso. Nos últimos anos, crescia seu interesse pela temática mística. A mesma que permeou algumas de suas principais e mais famosas obras — em especial, a Trilogia da Maldição, que reúne os livros “O Dragão”, “Os Verdes Abutres da Colina” e “João Pinto de Maria (biografia de um louco)”. Nesta série de romances, Alcides ambientou em na localidade em que nasceu acontecimentos miraculosos e inexplicáveis à razão.

O confronto entre o místico e o banal da existência terminou por dar-lhe o título de “maldito”, como seus admirados Rimbaud e Artaud. “Acho muito bom ser ligado aos malditos. São todos abençoados”, decretou. Sobre a morte que acabou por alcançá-lo, José Alcides Pinto disse: “Minha escrita é um meio de fugir dela, mesmo que isso não seja possível”. Com a morte, parte Alcides, mas fica a obra. Resta, por fim, uma dúvida: teria nosso poeta maldito conseguido o impossível?
 


REPERCUSSÃO
Em memória de José Alcides Pinto

'Tivesse escrito em espanhol, o Alcides certamente seria nosso candidato ao Prêmio Nobel de Literatura. É um escritor premiado nacionalmente, desde sua “Trilogia da Maldição” até livros mais recentes, como “Trilogia da Morte”. Nele, o poeta José Alcides Pinto fala da vida, com base em sua experiência secular, e da morte, com a intimidade de quem já vivia em outro mundo'.  (José Telles, Presidente da Sociedade Brasileira dos Médicos Escritores - Secção do Ceará)

'A gente sempre tem a impressão que os nossos amigos nunca vão morrer. A morte do Zé é uma perda para a literatura cearense, para a literatura brasileira e, para mim, uma perda pessoal. Ele foi meu companheiro de descobertas nos anos 1950. Tenho ainda hoje um exemplar do Rimbaud autografado por ele. Aprendemos muito juntos'. (Ferreira Gullar, Poeta e crítico de arte)

'José Alcides Pinto foi um dos grande poetas do Ceará das quatro últimas décadas. Era meu amigo particular, desde 1957, quando chegou do Sudeste com a novidade da Poesia Concreta. Com ele, participei da introdução da Arte Concreta no Estado. Sua morte é uma perda para nossa literatura'. (Pedro Henrique Saraiva Leão Poeta e membro da Academia Cearense de Letras)

'O José Alcides Pinto foi um autentico artista. Toda sua vida foi organizada para ser um escritor. Largou cargos públicos e carreira acadêmica para viver com base em valores da arte. Ele tinha dois talentos especiais: um era a facilidade para a criação; o outro valor era estabelecer novas relações e apoiar os novos talentos'. (Auto Filho, Secretário da Cultura do Estado)
 

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O Povo, Fortaleza, Ceará, Brasil

3.6.2008

 

O feiticeiro ganhou asas

Henrique Araújo

 

O escritor José Alcides Pinto morreu na noite do último domingo após ter sido atropelado. Místico, louco, lúcido: esses são alguns dos adjetivos usados por amigos ao se referir ao poetinha. O Vida & Arte publica algumas poesias inéditas contidas nos dois livros que JAP lançaria em agosto

Poeta, romancista, teatrólogo e crítico literário, José Alcides Pinto sofreu morte cerebral na noite do último domingo, às 22 horas, no hospital São Mateus, em Fortaleza. As informações foram confirmadas pelo escritor e amigo José Telles, encarregado pelos trâmites do sepultamento do poeta. Às 11 horas do sábado, 31, numa de suas muitas andanças por Fortaleza - aos 82 anos, Alcides Pinto preferia os próprios pés ao emborrachado dos pneus de ônibus e carros -, o autor de Os verdes abutres da colina e O dragão foi atropelado por uma motocicleta na rua General Sampaio, próximo à praça Clóvis Beviláqua, e levado ao Instituto Doutor José Frota, onde reclamou de dores nas pernas. Em seguida, foi transferido para o Hospital São Mateus. Alcides teve traumatismo craniano e perfurações no estômago. O escritor "maldito" deixa seis filhos e seis irmãos. O velório acontecerá na sede da Academia Cearense de Letras e o enterro, no pequeno cemitério de São Francisco do Estreito, distrito de Santana do Acaraú, no interior cearense - a Macondo de JAP. Até o fechamento desta edição, às 15 horas, o horário do velório não estava confirmado.

O trágico sumiço do galante e zombeteiro Alcides Pinto surpreendeu amigos e parentes. "Ele sempre andava sozinho pelo Centro, adorava, não sei como isso aconteceu", espantou-se Conceição Pinto Aguiar, ainda no hospital. Incrédula, Conceição adormecera logo após o acidente. Foi acordada ao saber que a morte cerebral do irmão era coisa inarredável. "Às vezes eu penso que é um sonho, que, quando eu sair daqui, tudo se resolve", falou. "Ele entendia a morte como um enigma, como mistério e, ao mesmo tempo, como uma fatalidade", depôs José Lemos, autor de o Universo Mí(s)tico de José Alcides Pinto, livro de 1979. Para JAP, continua Lemos, realidade e ficção eram indistintas. "Ele entendia a vida como um absurdo. Para escapar do absurdo, a solução seria a loucura ou então a morte."

Ao telefone, o poeta cearense Francisco Carvalho, 81, lamentou a morte do amigo. Antes, confundiu-o com um técnico de futebol. O POVO o apanhara distante da notícia do falecimento de JAP. Carvalho engasgou, levou dois ou três minutos até retomar o fôlego e reunir coragem para falar sobre a relação que tinha com o escritor. "Eu dediquei dois sonetos no aniversário de 80 anos do Alcides Pinto. Ele era um escritor extraordinário, completo. Fazia de tudo." Silêncio - Carvalho ruminava sabe-se lá que memórias. Sem aviso prévio, constata: "Os velhos estão morrendo". Em seguida, relembra a última vez em que esteve com JAP. Foi na terça da semana passada. "Tinha prometido comprar os dois últimos livros dele.".

Feiticeiro, pornógrafo, santo, demoníaco. Polêmico, paradoxal. JAP trazia a semente desgraçada dos mártires e encapetados. Morreu pobre. Passara a noite anterior na última casa de uma vila miserável, no Centro. Era devoto de São Francisco e Teresinha de Jesus. Fez promessas e foi atendido. Durante um ano, podia ser visto nos bosques da Universidade Federal do Ceará trajando o hábito e calçando as chinelas do santo a quem recorria fervorosamente. Hoje, as peças estão guardadas em sua fazenda Terra do Dragão, em Santana do Acaraú, onde nasceu, em 1925. Antes e depois dele, outros oito irmãos vieram ao mundo. Resolveu mudar-se para Fortaleza. Ganhou um bilhete para uma viagem de navio até o Rio de Janeiro, aonde só chegaria cinco anos após ter embarcado. É que JAP saltou na capital pernambucana. Lá, estudou jornalismo e colaborou nos principais periódicos da época. No Rio, formou-se na Universidade do Brasil. Foi membro do Sindicado da categoria e ingressou no magistério. Pouco tempo depois, transferiu-se para Fortaleza. Ensinou na Universidade Federal do Ceará. Entre tantas idas e vindas, formou-se bibliotecário.

José Alcides Pinto renunciou a tudo em favor da literatura. "O Alcides teve uma carreira bastante dissociada", biografa Geraldo Jesuíno, um dos mais próximos de Alcides Pinto. Nele, vida pessoal e ofício contrapunham-se harmoniosamente. Porque Alcides era o paradoxo. "O escritor e o homem eram duas figuras que não caminhavam na mesma trajetória. Enquanto o escritor crescia assustadoramente, o homem não se dava muito cuidado, ele não tinha posses, não tinha nada, era um escritor pobre, dava os livros dele de presente."

Vinte anos de pesquisas resultaram em um dos livros a que JAP devotava respeito razoável. Escrito por Dimas Macedo, A face do enigma é uma das mais importantes referências a tratar da obra de Alcides e o seu autor, um dos mais chegados ao "maldito". "Ele foi uma escola para todos os escritores do Ceará. São todos tributários dele. Nunca deixou de ser jovem. Nunca deixou de ser um transgressor. Morreu completamente pobre. Vivia da caridade", destaca Dimas. Por telefone, ele afirma estar mais calmo. Garante poder falar sobre o amigo. E Dimas fala. Reconta parte da história do que, para ele, constitui um raro exemplar mitológico. "Ele era a palavra. Era a estética. Ele era a literatura".


E MAIS

Da inutilidade do tempo

Estou só no mundo
e não me chamo Raimundo:
como Drummond dizia
digo eu: um dia é outro dia
e o mesmo dia.

E esses dias somados
a troco de vintém:
não servem para mim
nem para ti ninguém.

Não servem para nada
nem pra dar nem vender:
são dias emprestados
a troco de viver.

Mais um dia que passa
sem parar se deter:
nessa doida corrida
sem saber para quê.

E onde isso vai dá?
O saber que importa:
esteja aberta ou fechada
a porte é a mesma porta

por onde se entra e não sai
tal qual uma sepultura:
como se jogassem fora
a chave e a fechadura.

Trecho do livro O algodão dos teus seios morenos
 

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O Povo, Fortaleza, Ceará, Brasil

3.6.2008

 

Inéditos de José Alcides Pinto

Pedro Rocha

 

José Alcides Pinto deixou dois livros inéditos, previstos para serem lançados em agosto. Não teve tempo de revisar as obras de poesia. A morte surge nos livros: menos por um prenúncio, mais como um de seus temas fundamentais.

José Alcides Pinto deixou dois livros inéditos de poesias e prosa poética: O algodão dos teus seios morenos e Diário de Berenice. Queria encarrilhar ainda um terceiro, mas seu amigo Geraldo Jesuíno, 61 anos, responsável pelo projeto gráfico das obras, pediu calma. "Ele estava em plena atividade criativa, um poeta maduro", contou Jesuíno. Ultimamente, o escritor tinha diminuído um pouco o ritmo da escrita, primando pela qualidade, mesmo assim não teve tempo de revisar as obras, curtas, ambas com pouco mais de 50 páginas, previstas para serem lançadas em agosto. "Às vezes, continuar vivo era uma preocupação do Alcides, mas não era a maior. A grande amante dele era a literatura", disse.

Nas capas, a dualidade da obra do escritor: no livro O algodão..., uma mulher de seios rijos a mostra cor púrpura; e noutro, uma pomba branca e arabescos na fonte. As últimas cinco obras de Alcides ficaram aos cuidados de Jesuíno, que os concebeu graficamente e assinou a contracapa de um deles, onde escreveu: "mais um raro e magnífico afago estético a que nos permite um dos maiores escritores vivos deste País". O amigo reescreveu ao telefone na manhã de ontem: "Agora é um dos maiores poetas que esse País já conheceu".

A morte freqüenta vários poemas das duas obras. Antes de inferir alguma previdência do escritor, um "profeta" para alguns, vale lembrar que o tema, corrente na literatura de Alcides Pinto, mereceu uma trilogia semi-autobiográfica intitulada O tempo dos mortos, composta pelos romances Estação da Morte, de 1968, e O Enigma e O Sonho, ambos de 1974. As três obras foram relançadas ano passado pela editora Top Books.

Avalizando o escritor nas orelhas das duas obras nomes como os dos críticos Wilson Martins, Antônio Houaiss e Fausto Cunha, e escritores Levo Ivo, Francisco Carvalho e Artur Eduardo Benevides. Alcides Pinto somou ainda em vida uma fortuna crítica de mais de dez livros sobre sua obra, figurando em antologias da literatura brasileira como a recentemente lançada Roteiro da Poesia Brasileira - anos 50, organizada por André Seffrin.

Quando o professor e crítico de literatura, José Lemos Monteiro, planejou no final da década de 1970 três obras sobre escritores cearenses representativos, reservou a José Alcides Pinto o volume dedicado ao romance. "Ele exerceu sobre mim um fascínio muito grande, porque eu também encarei e, de certa forma, ainda encaro a vida como um absurdo, como algo, segundo os próprios existencialistas, a que o homem foi condenado. O homem está aqui pra viver, mas não deve questionar porque tem que viver e porque um dia tem que morrer. Na verdade, ele foi um escritor que se tornou singular aqui na literatura cearense, porque de fato ele foi muito fundo na reflexão sobre a condição humana", disse.

O historiador da literatura cearense, Sânzio de Azevedo, assinou o prefácio do livro Sonetos do Amor Romântico. Lá escreveu: "José Alcides Pinto é tão moderno que não tem medo nem vergonha de ser romântico", e agradou bastante o autor, que repetia a frase. "Eu acho que José Alcides Pinto foi uma figura muito original, muito autêntica, nunca fez muitas concessões, vivia em dificuldade. Ele era assim meio estranho, mas não era pra chamar a atenção não, ele era uma pessoa original", disse Sânzio.


INÉDITOS

Teus doces arrebaldes

Num dia de imensa tristeza, Berenice atirou-se no mar. E não voltou mais. Em seu caderno de anotações foi encontrado isso: "Não tenho mais nada a fazer no mundo. Vou conviver com os peixes e as sereia, os corais e as algas. Não ouviu o grito das gaivotas nem o ruflar das asas da rola chegando ao ninho. Essas cousas talvez nunca existissem: a não ser na sua imaginação: O periquito, o galo, o rádio de pilhas, uma cueca nova com uma nódoa recente de esperma, que ela raspou com a unha.

(...)

A maré enchia de manhã e à tarde esvaziava.
Berenice se entretinha nesse vai-e-vém constante. Andava na beira-mar segurando a barra da saia porque as águas chegavam até seus joelhos. Era o único divertimento de sua vida. Esse prazer era renovado todo dia.

 

Biblioteca

O Criador de Demônios (1967)
Estação da Morte (1968)
Entre o sexo: a loucura a morte (1968)
O Enigma (1974)
O Sonho (1974)
O Amolador de punhais (1987)
Trilogia da Maldição (1999)
Noções de poesia e arte (1952)
Pequeno caderno de palavras (1953)
Concreto: estrutura visual gráfica (1956)
Ciclo único (1964)
Contos de Lúcifer: poemas reunidos (1966)
Os catadores de siris (1966)
As águas novas (1975)
O Acaraú: biografia do rio (1978)
Ordem e desordem (1982)
Antologia poética (1984)
Guerreiros da fome: outros poemas (1984)
Fúria (1986)
Fúrias do oráculo (1996)
Silêncio branco (1998)
As Tágides (1998)
Poemas Escolhidos (2003)
Poemas Escolhidos II (2006)
Diário de Berenice (2008)*
O algodão dos teus seios morenos (2008)*

* Livros inéditos
 

Memória

10/9/1983 - José Alcides Pinto nasce em São Francisco do Estreito, distrito de Santana do Acaraú, Ceará.

1945 - Muda-se para o Rio de Janeiro, onde trabalha como bedel de aluno. Diploma-se em Jornalismo pela Faculdade Nacional de Filosofia e em Biblioteconomia pelo Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação.

1950 - Em parceria com Ciro Colares e Raimundo Araújo, lança o livro Antologia dos Poetas da Nova Geração.

1952 - Lança seu primeiro livro individual, Noções de Poesia e Arte.

1957 - Volta para Fortaleza, onde lança o Manifesto Concretista.

1964 - Publica seu primeiro romance, O Dragão.

1974 - Publica Os Verdes Abutres da Colina e João Pinto de Maria - Biografia de um Louco, que, junto com O Dragão, formam a chamada Trilogia da Maldição.

1977 - Desliga-se da Universidade Federal do Ceará, onde dava aulas no curso de Comunicação Social. Veste um hábito franciscano e vai morar numa fazenda no sertão cearense.

1986 - Ganha o Prêmio Nacional Petrobrás de Literatura.

2000 - Ganha o Prêmio da Crítica da Associação Paulista de Críticos de Arte.

2003 - A Editora G.R.D publica uma coletânea de poemas de José Alcides Pinto, intitulada Poemas Escolhidos.

2008 - Estava pronto para lançar dois livros inéditos de poesia, Diário de Berenice e O Algodão dos teus Seios Morenos com o selo Jamaica Editora, nome de uma das filhas.

 


 

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