Infância e juventude sob o estigma do sofrimento
Durante a viagem que fizemos à fazenda “Terras do Dragão”,
Alcides recordou, entre outros momentos de sua vida, aspectos de
sua infância e adolescência, as aventuras e as decepções, os
sofrimentos e os êxitos que conquistou durante sua permanência
no Rio de Janeiro, e esclareceu-me pontos de vista relativos à
sua concepção poética. Disse-me, por exemplo, que compreende o
homem do sertão por
ter sido criado a beira do rio Acaraú e ser filho de um
sertanejo. Seu pai era lavrador e ribeirinho. Pescava de tarrafa
e de anzol como ainda hoje fazem os ribeirinhos da região. Nesse
ambiente árido, cercado de serras e palmeiras, viveu as
experiências que se tornaram patrimônio do homem adulto e se
transpuseram para a sua obra. A infância é prodigiosa na
formação de todo indivíduo. Tem imagens que o adulto carrega
para sempre na memória.
Alcides partiu da região de Santana do Acaraú com 10
anos de idade, mas nunca a desprezou. Após haver residido em
grandes cidades, voltou sempre às origens. Retorna sempre ao
sertão onde tem a satisfação de conviver com seu povo sofrido e
humilde, com o qual se identifica e no qual se inspira para
escrever seus livros. Recorda-se de que em sua infância muitas
vezes passou fome, seu pai e sua mãe eram muito pobres. Houve um
tempo em que a situação estava tão difícil que seu pai foi
obrigado a colocar os filhos debaixo de um juazeiro, quase
morrendo no calor sufocante do sertão, para que quem passasse os
levasse. Não a maneira de Abrãao. Não para submeter-se a uma
provação divina, mas simplesmente para sobreviver, para que os
filhos não morressem de fome. Quando Alcides era criança, seu
pai viajava com animais emprestados, comprava pedaços de bofe do
mais barato que tinha no Estreito e a família comia bofe com
farinha. A penúria o marcou tanto que, segundo afirma,
esgotou-se-lhe a capacidade de ser bom. Seu pai, José Alexandre
Pinto, conhecido que era como “poeta testamenteiro”, (fazia os
testamentos de Judas na Páscoa), também era curtidor. Tinha os
pés rachados da cal e da cinza crua --- elementos que utilizava
na curtiçao do couro de gado e miunças. Tinha uma vida muito
sofrida, pagava suas dívidas, inclusive os estudos dos filhos,
com farinha e feijão. Alcides via seus irmãos passando fome e
queria ajudar o pai a sair daquela situação miserável. E
realizou, com sacrifício, o sonho de estudar e viver em melhores
condições que as de sua família, chegando a auxiliar com alguns
recursos financeiros os seus pais enquanto eram vivos.
Aprendeu as primeiras letras no povoado do São
Francisco do Estreito e depois fez o ginásio em Massapé, onde
trabalhou como operário da construção civil e auxiliar de
padeiro. Em seguida foi para Fortaleza. Estudou então no Liceu
do Ceará e posteriormente, completou o curso secundário no
Colégio Pio Americano, quando foi para o Rio de Janeiro. Em
Fortaleza, chegou a morar na Casa do Estudante, onde conviveu
com o poeta boêmio Sidney Neto, com quem muito aprendeu. Sidney
Neto costumava dizer-lhe: “Pintinho, se você quer ser um poeta,
estude”. Disse que com ele aprendeu, entre outras lições, a
mania de andar nu dentro de casa. Mas só ficava nu quando estava
só. Se aparecia alguém, logo se vestia como o mais recatado
cidadão.
O poeta conta com júbilo as virtudes que aprendeu
com seus pais. E seu pai, oriundo da Ribeira do Acaraú, herdou a
franqueza, a disposição para o trabalho, a fé em Deus, a
capacidade para educação dos filhos e lealdade aos amigos. Mas
também o temperamento resoluto e forte. Se um ladrão o atacasse
ele lutava até vencer. Saía com 60 animais alugados e apenas um
arrieiro, levando couro curtido e cera de carnaúba para vender.
Foi muitas vezes atacado pelo caminho e botou pra correr os
gatunos. Nesse sentido JAP se considera igual ao pai --- terno,
amoroso, mas desabusado. Não leva desaforo para a rua e também
não os traz pra casa. Diz que não tem medo de nada, só da
palavra de Deus. De sua mãe, Maria do Carmo Pinto, nascida na
região de Crateús, aprendeu o altruísmo, a ternura e a dedicação
aos filhos. Mas também a firmeza de caráter. Ela dominava os
filhos com o olhar.
O sangre de cigano e a vontade de aprender o
impulsionavam para mais além. Sentiu necessidade de partir do
Ceará e foi ao Palácio do Governo pedir ao então governador
Gomes Muniz uma passagem de navio para o Rio de Janeiro. Recebeu
uma passagem de terceira classe e viajou no porão, dias e noites
vomitando. No convés do navio encontrou-se com Braga Montenegro,
que ia na primeira classe, sentado numa cadeira espreguiçadeira.
Durante o trajeto manteve longas conversações com aquele
escritor cearense, que já o conhecia através dos artigos que JAP
já naquele tempo escrevia para a imprensa de Fortaleza. Mas o
acaso, ou o espírito de aventura, não permitiu que JAP fosse
direto para o Rio de Janeiro. Quando o navio fez escala em
Recife o poeta se encantou com a cidade, com a beleza de suas
pontes e de suas mulheres e não voltou ao navio. Passou ali
quatro anos, dois em completa vadiagem e dois trabalhando no
Diário de Pernambuco, como revisor, emprego que conseguiu graças
ao poeta Mauro Mota. Frequentava o restaurante da Faculdade de
Direito, onde conheceu Deolindo Tavares. Fez amizade também com
Ascenso Ferreira. Em Recife conheceu Maria das Neves Sobreira,
alta, magra, bonita, (a moca de blusa azul, de sapatos de nuvem,
que menciona no poema). Morava atrás da Praça 13 de Maio.
Tornou-se o seu primeiro amante. Ela lhe deu forças para
permanecer ali o tempo que permaneceu. Quando se tem amor,
ama-se a cidade. Em suas andanças na Veneza brasileira escreveu
dois livros: As Pontes e os Catadores de Siri. O poema Rua da
Imperatriz começa com o verso: “todas as pontes do Recife
atravessadas no meu peito”. Nesse período sua diversão era
observar os meninos pobres que catavam siris nos mangues do rio
Capibaribe. Identificava-se com aquelas crianças, sentia-se
pobre e marginal, “suando nos mangues de lama. Fezes. Febres”.
Sua vida era um osso duro de roer, a liberdade era lama, e via
os meninos como bichos dos mangues, espectros da lama.
Depois dessa fase de penúria em Recife foi para o
Rio. Chegou sem dinheiro, procurando a Praça Tiradentes e o
jornal Imprensa Popular, onde entregaria a Osvaldo Peralva uma
carta de recomendação do poeta Aluizio Medeiros, datada de
quatro anos atrás. Mesmo assim conseguiu emprego no Jornal do
Partido Comunista, embora não compactuasse integralmente com a
sua ideologia. Um dia, quando saía do jornal na companhia do
romancista alagoano Airton Quintiliano, de Humberto Teles e
outros, foi preso com todo o grupo. Deram-lhes socos, ponta-pés,
pancadas na cabeça e os levaram como um carregamento de sacos.
Nus, no pátio de penitenciária, estavam diversos companheiros,
como José Maria Crispim, João Amazonas e Astrogildo Pereira,
capturados na mesma emboscada. Eram mais de trinta na cela. Na
pia não havia água. Passaram quatro dias quase sem comer e sem
beber. Cuspiram-lhes na cara, deram-lhes bordoadas na cabeça.
Por fim dos quais foram libertados, graças a um habeas corpus
impetrado por Pedro Pomar, que na ocasião era Deputado Federal.
Clotilde Prestes, irmã de Luis Carlos Prestes, também detida,
gritava, numa cela em frente, com os olhos de falcão: “Aguentem
companheiros, não abram mão, companheiros!” Os policias diziam,
“vou tirar tua roupa, sua puta!” E ela retrucava: pelegos,
moleques, canalhas, escroques. O povo fará justiça.
Alcides conta que se decepcionou com o partido,
porque ao escrever um poema louvando os seios lindos de Zelia
Magalhães, uma dirigente, líder da causa, os comunistas não
aprovaram os versos, dizendo que revolucionário não podia ser
romântico, tinha de falar era de sangue. Por fim largou o jornal
e ficou dormindo ao léu. Vivia com os nervos esfrangalhados, com
receio de uma nova prisão, escondido pela casa dos amigos. Tinha
pesadelos terríveis: os agentes de polícia o perseguindo com
cães amestrados. Foi no tempo em que passou uns meses na pensão
de D. Livramento, no Morro de S. Teresa, num quarto de paredes
lodosas, coberto de mofo, cheio de ratos e baratas. Com o
companheiro de quarto, Agostinho, um estudante maranhense,
acadêmico de engenharia, em igual situação, sem emprego, passava
fome e perambulava pelas avenidas do Rio de Janeiro. D.
Livramento queria expulsá-los porque não pagavam o aluguel e
eles decidiram abandonar a hospedaria. Dormiram muitas noites no
Passeio Público, com corjas de vagabundos cheios de talhos nos
rostos e nos braços. Por fim Agostinho, sempre pessimista e
revoltado, adoeceu e foi definhando aos poucos. Morreu
tuberculoso num sanatório para enfermos indigentes. A visão e a
lembrança do cadáver do seu companheiro de sofrimento o
atordoaram durante muito tempo. Guardou-lhe os despojos: calças
surradas, camisas esburacadas e alguns livros.
Alem de Agostinho, Alcides tinha um amigo de nome
Airton, um condutor de bonde a quem dava aulas de português, o
qual, como pagamento, dividia com ele o próprio almoço. Nessa
época dormia num barraco no morro Santo Antonio. Tempos depois
reencontrou Dona Livramento, que quando tomou conhecimento da
morte de Agostinho ficou muito penalizada, arrependeu-se
profundamente de haver maltratado aquele jovem indefeso, que
antes considerava preguiçoso e vagabundo. Com pena e medo de que
Alcides tivesse um fim semelhante resolveu acolhê-lo de novo. E
de fato o poeta já se achava enfermo, com uma úlcera duodenal,
cuja operação decidiu antecipar. Foi a primeira de uma série de
cirurgias a que se submeteu. Estando internado numa clínica pelo
menos estava a salvo das investidas da polícia. O restaurante de
UNE vivia infestado de alcaguetes e Alcides, que havia passado
uns dias na casa do líder comunista Pedro Pomar, em Laranjeiras,
desconfiava que estava sendo seguido por detetives da Polícia
Federal. Quase fora preso novamente durante uma invasão da UNE
pelos policiais. Os policiais entraram com cassetetes batendo em
quem aparecesse pela frente. Umas duas ou três cacetadas
resvalaram-lhes pelos braços, sem pegar de cheio na cabeça ou no
pescoço. Conseguiu escapulir, correndo. Quando quiseram
agarrá-lo, ficaram só com o paletó na mão. Escreveu todas estas
experiências no livro Manifesto Traído - Depoimento Memória.
Depois de ter sofrido estas agruras, com pouco mais
de 20 anos de idade, arranjou emprego de bedel no Colégio Pio
Americano, em São Cristovão, e conseguiu fazer o vestibular para
a Faculdade Nacional de Filosofia. Trabalhou 3 anos como bedel,
só pela comida e os estudos. Era um dos maiores colégios
internos do Brasil. Para ingressar no colégio, foi JAP atraído
por um anúncio no Jornal do Brasil. Apresentou-se para o
concurso, mal vestido, despenteado, juntamente com dois
candidatos que apareceram na mesma hora. Pensou que fracassaria.
Um dos candidatos era um baiano, pernóstico, que levava uma
pasta cheia de cartas de recomendação, e outro, um cearense.
Ambos pareciam muito inteligentes e que fizeram antes dele a
entrevista com o diretor do colégio. Quando chegou sua vez, ele
teve um diálogo genial com o diretor. Recitou alguns poetas para
o futuro patrão. Sabia de cor alguns sonetos de Augusto dos
Anjos, Castro Alves e outros bardos. O diretor perguntou-lhe o
que sabia fazer, além de declamar poesia. Ele disse, sou
revisor. E o diretor respondeu: “mas aqui não tem lugar pra
revisor, eu preciso de uma pessoa pra trabalhar na disciplina
com os alunos”. E Alcides respondeu: “um inspetor de alunos é a
mesma coisa de um redator ou revisor, basta que seja pobre e
necessite de emprego. Além disso, não é o curriculum nem a carta
de recomendação que provam a capacidade de trabalho de um
cidadão. Mas a educação e a pobreza é que o dignificam”. Então,
o diretor olhou bem para a sua cara e mandou que saísse. Depois,
o fez entrar de novo e decidiu dar-lhe o emprego. Mas Alcides
muito sofreu no trabalho de bedel. A maioria dos alunos, filhos
de gente rica, mostrava um caráter perverso e insolente. O chefe
da disciplina, cujas ordens obedecia, era um bruto. Perseguia os
seus subordinados, procurando achar neles a mínima falha para
pedir que o diretor os demitisse. Mas o sofrimento ainda foi
maior quando JAP deixou o colégio e quase morre de fome, no
período subsequente em que ficou sem emprego. Nesse tempo,
lembra-se de uma noite em que, de tanta fome, comeu uma banana
podre, roída, que encontrou jogada na porta de um restaurante,
apesar do medo de que a fruta estivesse impregnada com veneno
pra rato.
Durante sua estada no Rio criou parte importante de
sua obra. Realizou curiosa experiência literária, quando residiu
algum tempo numa clínica psiquiátrica. Foi morar no manicômio de
livre e espontânea vontade, segundo me assegurou. Essa proeza,
por inverossímil que pareça, começou quando resolveu escrever um
artigo sobre um livro do Dr. Neves Manta, psiquiatra que o
convidou para fazer uma pesquisa na Clínica de Repouso que
dirigia, em Petrópolis. Ali José Alcides escreveu O Criador de
Demônios e Entre o Sexo: a Loucura/a Morte. Seu método de
trabalho era a observação criteriosa do comportamento dos
loucos. Anotava-lhes a conduta discretamente, porque eram
furiosos. Envolvido no clima do manicômio, confessou que os
loucos tomaram conta dos seus sentidos, mas o final foi feliz.
Mostrou os originais ao Dr. Neves Manta e este lhe arranjou um
editor. Mas ficou com os loucos na cabeça durante muito tempo.
Escreveu os livros, fez a pesquisa e aproveitou para fazer
também um tratamento. Na clínica, encontrou loucos geniais, como
a pintora Mausie, que o amou intensamente, antes de suicidar-se.
“Entre o Sexo: a Loucura/a Morte” foi interditado pela ditadura
militar. Depois de alguns anos voltou à clínica, para continuar
escrever outros livros e tentar melhorar o juízo. “Tracei minha
orbita como um astro, minha musa é minha via crucis, minha
salvação. Escrevi tanto que perdi a conta, mas pelo menos guardo
de memória ao todo 95 títulos. Aleluia! Sou a luz do mito, o
reflexo do anjo”. Os Cantos de Lucifer também foram escritos no
Rio, no ano de 1954. Alcides acha que estava fora de si quando o
escreveu. Vivia como um marginal, numa época de desespero. Era
aluno da Faculdade Nacional de Filosofia, mas estava
desempregado, passado fome. Foi na fase em que dormia nos bancos
das praças, na companhia de facínoras e meliantes. Já não
acreditava mais em nada: religião, amor, família, amigos nada
fazia sentido. Estava se transformando num bruto, mas tinha a
consciência acesa como um astro cintilante. Escreveu os Cantos
de Lúcifer em folhas de jornais sujas de excremento e que eram
usados pelos marginais que dormiam nas ruas. A poesia o salvou
da escuridão, retirou-o da lama e do caos. Os Cantos de Lúcifer
foram prefaciados por Cassiano Ricardo que o aplaudiu com
generosas palavras. E pouco a pouco JAP foi conquistando a
consciência de uma nova dimensão e as vitórias começaram a
surgir. Fez amizade com muitos escritores que o apoiaram e o
incentivaram, como Graciliano Ramos, com quem almoçava de vez em
quando, e Rachel de Queiroz, que encaminhou a primeira versão do
livro “O Dragão” para a Editora O Cruzeiro, cujo responsável na
época era Herberto Sales. Muitos desses escritores fizeram
resenhas, dando testemunhos favoráveis aos seus primeiros
livros. Sergio Milliet, Gerardo Mello Mourão, Assis Brasil, José
Louzeiro, Fausto Cunha, Álvaro Lins, Gilberto Amado entre
outros, deram depoimento de aprovação de sua obra.
Viveu ao todo 17 anos no Rio de Janeiro. De 1955 a
1972. Ali casou-se com uma carioca, uma negra que se chamava
Beatriz do Nascimento, com a qual teve uma filha de nome Belkiss,
que reside em Paris. Depois que separou da primeira mulher,
passou a viver com outra, de quem teve dois filhos, Paloma e
Junior, que moram no Rio. Confessa e reconhece que era muito
boêmio naquela época, colecionava calcinhas das mulheres que
formam suas amantes. Uma delas era a Irene Santos Caldas, uma
pianista de renome, irmã do Sílvio Caldas. No Rio conheceu e
conviveu com os maiores nomes da literatura brasileira. Retornou
definitivamente a Fortaleza quando o casamento não deu certo. O
trauma do desquite ou o espírito nômade o induziu a largar tudo,
o apartamento que tinha e o emprego recém-arranjado na
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A literatura como predestinação
A literatura é efetivamente uma predestinação em sua
vida. Escritor de poemas, romances, ensaios, contos, voltado
obsessivamente para a arte literária, faceta de sua rica
personalidade, alem do seu gosto pela vida no campo, seu lado
camponês que curte a fazenda e que já criou gado, nada poderia
desviá-lo de seu objetivo primordial. Impossível exercer outra
atividade com tal plenitude. Jamais seria outra coisa senão
escritor. Diz que é um homem rural e urbano ao mesmo tempo. Um
camponês com o verniz da civilização. Viveu na agitação de uma
cidade como o Rio de Janeiro, como na pasmaceira do sertão. E em
ambos os lugares experimentou e aprendeu o sofrimento
imprescindível à criação de sua obra. Trabalhou na redação de
jornais e na universidade como professor. Mas para defini-lo de
maneira exata bastaria dizer: José Alcides Pinto, profissão
poeta. Como poucos artistas da palavra, Alcides jamais viveria
sem uma pena na mão, ou como bem disse o escritor Gerardo Mello
Mourão, com uma mulher escanchada nos ombros. Em síntese, não se
adaptaria a outra modalidade de vida que não fosse a de
escritor. Só no exercício de seu ofício sente-se integrado à
natureza humana e divina. Não se satisfaria como engenheiro,
médico ou aviador. Poeta eclético, que escreve em todos os
gêneros da literatura, declara que nasceu para ser escritor. Uma
de suas qualidades que mais me impressionam é a obsessão em
publicar e divulgar seus livros. Muitas vezes, quando o visitei,
como não sabe dirigir, levei-o em meu carro aos jornais de
Fortaleza, onde entregaria algum artigo, contactaria algum
jornalista para programar entrevista ou procuraria fotografias
suas nos arquivos dos periódicos, entre outras coisas. De fato,
toda atitude sua e tomada em função de escrever, publicar e
divulgar sua obra. De resto, como certamente não sabe fazer
outra coisa tão bem quanto escrever, é justo que se entregue por
inteiro à sua arte e fuja de pessoas que não têm interesse por
literatura. Alcides procura a companhia de pessoas de
sensibilidade, criativas. Nesse tipo de companhia é que se
compraz. O poema “Angoisse” ilustra sua obsessão literária. Nele
JAP diz: “fora do meu antro me desabito --- ostra inexorável ---
/decepado e indizível, declino e me elevo/ apalpo o corpo -
invólucro diuturno/ maldita composição de sal e carbureto”. Seu
antro é a poesia, onde se integra na orbita do imaginário. Sem
ela se dissolveria na pulverização do mundo. Fora do seu habitat
de poeta, desabita-se qual “ostra inexorável”, vulnerável à
mutabilidade.
Noutro poema que também caracteriza a sua obsessão
literária e o seu devotamento à arte de escrever, intitulado
“Não estou para ninguém”, revela que a única atividade que o
satisfez plenamente é a literatura. Não fora a poesia que
escreve certamente não suportaria a vida. Em verdade ela se
sobrepõe à própria vida. “Nem amigos nem mulheres me
apareçam./Não me chegue o carteiro mesmo com boas novas. Ao
mendigo que me bater à porta, fico devendo a esmola. Serei
perdulário noutra oportunidade. Agora faço poesia e o mundo que
se acabe”. Tudo parece insignificante quando o poeta exerce o
oficio órfico, tudo o que não se relacione com o trabalho
poético é um desperdício. “Nasci poeta como o rio na foz, a
sombra na árvore, o galo na aurora. A arte é uma febre, um
momento mágico, divino”, palavras estas que ressoam como um
toque de clarim na alvorada.
Maldição e misticismo,
um paradoxo ambulante.
Para interpretar a poesia de José Alcides Pinto é
necessário entender-lhe a cosmovisão e a concepção de
moralidade. Sua noção de ética é sensivelmente liberal e
libertina ou libidinal. Tem, paradoxalmente, aspectos de
ortodoxia e certos pontos dogmáticos. Sua filosofia de vida
oscila entre a fé e o ceticismo. O realce que atribui à
amoralidade ou a imoralidade de repente se anula, sobretudo
quando se trata de honrar os compromissos com os amigos e
defender o princípio da solidariedade humana. Embora descrente
da bondade dos homens, acredita no valor da justiça. Confia na
providência divina, e súbito, duvida do bem e nega a
imortalidade do espírito. De revolta, invoca os demônios.
Súbito, afirma que Jesus é o seu Mestre e nega a inexorabilidade
da vida.
Embora o misticismo primitivo dos habitantes do
sertão seja uma tônica em sua literatura, Alcides não acredita
que os fenômenos da natureza estejam vinculados à conduta moral
das pessoas, como se crê na mística dos antigos povos orientais
e alguns aborígenes. Segundo JAP, é uma ignorância brutal
acreditar, como os antigos hebreus, que os fenômenos da natureza
estariam condicionados ao merecimento ético das pessoas. Para
JAP não faz sentido a aliança que os profetas faziam com o Todo
Poderoso, com a promessa de uma conduta fiel em troca da
fertilidade da terra e das benesses da natureza. Nem tem
cabimento o nordestino pensar que a ausência de chuva pode ser
um castigo de Deus. Esse pensamento, no entendimento de JAP, não
tem fundamento, pois segundo pensa, a única coisa que altera a
natureza são os danos ecológicos, como as queimadas e a
poluição, pelas quais a natureza passa a castigar o homem, como
uma consequência previsível das leis da meteorologia e da
física. Assim, os danos causados ao ecossistema causam
perturbações climáticas podem provocar o aparecimento de vulcões
e outros fenômenos perigosos. Salvo em tais casos, a natureza
vem sempre em benefício do homem. Nessa linha de raciocínio, diz
que os deuses egípcios não deram nada ao povo do Egito. Hoje
nenhum povo adora o bezerro de ouro, que em nada favoreceu o
homem daquela época. Era um atraso cultural a imagem de um boi,
mas naquele tempo o homem não podia ter uma visão divina das
coisas, não conhecia os princípios superiores do espírito. Os
ditadores usavam o bezerro de ouro para manter os fanáticos aos
seus pés. Tento argumentar que os rituais de louvor aos bovinos
poderiam significar uma forma que o homem primitivo encontrou
para reconhecer sua dependência em relação àquele animal do qual
precisava na agricultura, atividade imprescindível a sua
subsistência. Por isso, de algum modo sentira a necessidade de
prestar reverências a quem o ajudava a sobreviver. Mas JAP, em
sua ortodoxia, acha absurda esta hipótese.
Capaz de dialogar com Satã e conservar na parede de
sua casa uma foto do Papa, Alcides declara-se um poeta trágico,
lírico, social e místico ao mesmo tempo. Por essa razão é que
acende uma vela para o príncipe das trevas e outra para o sumo
pontífice. De fato, a versatilidade é uma de suas
características, já que escreveu livros em todos os gêneros
literários, sobre os mais diferentes temas e com as mais
díspares nuances de significado e estilo. Entre os estilos
adotados, sua criatividade abrange do soneto tradicional ao
surrealismo, que prevalece em grande parte de sua obra. E o
poema experimental (o concretismo) do qual foi o principal
arauto em seu Estado. Nesse aspecto, faz-se notar a fluidez
delirante e oracular de certos versos com que, pela escritura
automática, tenta reconstituir a ordem pelo avesso. A
ensaísta Nelly Novaes Coelho destaca, no artigo
“Erotismo/Satanismo/Loucura na Poesia de José Alcides Pinto”, os
influxos do surrealismo incorporados em sua poética carregada de
elementos terrenos e impuros, a saber, a revolta contra a
falsidade das instituições burguesas, contra os tabus e
preconceitos da moral hipócrita. E relembra com propriedade que
esses aspectos terrenos, humanos e perecíveis da materialidade
são por vezes ofuscados pelo “visceral apelo de Absoluto”. Nisto
consiste a dicotomia radical da arte de JAP. Esse antagonismo
básico se configura em sua obra na forma de oposição entre
erotismo e ascetismo, amor e morte, ascese e abjeção, lucidez e
delírio, etc. O binômio Eros/Tanatos aparece nos Cantos de
Lúcifer como forças correlatas, na medida em que o Amor, que
afirma a vida, pode anular a ação destruidora da Morte. Não
obstante há também o vínculo entre erotismo e satanismo na
poética alcidiana. É nesse campo que a idéia de um amor
demoníaco, eivado de promiscuidade, se incompatibiliza com a
idéia de um sentimento redentor. Nesse particular, há um dado
biográfico que suscita curiosidade e ilustra a linha da sua
conduta. O poeta passou a reduzir suas incursões na sexualidade
promíscua por medo do contágio da aids. Mas o seu instinto de
auto-preservação jamais o impediu de escrever, falar e pensar o
que quer que fosse, uma vez que seus poemas estão sempre
refertos de uma linguagem de desafio e atrevimento, que o
emparelha realmente a Lautremont, Rimbaud, Baudelaire e Augusto
dos Anjos. Veja-se este exemplo colhido em Cantos de Lúcifer:
“Senhor, ensinai-me toda a casta de vícios sórdidos, para que se
instale em meu peito o ato da mais vil compaixão. O mal, como o
crime, reclama contrição. Prometo, Senhor, ser o mais devasso de
vossos filhos, para que me acedas o perdão que apaga as nódoas,
limpa o sangue das mãos, varre para distante as sombras negras
do coração. Que seriam dos perversos, Senhor, se não obtivessem
o vosso perdão?”
Num artigo escrito e publicado na imprensa cearense
louvei o livro “O Amolador de Punhais”, cujo título foi por mim
sugerido. Em tom de brincadeira JAP queria pagar-me pela idéia e
de qualquer maneira o livro foi dedicado a mim, como
agradecimento. Destaquei-lhe a força expressiva dos sentimentos
extravasados em vigorosa linguagem. A sua capacidade de combinar
o lirismo mórbido com o misticismo, num amálgama de imagens
horripilantes em que aparecem esqueletos, megeras, vilões,
pederastas, sátiros e sílfides em dança lasciva e sobrenatural.
Capaz de perturbar o juízo dos parvos e iluminar o delírio dos
loucos, os versos pungentes de ironia e indignação de “ O
Amolador de Punhais” envolvem o leitor pela cadência de
inusitado encadeamento frasal e pelas teias de densidade
metafórica, cheias de arrebatamento. No aspecto sórdido das
perversões e dos instintos, acentuado pelas hipérboles com que
descreve as cavernas abjetas da alma, a criatura humana se
assemelha ao piolho de cobra e ao escorpião contaminado pelo
próprio veneno e perdido num labirinto de maldição e morbidez. A
narrativa oscila entre a busca do cadáver de uma criança e a
paixão do narrador pela hipócrita Camila, cuja venalidade enseja
o questionamento ético e acentua o desespero, o ódio e o terror
que exalam das páginas do livro, num clima de pavorosa angústia.
Face a realidade do mundo, reduto imundo em que proliferam
pragas, chagas e podridões horripilantes, resta a revolta contra
a condição do homem degradado pelos vícios e pela sevícia,
exposto a fúria infame do assassino a sangue frio e ao escárnio
ignominioso do traidor. Resta, na concepção do Amolador de
Punhais, realizar um pacto desesperado com a justiça, assumir um
terrível compromisso com a verdade, antes que a morte derrame o
fel dos seus enigmas sobre o campo de miséria e pusilanimidade
da vida.
JAP se considera um escritor inconformado e seus
livros são uma prova dessa afirmação. Por isso, a pecha de
maldito lhe soa bem. A revolta fascina os que, como ele, fogem
do comum e do convencional e não se acostumam com a hipocrisia.
Diz que a burguesia sofre muito em seus romances. Ridiculariza-a
a todo momento. O Relicário Pornô, por exemplo, é um livro que
se insurge contra a moral estabelecida, e todo o sistema
vigente, isto é, a falsa moral, a moralidade burguesa, que é
mera opressão disfarçada. Essa pseudo-moral, que reflete os
preconceitos de uma classe dominante despreparada intelectual e
espiritualmente, é expressa nas escolas e em toda a sociedade. É
preciso, pois, repudiar tal forma de entender e dirigir a vida.
Portanto, embora seja um místico, acha que nasceu com o estigma
da maldição dentro de si. Declara-se um místico em estado
selvagem, à maneira de Rimbaud. Não se conforma com a injustiça
e a mentira que tornam a vida diabólica. Por isso come as flores
do aniversário, é um fauno que vive à margem do sistema e que,
portanto, não aceita a fantasia social. É muito angustiado com o
tempo e pensa que a vida é desprovida de sentido. Quando reflete
profundamente sobre o sentido de existir, a vida lhe parece algo
insuportável, ou suportável apenas por causa da literatura.
O aspecto sórdido e maldito de seu pensamento é
consequência de sua concepção existencialista, de sua constante
hesitação entre a perspectiva de aniquilamento da vida e a
esperança de sua continuidade em outras dimensões espirituais.
Mas apesar de sua visão fatalista, vivencia experiências
místicas de profunda revelação. Sente a presença de espíritos
declamando os poemas que escreve. Ouve vozes e as vezes vê
vultos de seres que não identifica. E fica em transe quando
atinge o auge do processo criativo. Nesses momentos não ouve e
nem sente a presença dos seus familiares, ou das pessoas que
habitam sua casa, mas de seres estranhos que povoam o seu
imaginário, e que se tornam personagens de suas esdrúxulas
narrativas. Depois, estes sintomas desaparecem e, ao que tudo
indica, volta à “normalidade”. Assim, o mesmo pessimismo que o
impele à maldição e aos embates e conflitos, o conduz ao
misticismo, como perspectiva desesperada de salvação. A respeito
de seu mais recente livro de poesia, “Silêncio Branco”, disse o
mestre Antonio Houaiss: “sua força verbal e mental da a seus
poemas normais um conteúdo de canto e espanto que basta para os
que crêem que fazer, criar, edificar poesia --- embora por vias
infinitamente diferenciadas -- não precisa de simulacros”. Em
seu claro depoimento, Houaiss fala ainda de seus “poemas normais
e anormais”.
A variedade temática da obra de José Alcides
converge na concepção do absurdo e do grotesco. Ante a
incapacidade humana de desvendar o mistério insondável da morte,
resta ao homem a evasão da loucura ou o desespero da rebeldia.
Mas estas situações extremas apenas complicam as agruras do
pobre mortal, já assediado por demônios e cercado de abismos.
Como alternativa à demência e à revolta, haveria ainda o sexo e
o sonho, os quais, conquanto soluções provisórias e paliativas,
seriam menos trágicas ou menos diabólicas. No seu inventário
criativo, lega-nos, conforme o estado de espírito, a maldição ou
o delírio. Duas possibilidades em face do inconformismo que o
absurdo provoca. No seu receituário recomenda a danação ou o
transe místico. Daí a concepção do niilismo e do fatalismo,
passando da maldição ao misticismo desesperado, numa sequência
sempre inusitada. Simbolizada pelo culto a Satã e a referência a
animais mórbidos, como abutres e morcegos, que aparecem nos
romances e poemas, nos Cantos de Lúcifer como nos Verdes Abutres
da Colina e em outros textos, a maldição às vezes descamba,
paradoxalmente na afirmação do reino divino. Assim, dialoga
intimamente com as forças do mal, como no poema “Necrológio”.
“Satã, tu, querido Satã, asa rubente de Caim/ à hora vesperal,
presto estavas/ à guarda dela, entre as mais cobiçadas de
todas”. (Ordem e Desordem). Neste poema, conversa também com o
anjo maldito, numa confissão de alto teor metafísico: “a todos
bafejaste com teu hálito de vinho podre/ teu ódio ao idílio e
tua inveja ao sonho/. Pois nunca conseguiste, ó velhaco mercador
de bruxas/ domínio sobre meus áureos pensamentos/ que não se
nutrem de lama podre como os vermes/ mas do fulgor mais alto das
estrelas./ Sim, em verdade meus lares desfizeste. Entanto, a
alma que anima essa matéria vulgar/ é mais forte que tuas
artimanhas/ e jamais terás sobre ela o menor domínio”. No
primeiro caso, o anjo rebelde aparece como aliado. O poeta
utiliza o adjetivo que os vincula num laço de afetividade. No
segundo, é o inimigo da alma humana, contra o qual precisa
precaver-se para que não lhe domine os pensamentos. Outro
exemplo notável da ambiguidade espiritual de JAP e da intimidade
com que dialoga com as forças do mal se encontra nestes versos
do livro “Reflexões-Terror-Sobrenatural”: “Quem te disse, Satã,
que minha alma está enferma? Quem te disse que as portas do
reino dos céus estão fechadas para ela? Ó velhaco embusteiro,
ladrão do óbolo do mendigo, teu farnel de trevas, roto, só
consegue guardar as moedas com que Judas negociou Cristo”. Esse
grau de convicção e firmeza pode vacilar subitamente nos
momentos em que o poeta se revolta contra a angústia. Nesses
momentos identifica-se com luxúria diabólica e assume a
necessidade do erotismo satânico. Então, analisa a precariedade
da existência corpórea: piolhos, urina e vômitos decoram o palco
da vida, já cheio de tarântulas, víboras, pulgas, morcegos,
vampiros e serpentes. E uma embriaguês alucinante permeia a
trama obsessiva e mágica da fábula alcidiana. Como se vê em “O
Amolador de Punhais”: “violei o campo natural e vivo como os
escorpiões da lua, de cabeça para baixo, a girar sob as patas,
emaranhado em meus anéis, em vôos e círculos precipitados”.
Sua idéia de um verdadeiro misticismo transparece
quando declara, radicalmente, que para pronunciar o nome de
Deus, e preciso despojar-se da carne. No entanto não pode abrir
mão das tentações do mundo, como a publicidade de sua obra e as
delícias do erotismo. Por isso o paradoxo entre o terror e a fé,
a aproximação e a súbita negação de Deus: “Porque não existe,
Deus existe”. A contradição flagrante se verifica também em
Fernando Pessoa, Lautreamont e Augusto dos Anjos, visionários e
ídolos de JAP. “O escatológico me persegue e me fascina”,
assevera convictamente. “As pessoas malditas assumem sua própria
perversidade, possuídas pelos demônios. Os poderosos da política
são todos assim. Quanto a mim, faz parte de minha natureza, a
integração no universo da condição humana, social, política,
mística, religiosa e filosófica”. Alcides julga que certos
poetas nascem como o Messias, marcados pela estrela dos magos,
para sofrer, amar e morrer. E vivem do desespero e da esperança
pela salvação. “Sou mais místico do que satânico. O Satanás em
minha obra é uma figura de retórica para ridicularizar a
mediocridade burguesa. Sou uma montanha de paradoxo. Todos somos
tarados. É esta uma faceta da vida”. Acredita que “não existe
culpa nem pecado para nada que se faça na vida”. É a consciência
do homem que estabelece ou não a culpabilidade. “Não inventamos
a natureza, portanto não somos responsáveis por aquilo que não
inventamos”. Essas diretrizes que formam sua verdade íntima o
tornam sagrado e profano ao mesmo tempo. Um sujeito mergulhado
na sujeira do mundo até a alma. “Não faço concessão ao decoro”.
No entanto, acredita que se fosse julgado pelo Tribunal Divino
sua bagagem literária lhe “asseguraria o Reino”. “Escrevo por
destinação, por uma necessidade orgânica e espiritual. A arte é
um tormento e um calvário. Numa entrevista ao jornal Diário do
Nordeste, de Fortaleza, perguntado sobre a razão da antonomásia
de maldito e fescenino, respondeu: “De que luz São feitos os
meus testículos? Meu corpo desprende som e luz, sou uma arca
onde guardo poemas e amores mortos, um nicho diante do qual me
ajoelho; sou uma boceta que expele urina e proporciona prazer e
carrega o orgasmo até o útero onde a vida ser anima. Não faço
muita diferença de um redemoinho que levanta poeira da terra,
destrói o ninho e a flor, a fragrância e o ócio, mas amo as
nuvens, as estrelas e as auroras onde minha alma se ilumina”.
O sem-sentido da vida está retratado em livros como
O Enigma, O Sonho e Estação da Morte, que compõem a trilogia
Tempo dos Mortos. Nesses livros o motivo ventral é a situação de
um paciente no hospital a espera de sua cirurgia, assaltado pelo
sentimento de desespero e expectativa. A angústia dos
personagens foi vivida pelo autor, que experimentou semelhante
drama em sua vida pessoal. No Poema à Difícil Realidade,
publicado no livro Poeta Fui, Ora Direis, sobressai o tom
melancólico e as imagens insólitas, características marcantes do
poeta maldito: “meu peito é uma arca fechada/ guarda o ruído de
um furacão e se contorce como lagarto queimado”. A desolação e o
desconsolo em que se encontra o levam a refletir sobre o modo de
reencontrar os bens que dissipou: confessa-se um pródigo
irremediável. “Que devo fazer para reaver o que perdi?/ Nada;
pois perdi o que não tinha/ .../ perdi o que não podia perder: o
caminho de casa”.
Alcides intitula-se “um viadão clássico-moderno”
porque está na linhagem de Gide, Oscar Wilde, Proust, Stravisky.
Nesse sentido não tem nenhuma objeção a ser assim apodado, e faz
mesmo questão de ter esse titulo que considera honorário, de
nobreza, uma espécie de lema de vida, um ex-libris, uma legenda,
de acordo com sua arte anti-convencional. Dentre os poetas
brasileiros, gosta de Olavo Bilac, Raimundo Correa, Alberto de
Oliveira, Castro Alves, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza,
Gonçalves Dias e Moacir de Almeida, que ele chama de “menino
gênio”, morto aos 22 anos de idade, autor de um único livro,
“Gritos Bárbaros”, pequena obra prima da poesia brasileira.
Relembro que, na década de 80, quando íamos
diariamente à Praia do Futuro, JAP gostava de recitar, antes de
mergulhar, a primeira estrofe do poema Mar, de Gonçalves Dias:
“Oceano terrível, mar imenso/ de vagas procelosas que se
enrolam/ floridas, rebentando em branca espuma/, num pólo e
noutro pólo./ Enfim... enfim te vejo: enfim meus olhos/ na
indômita cerviz trêmulos cravo/ e esse rugido sanhudo e forte/
enfim medroso escuto/. Recordo também que ele costumava citar
trechos de seu próprio poema “Unicórnio Dourado”: “a poesia é
didática, luz sobre a história e esquecidos altares”. Ao
recordar aqueles alegres passeios, JAP diz que somos da mesma
idade, entidade e identidade de idéias. E de súbito afirma que a
vida é trágica, o destino é cruel, não é um jarro de flores.
Então enveredamos pela metafísica, campo onde divergimos em
alguns pontos. Diz ele que o espírito se desintegra em 10 mil
elementos de movimento de luz e som, mas quanto a voltar a um
corpo, não acredita que isso seja possível depois da morte.
Argumento que, se o espírito não reencarnar, nós, humanos,
teremos uma chance única de nos salvar. Então, faço as seguintes
perguntas. Se não conseguirmos nos salvar nesta única
encarnação, que acontecerá com o plano divino de redenção da
humanidade? Será que uma só encarnação é suficiente para que
possamos nos purificar? E quanto aos puros, também se
dissolverão? Então JAP entra em contradição e concorda que é
possível que a consciência não se dissolva em elementos
cósmicos, pois acha que os espíritos que se purificarem terão a
chance de ficar ao lado de Deus.
De repente, quando a conversa está enveredando
demasiado no âmbito da espiritualidade, JAP muda
estrategicamente de assunto. O terreno do transcendentalismo não
é bem o seu forte. Prefere o domínio da escória e da podridão
mundana, onde, qual abutre, recolhe imagens repugnantes para
cingir a aura do seu poetar. Então reitera que esta no mesmo
patamar de Proust, Stravisky, Gide, Oscar Wilde e Baudelaire.
Encontra ressonância nesses monstros sagrados, em sua
universalidade. Escolheu a transgressão como deusa e musa, como
dele afirmou Ivan Junqueira. De fato, veja-se a agressividade
destes versos que exprimem, a um só tempo, repugnância,
abominação e asco: “És mais perversa que o assassino e tua alma
está cheia de piolhos e moscas como um monturo onde se atirou
uma carniça. Com nojo de ti as próprias víboras vomitam do
ventre amaldiçoado os folhos que acabaram de engolir. Talvez os
vermes, que são numerosos, e que se multiplicam debaixo da
terra, recuem diante de tua podridão, que não é só a do corpo
mas a da tua alma disputada por demônios!” (O Amolador de
Punhais - 3 Episodio). De fato, impropérios diabólicos,
pesadelos, cemitérios, crimes, imprecações e outras realidades
nauseabundas encerram o desatino léxico, a morbidez vocabular de
sua obra de ficção e de sua poesia. Por tais atributos, fecundo
escritor de têmpera indomável, JAP se credencia à posição de
lídimo herdeiro de grandes malditos como Rimbaud, Lautreamont e
Baudelaire. Com efeito, ele mesmo confessa seu gosto pela
escória e pela prostituição. Já que beijou travestis, pensando
que fossem mulheres e quando percebeu já era tarde. Estava com o
pé na escada de seu apartamento e “salve-se quem puder...”, como
ele próprio diz. Enquanto a maioria dos poetas zela
criteriosamente pela reputação moral e pelo prestígio social,
José Alcides faz pouco caso se o chamarem de doido. Faz mesmo
questão de forjar uma imagem de doidice, insensatez e devassidão
em tordo de sua aura. Segundo declara, essa é uma ideologia
intrínseca, um atavismo seu, parte de sua própria vida e do
absurdo existencial.
Apesar de todos estes rompantes amorais, JAP diz,
surpreendentemente, que o homem não deve largar sua primeira
mulher, isto é, aquela com quem se casou. Não deve fazer como
ele fez e depois se arrependeu. Nunca mais se encontra outra
igual. Mesmo tornando-se velha e fria, devemos nos manter
casados com a mulher do legítimo matrimônio, aquele que o padre
e o juiz sacramentaram em suas instâncias de poder. Pode-se
fazer umas piruetas por aí, mas depois voltar pra casa. Não se
deve arranjar cumplicidade com ninguém. Ser cúmplice apenas de
si mesmo. Vê-se, por trás da rigidez aparente de sua moralidade,
a flexibilidade com que a velocidade com que a reverte em nome
da libertinagem.
Volto ao tema do espiritualismo e lhe pergunto se
concorda que no plano astral superior Deus pode nos ter
reservado uma vida maravilhosa, plena de êxtase e que pode valer
a pena estar naquele lugar. Se ele acredita numa vida
espiritual, além desta vida em que encarnados, talvez melhor que
esta que vivemos em matéria. Quem sabe nesse reino da eternidade
ficaremos em situação melhor que esta do mundo terreno? Quem
sabe? E nós ignoramos tudo sobre tal paraíso enquanto
permanecemos exilados na terra. Então JAP argumenta que se Deus
eventualmente nos reservou esse prêmio, é preciso que tenhamos
mérito para tanto. Mas onde vamos arranjar esse mérito? Que
mérito temos nos para que Deus nos entregue tamanha dádiva?
Sermos filhos dele, digo eu. Ao que Alcides replica: sermos
filhos dele não significa sermos canalhas, bandidos,
maltratarmos nosso próximo, deixando as crianças morrerem de
fome como fazem os governadores e presidentes? Negligenciando a
educação? Quem não tem educação só pode ser um criminoso! brada
o poeta. Mas alego que ha pessoas que estão se dirigindo no
caminho do bem e os que não estão, também estão purgando, e um
dia pagarão toda dívida moral que tiverem, até se tornarem
dignos do Reino. Passarão por sucessivas reencarnações até
merecer o lugar esplêndido que Deus nos reserva. Quem sabe essas
pessoas que você admira, e diante das quais fica perplexo de ver
que tiveram de abandonar cedo a matéria, ceifadas precocemente
da vida material, quem sabe essas pessoas estejam num lugar
melhor do que nos aqui, que estamos enfrentando as lutas pela
sobrevivência no planeta? E Alcides responde então, em flagrante
paradoxo: ninguém pode saber os desígnios de Deus. Deus disse:
procura e encontrarás, bate e a porta se abrirá. Eu sou o
caminho, a verdade e a vida. Portanto, os que não seguem Jesus
não podem ter esse destino reservado. Digo, em seguida, que com
certeza os que o vem seguindo já estão lá, porque Deus faz tudo
da melhor maneira possível e ninguém deve duvidar que Ele faz as
coisas com perfeição. Quem duvidar disso está blasfemando. Deus
é a perfeição e faz tudo de forma perfeita. Os mistérios de Deus
têm uma lógica, nós é que não os entendemos ainda. Eles deixarão
de ser mistério quando compreenderemos esta sua lógica. E se Ele
faz tudo de uma forma absolutamente perfeita e correta, nós é
que precisamos melhorar o nosso grau de compreensão para
entender esta verdade. E como melhorar, pergunta ele? Através
não só da oração, mas de uma pratica de vida condizente com as
instruções do Divino Mestre, respondo eu. Mas Alcides não aceita
estes argumentos, que considera “kardecistas”. Em compensação,
chamo-o de existencialista radical e de agnóstico. Mas ele dá
uma gargalhada de deboche e diz: “a vida é muito trágica. Se
acaba tudo num abrir e fechar de olhos”.
Uma maneira de compreender a vida com tal carga de
ceticismo faz lembrar o filósofo espanhol Miguel de Unamuno, um
místico martirizado pela sentença de suas próprias dúvidas.
Contudo, quando Alcides entra em fase mística, repudia a sua
poesia erótica, como uma agressão ao espírito, e se agarra de
tal maneira com o socorro divino, que faz promessas e
penitências que seriam impensáveis em seu estado de lucidez
racional. Aflora súbito sua natureza religiosa, e com incrível
força dogmática. JAP explica que esses fenômenos de sua conduta
se devem ao profundo misticismo e transcendentalismo que o
caracterizam e que se refletem na sua poesia. Esse paradoxo
seria normal em pessoas sensíveis como alguns poetas que, como
ele, têm traumas espirituais. Mas em seus momentos místicos,
sente uma espécie de remorso, um peso na consciência pelo que
praticou de errado e abomina as blasfêmias que falou e as
patifarias fesceninas que praticou. Segundo me revelou, essas
fases acontecem nas mais diversas circunstâncias , e não apenas
quando está atravessando um período de crise, pressionado por
algum distúrbio de saúde. Quando está amando, por exemplo,
também se torna religioso e menos revoltado com a vida.
Atualmente apenas uma preocupação o aflige: a idade está
avançando, a velhice começando a chegar e a deixar suas marcas.
E constata perplexo, perguntando a si mesmo: Que fiz eu para a
minha alma? Nada. E tem vontade de pegar o manto que está
guardado no armário da fazenda e vesti-lo. Contudo, desiste da
idéia, com medo de não poder mais cuidar de suas filhas
Alesandra e Jamaica. Para doar-se completamente a religião teria
que renunciar a todo conforto material e viver de pedir esmola,
comendo apenas quando alguém lhe desse algo. Acha que não tem
saúde pra enfrentar uma vida de penitência, pois fez varias
operações para extirpar uma série de doenças que sofreu ao longo
dos 74 anos de vida. Lembra o dia em que encontrou os dois
frades franciscanos na igreja do Carmo, ambos de pés descalços,
com os pés cortados e sangrando. Ao vê-los, foi ao encontro
deles e disse: “frades, por obséquio, sou uma pessoa mística,
religioso e tenho vontade de um dia entrar num convento, mas
tenho medo de não conseguir-me manter lá dentro, dar
continuidade, e fracassar”. E acrescentou, justificando, deste
logo, a sua incapacidade de realizar o ideal místico: “Tenho
também crianças que preciso educar”, referindo-se as duas filhas
e ao Artaud, cujo nome foi dado em homenagem ao poeta francês
que tanto admira. Posso deixar-lhes uma pensãozinha, mas não é
suficiente. Preciso orientá-los”. E os dois monges o consolaram
dizendo-lhe que sua intenção já significava algum crédito ao
prestar contas no Juízo Final. Explicaram-lhe que andavam
descalços porque São Francisco não usava chinelo. Então Alcides
disse, “mas vocês estão com os pés sangrando ...” E eles
responderam: “mas isso não importa, quanto mais cedo se morrer
melhor”, concordando com S. Teresinha e S. João da Cruz, que
disseram “morro porque não morro”. O exemplo dos dois ascetas
lhe deu entusiasmo para renunciar a tudo, mas não teve forças
para concretizar esse projeto redentor. Ficou admirando à
distância o procedimento daqueles pessoas notáveis, que se
entregaram inteiramente a vida monástica e à atividade
religiosa. Na lista dessas pessoas inclui a princesa Diana
Spencer, pelo exemplo de humildade que ela deixou. Quando tomou
conhecimento de sua morte ficou profundamente chocado e chorou
muito. Teve vontade de imitar-lhe o exemplo. Abandonar as
futilidades da sociedade aristocrática, trocando a ostentação
dos castelos da monarquia inglesa pelo ninho frágil das crianças
pobres. “Me deu vontade de largar tudo. Não existe nada de
permanente no mundo. Se eu ganhasse cinco ou dez milhões na
loteria dividiria a metade com os pobres”. Contudo, acha que já
pagou muitos dos pecados que cometeu: “Um homem que tem uma vida
interior esfacelada como eu, com a alma cheia de punições
espirituais ...”
Entre os momentos felizes da vida, recorda o mais
feliz de todos. Foi quando adotou, com oito dias de nascida,
Alesandra, que passou a chamar-se Alesandra Maria de Andrade
Pinto, e cujo pai não conheceu nem procurou saber quem era. Este
foi certamente um ato de extrema generosidade humana, pois
trouxe para sua companhia uma pessoa que pertencia apenas a Deus
e essa pessoa o fez muito feliz. Recorda também, como o dia mais
triste de sua vida, aquele em que Chico, seu irmão, morreu de
câncer. O sofrimento foi muito grande e ele acompanhou todo o
processo de dor porque passou o inolvidável Chico Pinto. Só a
morte poderia separá-lo daquele irmão a quem se sentia
espiritualmente tão ligado. O irmão a quem ele queria mais bem.
Também um grande amor fraternal o ligava à Gercy, irmã que
morreu antes, mas com ela não conviveu tanto quanto com o Chico.
Ele era o seu braço direito. Quando viajava e chegava em casa,
se a televisão estivesse quebrada, o Chico imediatamente mandava
consertar. Quando queria pagar, ele dizia, “deixa de besteira,
poeta, vai cuidar da tua vida”. Trabalhava no Banco do Brasil,
vivia muito bem e sempre ajudou o poeta nos momentos de
necessidade. Mas sentiu sua morte não porque o ajudasse, mas por
puro amor e apego a uma pessoa de um coração incrivelmente
humano. São os dois extremos que marcam o poeta na terra. Teve
inclusive uma experiência mística, uma visão premonitória da
morte de sua irmã Gerci. Essa dor que ainda hoje o persegue. Ela
era muito bonita e religiosa. Sua morte em plena mocidade abriu
um vazio dentro de si. Foi no tempo em que morava no Recife. Sua
imagem se fixou em sua retina e está presente em toda a sua
poesia.
A idéia de uma concepção existencial do mundo
aparece na maior parte dos seus poemas. Um dos que escreveu num
hospital, quando achava-se enfermo e que se chama O Tempo da
Morte, bem exemplifica esta concepção: “O tempo da morte/ é o
tempo da insorte/ é o tempo do corte/ é o tempo do forte”. Dá
testemunho da dura realidade e dos padecimentos porque teve de
passar quando se submeteu as operações. O tempo do corte exige
do homem a força para suportá-lo, força que só se encontra na
fé, pois no momento de angústia, se não recorremos aos poderes
divinos, a sensação de desamparo e abandono torna o sofrimento
ainda mais desesperador. “É o tempo da foice,/ que ceifa sem dó/
é o tempo-lamento/ das penas de Jó”. A foice aqui adquire dois
significados o de bisturi e o da própria morte. A noção de
existencialismo está sobremodo ligada a de espiritualidade na
arte de Alcides. O medo, os perigos, a perspectiva inesperada,
tudo assusta o frágil ser humano em sua condição mortal. A vida
é plena de sobressaltos, expectativas fatídicas: “A vida é esta/
armadilha (oculta?)/ entre o passo, o pânico, o grito, o
desespero” (Vida-Havida). “Tudo é ventura, mágoa e vão
contraste” (Camões). Mas, simultânea à impressão do pânico
iminente diante do trágico e do efêmero, sobressai algo de
devoção, de confiança e de entrega ao poder da fé: “Com o teu
rosário de contas estelares/ e a cruz de Cristo - quem poderá
investir contra tua fúria?” Nestes versos dedicados à sua mãe, o
arquétipo da mulher se transfigura na mágica da metalinguagem,
torna-se a heroína invencível, por divinas razões. Torna-se o
sustentáculo da casa, a estrutura sólida da própria vida:
“porque tu és os contrafortes, a cumeeira, a cobertura protetora
da prole de teu útero/ forte como o amianto. Desse modo, é
instantânea na poética de Alcides a transmutação do realismo
mágico e do terror na esperança na redenção do espírito. O mesmo
impulso que o fez crer e descrer, impele o pêndulo da esperança
e do desespero, que o anima a voltar a vestir o manto
franciscano e ao mesmo tempo o mantém prisioneiro no cárcere dos
sentidos, pois a vocação da carne não lhe permite o gesto
desprendido. No formidável texto de “A Pequena Varredora”, do
livro “Ordem e Desordem”, há exemplos da perfeita conjugação
entre o existencial e o espiritual. A varredora é uma menina
frágil e inocente, que inconsciente da grandeza do seu ato,
limpa a escória do mundo, a perversidade dos ditadores, o
cinismo dos párocos, o vômito dos bêbados, etc. “Tanges a
vassoura com tamanha leveza/ tal pássaro que se alça ao morno
vento da tarde”. Em versos que relembram Victor Hugo, Alcides
acentua o contraste entre a pureza, a formosura da criança e o
lixo da hipocrisia e do crime da sociedade. Súbito a varredora
se transfigura em mito. É Vésper da tarde, portadora de grande
ventura, pois representa o ideal do belo e do verdadeiro, tão
caros ao espírito. Tudo nela é delicado e frágil, seu corpinho
franzino como uma pétala representa a esperança de transformação
do mundo: “Oh princesa do lixo!/ Oh vestal! Oh sílfide!/ Flor
que recolhe o lixo em seus perfumados pistilos,/ O rouxinol e o
sabiá cessam o seu trinado/ quando tu passas bailando com tua
vassoura/ empurrando o lixo para o corpo acéfalo do mundo/”.
Como as coisas puras e os seres sensíveis, a verredora se expõe
aos perigos de um mundo perverso -- aos micróbios que se agitam
no ar quando ela tange a poeira com leveza de pássaro que se
alça ao vento da tarde.
A miséria social é desvelada entre as tênebras do
horripilante, em meio ao pavoroso quadro de podridão, de
abutres, de insânia e de vezânia que prevalece na vida dos
homens. Súbito, o sobrenatural e o fantástico assomam no
discurso e a natureza se transfigura. No poema “A Miséria
Poderosa”, em Os Amantes, o mar ergue as pálpebras para ver o
espetáculo oprobrioso da miséria em seus redutos de lama. O
discurso oscila entre a indignação diante da condição humana e a
exaltação do mar como fonte de inspiração e alumbramento. Em
metáforas inusitadas que configuram um paradoxo entre lirismo e
irreverência, entre a admiração ante a grandeza oceânica e a
visão indesejável da peste, da chaga que penetra no coração
humano, a alma geme, “como um vulcão rompendo suas milenares
cadeias”.
Explica o poeta que os seus procedimentos díspares na vida se
devem a natureza bruta, selvagem, contraditória, mística,
sensual, lírica e ética de si mesmo. A própria vida é cheia de
paradoxos, pois nos traz inesperadamente e aparentemente sem
motivo, alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, dádivas e
sacrifícios. Confessa que já não se empolga como antigamente
quando vê um livro seu publicado. Aos poucos se lhe desaparece a
mocidade e com ela a alegria de viver. Já não tem boa saúde. Fez
várias operações, e atualmente se queixa de dor nas pernas, por
causa de varizes. “Não dá mais pra ter uma mulher na vida com
essa idade”, lamenta. E reconhece que cometeu pecados. Houve o
caso da portuguesa com quem namorou quando morava no Rio e que,
anos depois ao regressar aquela cidade, foi visitá-la e ela que
não quis nem recebê-lo, dizendo “você acabou com minha vida e
não quero lhe ver mais não” e bateu a porta. JAP diz que em seus
74 anos bem vividos já fez muita coisa ruim, “eu sou um homem
sensual ...” Trata-se de Adelaide, mulher alta, magra, e linda
portuguesa que namorou no Rio. Ela trabalhava no IPEC e morava
em Botafogo. Teve um sonho com ela como se estivesse acordado.
Ela aparecia velha, gorda, pobre, horrível. O cabelo crestado.
Levantou-se apavorado. Depois de uns 4 ou 5 anos que teve o
sonho, voltou ao Rio de Janeiro, e foi à rua Farani para
encontrá-la. Tocou a campainha, ela abriu a portinhola e
perguntou quem era. E apareceu com a mesma imagem do sonho ...
E ao perceber que era ele, gritou: “você acabou com minha vida
... vá embora ...” E bateu a porta, como uma maldição. Ele hoje
tem remorso pelo que fez e diz que viveria com ela, mesmo com
aquela cara de espantalho. Mas ela deve nutrir grande ódio pelo
poeta, pois disse ao vê-lo, “você acabou com minha vida”. Soube
depois, através do porteiro do prédio, que a mãe de sua ex-musa
morrera havia alguns anos e que desde então ela sofria
constantemente com crises nervosas. A propósito de sua vida
dissoluta, JAP confessa que só veio criar juízo depois de velho.
Antes era um bandido honesto e decente. Mas sempre foi um
visionário do sonho, pois só o sonho da arte e o extravasamento
do sexo podem redimir o ser do absurdo existencial.
Alcides acredita que uma pessoa não é culpada pelo
sofrimento causado a outra por falta de conhecimento. No
entanto, terá de pagar por tudo quanto faz de errado, mesmo se o
fez pensando que estava certo. Constata o quanto é difícil
aniquilar todo o orgulho: só Deus pode dar força pra se cumprir
uma destinação destas. Se assumisse a condição de asceta
resolveria o problema da angústia espiritual, pois perderia todo
o amor próprio, imerso na solidão metafísica. Seria a renúncia
total ao mundo. Então pergunto-lhe se em sua opinião essas
pessoas renunciadas, como os dois monges que conheceu na igreja
do Carmo, estariam realmente na plenitude de sua satisfação
espiritual. Ele me confirmou que acredita que aqueles anacoretas
já não estão sofrendo com o mundo, pois as coisas mundanas já
não os interessa. De todo modo estão causando sofrimento físico
à matéria, à carne, mortificando-a, mas estão salvando a alma
através do jejum e da maceração do corpo, como fazem os santos.
Pergunto se esse sofrimento imposto ao corpo não seria mais
cruciante que o sofrimento da não-renúncia, ou seja, a dor de
viver sem uma entrega total à vida religiosa. Diz ele que deve
haver um conforto espiritual para quem pratica isso. Tem certeza
de que se chegasse a acabar com o orgulho e se suas filhas
tivessem uma melhor condição material, se se tornassem
independentes e não corressem o risco de morrer de fome, ele
seria capaz de pedir esmola tranquilamente. Renunciaria à beleza
e à sensualidade do mundo em busca de uma beleza maior, da
verdade maior que é Jesus. Seria um ato impessoal, ditado pelo
espírito. Teria a coragem de viver sem qualquer ambição
literária, anônimo perante os homens, mas reconhecido por Deus.
E mesmo que pensassem que ele estava doido, não se incomodaria.
Jamais se incomodou com o que quer que pensem a seu respeito, e
não seria agora que se perturbaria com a opinião dos outros.
Argumentei que considero possível a plenitude espiritual sem a
renúncia, isto é, com a pessoa usufruindo dos bens do mundo, ao
que José Alcides redarguiu que alguém usufruindo dos confortos
materiais teria mais dificuldade em entrar no reino do céu:
“mais fácil seria um camelo passar dentro de uma agulha. E
acrescentou: “Meu reino não é deste mundo”, como reforço ao seu
argumento.
De súbito empolga-se com outro assunto e começa a
falar de poesia. Colocamos duas cadeiras no meio do terreiro, no
terreno em frente à entrada da fazenda e vimos o por do sol e o
aparecimento das primeiras estrelas no céu do sertão. Um
espetáculo que só quem viu sabe a beleza que se revela. As
Terras do Dragão estão circundadas pela Serra do Mucuripe, que
no crepúsculo se envolve de cores de diversos tons e uma brisa
balsâmica vem nos deleitar e reconfortar do calor sufocante do
começo da tarde. Depois de alguns minutos de contemplação da
paisagem, o poeta recomeça a falar, velozmente: “Todos
reconhecem o meu talento”. E sabem que sou um marginal
clássico-moderno. Qual o escritor que tem esse desprendimento
que eu tenho, de viver com uma nêga, uma cabocla? Só
Camões. Viver com mulheres sem nenhuma condição moral, passear
com elas na frente de todo mundo e assumir. Eu não minto, é
muito difícil eu mentir ... Já ouvi certo poeta amigo dizer que
queria o caixão mais caro, as vestes funerárias mais bonitas
para as pompas de seu enterro. E a melhor classe de amigos,
pessoas nobres para acompanhar o féretro. Eu prefiro uma rede,
um caixão de terceira classe. Se me dessem a sereia de ouro eu
mandaria empurrar no rabo, não quero sereia de ouro, não quero
academia. Pra que? Eu nunca quis academia. Só aceitei uma placa
na casa onde morei porque foi uma homenagem a mim dedicada pelos
artistas que pintaram os murais”. Na casa na rua Rodrigues
Júnior, onde morou durante alguns anos e que foi vendida e um
advogado para servir de escritório, tem hoje uma placa de bronze
como tributo ao poeta. JAP vendeu-a e com o dinheiro comprou a
fazenda Terras do Dragão e a casa da Vila Cordeiro, onde
atualmente reside. Para não parecer que saiu perdendo, disse-me
que se não a tivesse vendido ela teria caído por cima dele. O
advogado a reformou. Foi um mal que veio para o bem. Os pintores
vão morrendo mas a obra fica eternizada. Disse isto referindo-se
aos murais pintados por diversos artistas plásticos cearenses
nas paredes da casa. Na parede de sua casa atual na Vila
Cordeiro, conserva a foto em que figura, vestido com o hábito
franciscano, ao lado de uma plêiade de poetas, todos seus
amigos: Antônio Girão Barroso, Otacílio Colares, Caetano Ximenes
de Aragão, Milton Dias, Barros Pinho e Artur Eduardo Benevides.
Destes amigos só três ainda estão vivos. Oh vida terrível!
exclama, meditativo.
Na época em que estava trajando o hábito
franciscano, no ano 1980, em cumprimento a promessa que fizera,
por recuperar a saúde, ficou ressentido com um certo confrade,
um escritor de renome em Fortaleza, que ao vê-lo andando de
chinelos, parou o carro e o criticou, asseverando que um
escritor de sua categoria não deveria andar de chinelos, pois
envergonharia a classe. O beletrista não entendera o seu gesto e
certamente, pensou: isso é um doido! Um irresponsável! Só faltou
dizer... E depois de fazer-lhe tal advertência, arrancou o carro
bruscamente. Mas Alcides compreendeu a atitude do amigo e acha
que não foi uma estupidez, mas uma atitude que traduz o modo de
pensar dos burgueses. O cidadão ia dentro de um carro de luxo,
tinha muito dinheiro. E é natural que com o status social que
tinha não tivesse a coragem de trajar um manto franciscano e nem
mesmo a sensibilidade de entender a dimensão de tal atitude.
O poeta me recomendou escrever tudo isto, para
servir de exemplo ao pessoas que como ele erraram e hoje estão
pagando. Noutra ocasião em que vestia o hábito, quando passava
por baixo de uma construção com sua filha Jamaica, uns operários
gritaram: “Respeita a moça, padre safado!” Alcides fez pouco
caso da ignorância daqueles trabalhadores que jamais leram sobre
a vida de um místico e jamais entenderiam o procedimento de um
monge. Ao invés de ficar magoado com as zombarias de que fora
alvo, andava com níqueis nos bolsos para dar esmolas a quem lhe
pedisse, de tanto que já estava afeito ao hábito. Contudo, mesmo
de balandrau não pôde evitar o assedio de uma freira. Tudo bem:
a carne é fraca e o demônio é forte, tem muita astúcia. E a
promessa foi com São Francisco, não com as mulheres ... Também
na época em que estava de batina uma mulher pediu-lhe que
fizesse uma promessa para seu marido deixar se beber. E o seu
conselho foi o seguinte: largue esse vagabundo e arranje coisa
melhor.
A cirurgia que motivou a promessa foi devida a uma
pedra nas vesícula. A radiografia acusava um tumor. Daí a
promessa. Comprometeu-se a não mais escrever poesia obscena e a
rasgar os poemas imorais que já publicara. Então, depois que
teve a confirmação de que não se tratava de um caso grave,
começou a portar o manto franciscano em sinal de gratidão a Deus
pela graça alcançada. “Sou um cristão primitivo e a meu modo:,
declara convicto. “Tudo o que vem de Deus é bom, mesmo que venha
com a aparência do mal. Ao todo fez dez operações: vesícula,
úlcera duodenal, hérnia inguinal, cisto na garganta, apêndice,
amígdalas, próstata, etc. Em todas as ocasiões se sentiu
desesperado no período pré-operatório e recorreu a Deus, tendo
encontrado amparo na Providência Divina.
“O’, o vento, o vento, este higiênico ladrão
universal. Oh frase bonita, é um viado! exclama “elogiando” a si
mesmo. Não existe nada no mundo a não ser poesia ... Como é que
morre uma mulher linda daquela com trinta e poucos anos de
idade?”, (refere-se à princesa Diana). Contou-me então o que
sabia sobre a vida da princesa. “Ela nunca teve prazer na vida.
Casou-se com um cara que era um bruto, que já tinha outra mulher
e ela não sabia. Então começou a sofrer estupidamente. Pegou
uma doença estranha, em que a pessoa come e depois vomita tudo
em seguida”. Depois veio a frustração e Diana tentou o suicídio
várias vezes. Renunciou ao trono e à riqueza e veio o divorcio,
que foi uma humilhação terrível. O mundo veio acusando-a de
prostituta. Depois de tudo isso ela chutou todos os prazeres da
vida e começou a se dedicar a viajar e visitar os pobres, as
crianças da Etiópia, da Bósnia. No Brasil subiu o morro de pés
descalços, vestida com roupas comuns. Passou mais de dez anos
peregrinando assim e fundou sua própria irmandade beneficente,
com a ajuda de Teresa de Calcutá. Deu quase tudo o que tinha
para a irmandade. E quando havia encontrado o cara com quem
poderia viver um grande amor, subitamente perdeu a vida. Diana
renunciou a tudo, a riqueza, a beleza, etc. Esses nobres são um
bando de devassos, só ela teve a coragem de tomar uma atitude
desprendida desse tipo. Alcides confessa-se fã incondicional de
Diana Spencer. Disse que chorou imensamente a morte da jovem
princesa e acha que o seu exemplo deveria ser imitado
principalmente pelas pessoas ricas. Colecionou seis revistas
sobre Diana e leu tudo o que foi publicado sobre o assunto na
imprensa brasileira.
Continuamos a falar sobre temas metafísicos.
Digo-lhe que, em minha opinião, pode ser que haja uma lógica por
trás dessa aparente absurda realidade, a qual, por falta de
conhecimento, não estamos ainda capacitados a entender. Mas há
pessoas que entendem isso. Essas pessoas que adotam o
procedimento de renúncia certamente têm um esclarecimento, por
inspiração mística, sobre essa realidade. Mas Alcides me
interrompe e assevera: Só o Messias sabe. Ninguém mais conhece
os desígnios de Deus. Quanto a explicação do kardecismo, de que
certas acontecimentos na vida são consequências de atos
praticados em vidas anteriores, ou nesta mesma vida, acha que
este conhecimento não nos dá nenhuma paz. Argumento que pelo
menos se pode saber que existe uma lógica, que nada é tão
absurdo. E JAP contesta: de nada serve essa lógica para a
conformação do nosso espírito, nossa paz interior. Só Deus sabe
se voltaremos ou não reencarnados. Insisto no tema. Digo que
existe o ensinamento dos profetas, dos sábios antigos e que se
obedecermos tal ensinamento poderemos nos aliviar de muitos
perigos e evitar muitos danos. Mas não se pode evitar a morte e
o envelhecimento, e ai reside todo o problema, retoque Alcides.
Ninguém aceita a morte. O sofrimento é a purificação, mas é
preciso renunciar a todas as comodidades do mundo renunciar à
saúde, como os frades franciscanos da Igreja do Carmo. A própria
irmandade não aceita o ascetismo deles, e por isso vivem como
marginais e mendigos, atirados num cubículo no subúrbio de
Fortaleza. Porque São Francisco era assim. Viver como São
Francisco viveu é renunciar a tudo, prazer, dinheiro, fama ...
Replico que cada pessoa tem o seu caminho, seu método de
evolução ... E JAP interrompe, taxativo: “não se pode seguir o
caminho de Deus sem renunciar aos bens materiais”. Insisto em
que seria possível aceitar os desígnios supremos de uma forma
serena. sem temores ou conflitos, sem necessidade de viver como
um mendigo, pedindo esmola irresponsavelmente. Ademais não
adiantaria forjar uma aparência de santidade, o que importa é o
sentimento interior de desapego e de amor ao próximo. A conversa
vai tomando um rumo excessivamente polemico e resolvemos mudar
de assunto. É justamente nesse momento que sobrevém a inspiração
e o poeta começa a recitar, criando de improviso, os seguintes
versos que anotei num caderno:
“Há um urubu voando no céu escampo./ Contemplo as
pedras, as pedras milenares./ Que alma possuirão?/ Como as
fogueiras, elas ardem em seu interior./ As pedras ancestrais
como os poetas/ e como os poetas ancestrais as pedras também se
comovem, /diante do homem, da grandeza, da firmeza/ e da
fragilidade do homem,/ pois tudo o que existe é frágil,/ menos
as pedras, os rios, os mares e os astros./ Por acaso uma mulher
é frágil?/ Uma mulher que fecunda o homem não pode ser frágil./
Ela é a matriz e o homem é apenas uma fonte de referência./
... Belas e afagantes carnaubeiras,/ que belos seios
possuis?/ Que coração de morto os suspeitaria?/ Não, vos sois a
vida, que nasce do caule,/ das raízes, da terra e chegais a uma
altura invejável?/ Vossa cor, no verão ou no inverno é sempre
verde,/ como a esperança, o amor, a vida nascente,/ a vida de
todas as horas, de todos os dias, eterna./ Vós sois o cálcio da
terra, a sutileza do olho, o gesto abençoado de Deus, a menina
que cresce em esperança. E como a fada sonha, como a vaga emerge
sob a dança do vento.
Oásis onde impera o verde e a vertigem/ e onde a
imagem da Graça se reflete/ na superfície tranquila e solitária
das águas./ Por um momento só,/ oh lago, oh lago, estou,
estaremos,/ eu e meu amigo, dois poetas aos teus pés para que
nos abençoes/ e nos faças teu irmão/ na comunhão do espírito e
do corpo de luz que afagas/ com os teus beijos imprevisíveis”.
Os urubus sorvendo a linfa da caatinga,/
enfileirados à beira dos açudes,/ como um exército negro,/ como
um cortejo de vampiros/ devorando restos de uma raposa no
asfalto,/ em plena tarde como frades malditos encapuzados e
mórbidos./ Oh relação estranha de feiticeiros, oh ato
inquisitorial de íncubos./ Voai, dispersai-vos no azul que tanto
conheceis./ Maldita ave negra que lembra Baudelaire,/ corvos da
noite, embriagai-vos,/ fugi, feiticeiras do medo,/ tabacaria do
ócio, luz do ícone.
Apesar de parecer cético em muitas ocasiões, Alcides
demonstra ser dotado de profunda religiosidade em outros
momentos. Antes de comer, por exemplo, sempre reza agradecendo
pelo pão de cada dia. Roga a Deus que “olhe para os vossos
filhos que passam fome, injustiça, desespero, aflição e doença”.
Foi criado em ambiente místico, onde se rezava antes das
refeições, pela manhã e ao deitar. Isso ficou gravado em sua
memória. Embora rebelde, jamais perdeu o sentido religioso.
Tendo estirpe de cigano, andando sempre com uma rede a tira-colo
e uma mulher escanchada no ombro, mesmo assim sempre obedeceu a
ditames de ética. Procurou ser bom filho e bom amigo. E se já
mentiu a algumas mulheres, é que elas também lhe mentiram muito
mais. Aliás, como escreveu no Relicário Pornô, toda mulher
mente, e as que ainda não mentiram estão na fila esperando sua
vez.
Sua obra reflete o lado cristão do homem. Fazia-me
essa revelação quando chegou uma família pobre ao portão da
cerca de arame, pedindo-lhe um resto de esterco que havia num
monturo em frente a fazenda Terras do Dragão, para utilizar em
sua plantação. Alcides deu-lhes o estrume e deu-lhes também pão
e rapadura. Depois, continuou falando: “a quem pedir ou suplicar
Deus ouve e atende. Pois tem o coração magnânimo e bom. A prece
é um pedido. É preciso rogar a Deus que tenha piedade de nós.
Deus também precisa de nós para que a palavra do Pai se cumpra.
Ele precisa salvar o rebanho humano, torná-lo eterno, reunir os
pecadores. Sua bondade é incomensurável”. E ai esta o exemplo da
mulher humilde, que ficou feliz de carregar três sacos de bosta
seca. Uma mulher e duas criancinhas colocaram dentro de sacos o
estrume para plantar sementes que Deus tornou pródigas para o
mundo. Semear no seu canteiro, já que não pode comprar. Para
ela, a mulher que lhe pediu aquele presente, o esterco seco de
gado era mais precioso do que o ouro. A pobre mulher sentou-se
sobre os sacos para descansar, quando eles estavam plenos.
Depois seguiu com as duas crianças sob a quentura do sol, no
meio do sertão. Perguntei a Alcides como faz sua oração noturna.
Ele reza sempre em pé, pois deitado seria uma falta de
reverência. “Jesus, dai-me força para morrer, assim como me
deste para viver. E não vos ausentai do meu leito de morte”.
Acrescentou que já tem o seu epitáfio: "aqui repousa JAP, um
servo de Deus. Orai por ele”.
Seu misticismo tem momentos de transe e vidência.
Viu a sua irmã Gerci, em pleno meio-dia, quando escrevia uma
reportagem. Ela apareceu em sua frente, caminhou quatro passos
sem se deter, esboçando um sorriso triste, passou como um vulto
errante e desapareceu na parede ao fim da sala. Isso lhe
suscitou maus presságios. No dia seguinte veio a confirmação de
sua morte. Outro acontecimento extraordinário, uma espécie de
revelação, foi quando encontrou a pedra discóide ou fóssil
sideral. Considera o tal fetiche, encontrado na fazenda
Equinócio, um signo do sobrenatural, algo que o distingue como
uma criatura extraordinária dentre os humanos, “pois o mito só
se revela a quem está destinado”. Trata-se da imagem de um disco
voador em miniatura, diz o poeta. Encontrou o objeto quando
fazia a sesta, andando a cavalo. Sentiu uma inquietação estranha
e foi ao final do terreno da fazenda, onde os trabalhadores
faziam uma cerca. A certa altura freou o animal, mergulhou as
mãos em um seixo à beira do riacho e o objeto saltou-lhe aos
olhos, estranho e enigmático. Logo pensou tratar-se de um
segredo da vida extraterrestre, um fóssil sideral. Esse objeto
místico foi alvo de reportagens de diversas revistas
especializadas em temas espiritualistas. O tal pedregulho
espacial fez tanto sucesso que, segundo me revelou, vendeu-o por
14 mil reais a um engenheiro, que lhe paga o valor a prestação,
até o ano 2000. Noutra ocasião, impelido por uma força estranha,
descobriu na fazenda de seu irmão Chico Pinto, uma pedra com a
forma de um braço, espécie de totem que denominou de “o braço do
primitivo”. Estes achados seriam sinais de sua missão de poeta
místico, prodígios de sua vidência. A poesia é sentido e
revelação em si mesma, enquanto enigma.
Erotismo e lirismo
Quando lhe perguntei qual a maior fonte de
inspiração para um poeta, respondeu-me: a mulher. Ela é a única
coisa essencial para alguém que nasceu sensual. Gerardo Mello
Mourão, poeta amicíssimo de José Alcides, diz que, como
Lawrence, Alcides só sabe andar com uma mulher escanchada no
ombro. Veja o exemplo de Deus, que fez Eva, como um complemento
para Adão. “Eu jamais viveria sem o sexo, e quando digo o sexo,
digo a mulher, digo a virtude, digo a religião, o misticismo e
tudo o que é belo no mundo. As plantas, os animais, tudo tem
sexo, todo ser da natureza tem o seu par, até as flores. A
própria aurora tem seu dia. Ela se levanta sanguínea como um
menstruo, depois sua luz é pálida como uma mulher, como uma
camélia, romântica. Tudo isso é o amor e tudo parte da mulher.
Sexo envolve tudo. Nesse ponto lembrei-me de um poema em que
Walt Whitman diz exatamente a mesma coisa: “Sex contains all”. A
coincidência do seu pensamento com o do poeta norte-americano
prova a existência da sincronicidade de idéias, que faz
coincidir a maneira de pensar de alguns poetas. E prossegue,
dissertando sobre o tema: “só o mito pode viver sem uma mulher,
porque está acima do bem e do mal e não possui um corpo como
nós. Não se pode avaliar a dimensão enigmática do espírito. Mas
o homem tem que ter uma mulher e ter sexo, no bom sentido”.
A aceitação total do erotismo é uma proposta de vida
para a falta de sentido da existência humana. Na fusão de
hormônios e sensações do ato sexual dá-se uma catarse, uma
liberação dos males e da angústia do absurdo do mundo. A sua
tese sobre a comunicação erótica figura no livro "Comunicação:
Ingredientes-Repercussão", escrito para servir de material de
consulta para os seus alunos da Faculdade de Jornalismo da
Universidade Federal do Ceará. Num dos ensaios JAP expõe que o
erotismo impregnou sempre a história da humanidade, desde os
primórdios, mas acentuou-se hodiernamente com o surgimento dos
meios de comunicação e seu aparato tecnológico. Todo esse
aparelhamento audiovisual e cinematográfico, que esta absorvendo
os sentidos e subjugando a mente humana na forma de um
condicionamento inexorável, tem como fundamento o apelo sexual.
O certo é que, desde os povos primitivos, as imagens e a escrita
pictórica já eram plenos de erotismo. A força de Eros atravessa
o tempo e se revela no sincretismo religioso dos anjos e na
conduta dos deuses e demônios da mitologia, pois se trata de uma
energia que deriva da própria natureza. De resto, o sexo é
indistinto da religiosidade, estando impregnado dela nas seitas
orientais e na vida dos santos e ascetas, que maceram o corpo
com flagelos e jejuns exatamente por causa do sexo. Tentam
reprimir a força libidinosa que se apresenta maior do que a
capacidade de reprimi-la ou sublimá-la. Na mente dos humanos,
como no instinto dos animais e nos processos da natureza,
existe um sentido de sexualidade. Sua obra não poderia
desviar-se de tal realidade, que se apresenta como alternativa
para o caos do mundo e como cumprimento de uma lei natural. O
erotismo em sua poesia consiste na tese de que o imoral não
existe, e sim a hipocrisia, que é revoltante. Embora se
considere de natureza voltada à pureza, diz que não pode
renunciar as vibrações do corpo, pois até as pedras amam. “Veja
o orgasmo de Netuno boiando nas espumas do mar, o gemido
voluptuoso e lascivo das sereias nas ondas”. Não se pode viver
negando a fonte do prazer da vida. Mausie, personagem de Entre o
Sexo, a Loucura/ a Morte, representa sua idéia de erotismo, de
necessidade liberdade para o extravasamento da energia sexual.
Ela é uma espécie de deusa do amor, dotada altíssima
sensibilidade e vidência, mas possuidora de um furor lascivo
incontrolável. Outro exemplo é o do vigário fornicador que
mantinha relações sexuais dentro da própria igreja. Também o
Coronel Antônio José Nunes, de Os Verdes Abutres da Colina,
personificação do garanhão que cobre as fêmeas da região,
inclusive as próprias filhas, conduta inspirada pelo demônio,
que em sua fábula terminaria por destruir todo o povoado de Alto
dos Angicos. Recordemos que o apetite sexual do personagem se
transfere para o bisneto, autor do livro, cuja caricatura pode
revelar uma versão de Príapo pós-moderno. A esse respeito
Alcides declara-se capaz de enxergar uma bunda a uma légua de
distância. Frases doidas como esta se encontram abundantemente
no livro Relicário Pornô, que mereceria um capítulo à parte para
comentá-lo. Há nele tanto versos de pesada pornografia quanto de
mavioso lirismo. Por exemplo: “Que natureza possuo, capas de
amar a mulher mais desprezível dos prostíbulos ébria e carregada
de piolhos e afastar de minha presença, com uma estocada, uma
infanta linda como a lua e mais sorridente do que o lago”.
“Prostitutas! Ó virtuosas amantes! Antes que o pároco execute os
ofícios da morte, ide colher boninas nos campos e entregai ao
coveiro para semear na minha campa mortuária”. O escritor Pedro
Nava elogiou, num artigo magistral, o talento e as dissolutas
confissões do poeta pornógrafo. Viu nas revelações lúbricas do
Relicário um banho poético fornecido com a palavra livre de
peias. Disse que só um imbecil não reconheceria a necessidade de
investir contra o preconceito e o tabu imposto pela moralidade
burguesa contra certas palavras, as quais, assim como os
direitos humanos devem ser preservados, têm também direitos a
serem acatadas. E identificou como poesia da melhor qualidade os
versos de Cantiga: “Flor bonita é a da moça/ como a do
maracujá./ Roxa per fora, e vermelha/ por dentro, se mergulhar/
Nas bordas que cor bonita!/ nos cachos do pentelhar. Que achado
soberbo! exclamou o grande memorialista a respeito da palavra
pentelhar, “um reencontro como espírito da língua (em todos os
sentidos que se queira)”.
Perguntei-lhe sobre a origem do nome Terras do
Dragão, com o qual batizou a fazenda. Explicou-me que se deve a
uma profecia do Frei Vidal da Penha, segundo a qual, um dia
aquela região viraria mar e um dragão correria sobre as águas. A
terra se transformaria numa cama de baleia, por causa dos
pecados de seu povo. Alcides, como autêntico nativo da região,
não pode fugir das origens nem escapar da influência primitiva
dos seus conterrâneos, dos quais herdou algumas taras
imprescindíveis. Portanto, não abre mão de seu misticismo e do
erotismo que o faz andar sempre acompanhado de mulheres com os
quais pode satisfazer os clamores da própria ancestralidade.
“Esse homem parece que tem o diabo nos couros”, disse-lhe certa
vez uma mulher depois de alguns momentos indescritíveis. Ficou
apavorada: “com essa idade é capaz de tal proeza!” E ele
respondeu: “é genético en mim, é orgânico”. Também o seu avô,
personagem de O Criador de Demônios, tinha um caráter
exacerbadamente libidinoso. Cobria as fêmeas como um touro
reprodutor. José Alcides demonstra sua convicção fescenina,
escolhendo, para as capas dos seus livros, fotos ou gravuras de
mulheres nuas. O lirismo é indissociável do erotismo em sua
poética. Veja-se o poema “A posse”, do livro “Ordem e Desordem”,
onde há versos como “arranquei-te do sono - teu sorriso morno
ainda dormia/ como as parcas nos túmulos marinhos./ E disse:
despe-te - e tu te despiste/ pálida estrela morta na tarde
transparente./ ... E te penetrei, como num rio seco uma fonte de
água granulosa/ cansada de sedimentos pesados. No ato da posse,
a integração com o elemento telúrico, a imagem da mulher
vinculada à fertilidade da terra e à vibração sensual da
matéria. A mulher é “uma terra sofrida, úmida de lágrimas, sob a
inclemência do sol”. Há um contato estreito entre o amor físico
e a comunhão com a natureza. No poema “Amada” diz JAP: “amor -
palavra estranha - e risonho/ canto de pássaro tristonho”.
O erotismo se mistura ao lirismo também nestes
versos: “o amor não foi feito para a felicidade do coração, nem
da alma, mas para a saúde do corpo. (Idílio, em “Os Amantes”). O
corpo existe impregnado dos desejos inerentes à carne,
intrínsecos nos ossos e nos nervos. O amor não pode prescindir
do ato sexual como satisfação fisiológica que o corpo tem
direito de exigir. Mas em sua poesia há também um sentido de
enigma que transcende a dimensão do vulgar. E este é certamente
o aspecto mais autêntico de sua arte. O misterioso que há no
lirismo metafísico de poetas de grande estatura espiritual como
Rilke, Shelley, Vallejo, Emilly Dickinson, Valéry, Borges, Jorge
de Lima, Garcia Lorca e Antônio Machado, entre outros. No poema
“Eu”, publicado nos Cantos de Lúcifer, mergulha na essência do
existir e emerge com revelações transcendentes: “Eu sou eu.
Íntegro e inviolável dentro de mim mesmo”/ O que não se
descobre. Anônimo sob minha sombra incorpórea, sem faltar um só
dos meus gestos físicos”. Esta busca de si é tarefa primordial
de quem se sabe inviolável em si, mas anônimo e incógnito, no
instante do desvelo e da auto-revelação. “Diverso sobre mim e
sob eu mesmo./ Oculto e visível como a lua caída no poço.
Intocável e impossível como o que não se conhece e não morre”.
Nestes fragmentos do poema apresenta sua compreensão do fenômeno
enigmático da vida e trata de um dos temas eternos da poesia. Há
temas que jamais envelhecem. A lua, por exemplo, é uma tradição
na trajetória universal da poesia. Os poetas sempre adoraram o
arquétipo lunal. Sobretudo os românticos. Mas cantar a lua não é
apenas uma subjetividade da poesia romântica. A lua representa
uma espiritualidade profunda e permanente. Disse S. Agostinho a
respeito de Deus: “tarde vos amei, beleza tão antiga e tão nova.
É que estáveis dentro de mim e eu estava fora de mim”. A lua é
uma beleza antiga e nova e por isso é sempre bela, assim como a
arte mesma e tudo o que há na natureza. Nós humanos é que
envelhecemos, porque somos frágeis. A árvore morre mas continua
a existir através de sua semente. Os insetos, os pássaros e as
árvores, tudo o que aparentemente desaparece, está sempre
presente no mundo. E a lua, como toda a natureza, é eterna. Se
um poeta moderno escreve sobre a lua, sobre o encantamento de
contemplar o plenilúnio, apenas mostra ser dotado de
sensibilidade para amar o belo e reconhecer a semelhança entre
sua natureza e a da lua. A lua sempre foi decantada porque é um
astro que ilumina o mundo inteiro. Porque ela é suave como a
companheira, a mulher. Como música ao longe ela transmite o que
há de mais romântico e eterno. E sendo ao mesmo tempo eterna,
bela e divina, ela é de todos os tempos, de todos os poetas,
cantores e trovadores. Perene em sua beleza, sua antiguidade é
sempre nova e eterna. É um símbolo de musicalidade, sua luz
suave cobre o mundo e deixa nas almas o romantismo dos poetas
antigos e novos. Única e soberana, reina no espaço como uma
monja em sua cela.
A família, a cátedra e os amigos.
Há muito tempo Alcides perdeu contato com a mãe de
Belkiss, sua filha mais velha que vive em Paris. Escreve e ela
não responde. Belkiss também escreve à sua mãe inúmeras cartas
registradas. As cartas teriam que voltar, mas não voltam. A mãe
não ficou desgostada com Belkiss porque ela criou sua própria
independência, emancipou-se e viajou para Paris com os hippies.
Mas em ela estudou jornalismo em Paris. Em sua carta mais
recente Belkiss diz que nunca o esqueceu. Ela partiu de
Fortaleza quando tinha 17 anos. Há mais de 20 anos que Alcides
não a vê. Diz que gosta muito de Belkiss, porque ela é muito
inteligente, porque é negra, e porque ele praticamente a
abandonou, o que considera um de seus pecados. O próprio Alcides
a incentivou a ir viver em Paris. Arranjou dinheiro para a
passagem de ônibus até o Rio de Janeiro. Naquela época Alcides
achava um estorvo que sua filha fosse hippie, mas hoje reconhece
que foi um erro seu pensar dessa maneira. Há cerca de dois anos
não tem contato com ela, pois as suas cartas ficam sem resposta.
Preocupado, JAP me pede que escreva a Belkiss, recomendando-lhe
que mande notícias a seu pai. Uma carta que lhe remeti há alguns
meses, ao endereço que me dera desde que nos encontramos em
Paris, em 1996, voltou com anotação de “destinatário ignorado”.
Na ocasião em que a encontrei, achei um tanto estranha a sua
conduta. Ela trajava calça e camisa pretas e um lenço negro
sobre os cabelos. Disse-me que sua principal atividade na França
consistia em retirar objetos de magia negra colocados nas
igrejas. Conversamos durante várias horas exclusivamente
assuntos de tal natureza e fiquei tomado de um sentimento
depressivo depois do nosso encontro. Por enquanto permanece um
mistério o paradeiro de Belkiss.
Outro erro que acredita haver cometido foi a reação
que teve quando tomou conhecimento de que tem mais duas outras
filhas com uma das mulheres que trabalhou em sua casa como
empregada. Alcides pensou que fosse mentira da mãe delas. Não
acreditou quando a mãe trouxe as duas meninas para ele conhecer.
Recusou-se a reconhecê-las como filhas, porque pensou que fosse
uma chantagem. Uma delas disse: “eu sei que sou sua filha, a
minha mãe me disse”. Era bem bonitinha, de 12 anos de idade ---
diz o poeta --- parecida com a Jamaica, uma de suas filhas.
Pensou que a mãe queria apenas tomar-lhe dinheiro. Ele morava
ainda na mansão da rua Rodrigues Júnior, na Aldeota, e poderia
parecer aos olhos daquela mulher ambiciosa que ele tinha muito
dinheiro. O poeta guarda um sentimento de remorso por essa
atitude.
Todos tivemos algum ato inabonável, alguma atitude
da qual nos arrependemos, por outro lado já tivemos tantos atos
de magnitude, disse eu, tentando confortá-lo. “Mas uma
ingratidão desta nenhum ato cobre”, disse ele, contrito. “Hoje
em dia não faço mais esse tipo de coisa. Se eu pudesse reunia
todos os meus filhos e viveria com eles o resto dos meus dias”.
Quanto aos amigos, Alcides fala com muito senso de humor a
respeito de alguns deles, que considera tão doidos quanto ele.
Diz que, por incrível que pareça, existem alguns com o juízo
pior que o dele. Um deles é o Carlos Emílio, cujo talento
admira, mas de quem, segundo Alcides, não se pode negar certo
grau de insensatez. Conta o seguinte caso acerca do escritor
Carlos Emilio Correa Lima: um dia, quando estavam os dois
conversando na sacada de seu apartamento da Praia do Flamengo,
ia passando um avião e Carlos Emilio disse para Alcides:
“atenção, vai um amigo meu dentro desse avião, ele vai me mandar
mensagens, vai acenar para mim da janela do avião...” Disse que
eu também figuro na lista dos amigos doidos, pois acompanhá-lo à
fazenda Terras do Dragão, no meio dos matos, nos confins do
sertão cearense, já é um ato de insensatez. Mas reconhece que é
pior do que eu, e diz que o Jarbas Júnior ocupa posição
intermediária entre as nossas respectivas doidices, sendo que
“os piores são o Paulo Garcez, (poeta baiano falecido em 1998),
o Carlos Emilio e o Mário Gomes”. “Só tenho amigos doidos”,
declara. Doidos varridos como ele próprio, que é o mais doido de
todos, pois largou a cátedra e abandonou tudo para dedicar-se
exclusivamente a literatura numa província como o Ceará. Dentre
os amigos sem juízo, alguns talvez sejam piores, pois são
irresponsáveis. A loucura em sua vida é atávica. Sua família
esta cheia de loucos, um vendaval que só não o pegou fatalmente
por causa do sexo e da arte. Mas viver é uma espécie de loucura,
ou uma maneira de estar-se exposto à loucura do mundo, cujo
absurdo maior é a morte, essa megera que temos que carregar nas
costas desde que nascemos. Só o sexo (o amor) é uma benção
divina, nos salva da maldição. O sensualismo é uma religião.
Uma das idéias doidas e geniais que teve foi a de
reunir 35 pintores, liderados por Barrica, para pintar o mural
na casa da rua Rodrigues Júnior. Enquanto pintavam, Barrica
cantava óperas, outros dançavam, sapateavam, contavam anedotas.
Parecia um bando de doidos fugidos do hospício. Outros episódios
hilariantes se registraram quando JAP comprou um piano, talvez
na ilusão de que poderia ainda tornar-se um Beethoven. Naquele
tempo acorria a mansão do poeta de toda sorte de boêmios,
músicos, poetas de toda estirpe da cidade de Fortaleza de Nossa
Senhora da Assunção. Todos queriam dedilhar as teclas do
instrumento. Todos os dias, infalivelmente, na hora do
pôr-do-sol, comparecia ao reduto do Alcides o poeta Alano de
Freitas, que chegou a compor algumas canções obscenas no piano.
Meses depois, entediado com a frequência dos menestréis que
permaneciam em sua casa até as primeiras horas da madrugada,
Alcides resolveu se desfazer do piano, tendo convencido o
gerente da loja a aceitá-lo de volta. A respeito do famoso
piano, o professor e escritor Juarez Leitão escreveu belíssima
crônica intitulada José Alcides Pinto e as Fúrias do Oráculo, em
que relembra a noite em que se reuniram alguns amigos na casa de
Alcides para inaugurar o instrumento. “Um instrumento lindo, que
havia comprado na Mesbla sem a menor condição de pagá-lo. Não
importava a nós este detalhes medíocre; o piano estava ali, na
sala do Zé Alcides era um ícone, um totem, um símbolo solene da
arte. Nenhum dos jovens e embebedados amigos de Alcides sabia
tocar piano, mas todos passavam a mão no móvel preto e
reluzente, como fazem os muçulmanos com a Caaba, a pedra negra
do centro de Meca, para expiar os pecados. E voltamos daquela
estranha noite leves, felizes e saciados de ternura e paz, e
pelas ruas de nossa euforia cantávamos, bradávamos poemas sobre
o piano do Zé Alcides. O piano, naturalmente, foi devolvido à
loja: já cumprira sua missão”.
Apesar dos momentos difíceis que já enfrentou,
Alcides reconhece que Deus lhe deu tudo o que queria. Tornou-se
uma pessoa realizada. Sua vida sempre foi uma busca do eterno e
acredita que Deus já lhe deu mais do que merecia. “O que eu
queria de Deus era a paz interior pra suportar os meus
sofrimentos com dignidade e essa dádiva divina eu tenho. Não
posso querer mais do que isso. Deus foi comigo sempre muito
pródigo e muito misericordioso. É claro que eu aspirava a ter
uma vida melhor. Mas será que essa aspiração teria me dado a
tranquilidade espiritual? Eu acho que não. Veja a minha vida
pregressa, larguei a universidade, comprei uma fazendazinha e
passei um ano sem vir a Fortaleza”. Faltavam 14 anos para se
aposentar como professor concursado da Universidade Federal do
Ceará. Pediu rescisão do contrato de trabalho, por livre e
espontânea vontade, a partir de 31-12-77. Abandonou tudo para se
dedicar a literatura. Comprou a fazenda, perdeu as comodidades,
mas sua obra cresceu. A aposentadoria que recebe, embora pareça
contraditório, é por invalidez, e foi concedida quando se
encontrava doente. Perguntei-lhe qual a doença. Respondeu-me: a
loucura. A loucura em sua família é bem de raiz: genético.
“Minha família é pontilhada de doidos, a começar pelo avô
materno, Chico das Chagas Frota, personagem de O Dragão. Também
o tio João Pinto de Maria, de “Biografia de um louco”. A loucura
não se separa de sua vida. Se tivesse a mente sã não teria
deixado a Universidade, mas rescindiu o contrato e ficou sem
nada. Mas acredita que não foi propriamente uma loucura. Foi
antes uma destinação, pois agiu de maneira coerente com o que
faria seu pai, que também era despojado de bens terrenos,
orgulhos, vaidades e preconceitos. A humildade é o principio
mais exemplar do verdadeiro cristão.
Contou-me sua experiência de professor na Faculdade
de Jornalismo da UFC. Ensinava História da Cultura e dos Meios
de Comunicação, disciplina em que abordava os processos
culturais da humanidade, desde os hieróglifos egípcios, a pedra
roseta e a ideografia dos chineses ate o classicismo, os
filósofos, poetas e dramaturgos, com ênfase nos 4 mestres do
teatro grego, pois o anfiteatro é a origem da comunicação. “E
quem disser que não é que vá pra baixa da égua”, dizia para os
alunos. Depois passava à comédia francesa, Racine, Moliere,
passando pelo teatro inglês de Shakespeare até o modernismo, com
Camus, Cocteau, Ionesco, Oswald de Andrade, Nelson Rodrigues,
etc. Teatro é comunicação. Comentava os autores, fazia súmulas,
sínteses. Utilizava o método peripatético. Dava aulas andando.
Os alunos da faculdade saíam das classes de outros professores
para assistir às suas perorações. Pedia que voltassem, mas em
vão. Certos professores ficavam irritados porque os alunos
deixavam suas salas vazias para ir assistir à aula do poeta.
Sentavam no chão. Perguntava aos alunos porque preferiam suas
aulas às dos demais instrutores, eles respondiam que pelo fato
de alguns deles não saberem responder às perguntas que faziam.
Diziam, “na outra aula eu trago a resposta” e jamais traziam,
por falta de conhecimento. Falando sempre rápido, os alunos
pediam que falasse devagar para melhor aproveitar as aulas, mas
ele argumentava: isso em mim é genético, orgânico. Se vocês
vissem duas irmãs minhas conversando não aguentariam. Nenhuma
das duas se entende e ninguém as entende. Jogava o apagador e o
giz no chão, gritava e gargalhava como um sátiro. Falava do
papiro, do pergaminho, de cada desenho que representava um
sentido. Também dos povos peruvianos, os quipos, cordõezinhos
cheios de nós e os vampumes, conchas geométricas coloridas. Daí
vem a pictografia... Batia com a mão nos ombros dos alunos.
Alguns deles se deitavam no chão. Os alunos lhe davam biscoitos,
o levavam de carona à sua casa, pois JAP nunca teve carro.
Pagavam-lhe cerveja. Mas teve de abandonar a cátedra, pois sua
ambição sempre foi ser escritor e não professor. Faltavam dez
anos para aposentar-se. Achou que ser escritor era mais
importante. Para que acumular riqueza? O que tinha dava para uma
vida simples. A Universidade foi um tempo perdido. Tinha de
trabalhar o dia todo. Trabalhar nunca foi a sua atividade
predileta: “Não me arranjem emprego. Não criem obstáculos à
minha vida”.
Sua atual situação financeira é precária. Para
sobreviver escreve artigos e prefácios para os livros de amigos,
cobrando pelo trabalho. Alguns poetas amigos o ajudam
eventualmente, contribuindo financeiramente para seus
tratamentos de saúde. Muitos de seus livros são dedicados aos
médicos que o operaram ou trataram de sua saúde quando esteve
acometido de diversos males. É uma forma de gratidão e de obter
estrategicamente algum desconto no pagamento dos honorários.
Admira-se da riqueza de Francisco Carvalho. No mundo
em que vivemos é difícil um poeta rico. Ele é dono de uma mansão
e dois grandes sítios de centenas de hectares. Ele merece,
confirma. “Carvalho é madeira de lei”. Mas afirma também que a
fé em Deus vale mais que toda fortuna material. Ter fé vale por
100 escritores ou 100 cientistas. Não interessa arte, ciência,
tudo vira pó. E a fé, a luz da fé não morre, é eterna como o
vento, o mar e o amor pelo próximo. Assim como é grande a sua
estima e gratidão em relação aos amigos leais, os que sempre
foram corretos ou o ajudaram, como Juarez Leitão, Dimas Macedo,
Francisco Carvalho e outros, aos quais dedica poemas e livros,
também não esquece a ingratidão daqueles que foram cafajestes.
Decepcionou-se com um deles, que pensava que fosse amigo, mas
que só depois se revelou um velhaco, prometendo pagar-lhe
duzentos reais por um prefácio e jamais pagou. Outro ex-amigo,
qual lobo vestido em pele de cordeiro, ofereceu-se para
editar-lhe as obras completas, sumiu com o dinheiro que Alcides
lhe adiantara, e só apareceu quando um advogado amigo já estava
colocando o caso na justiça. Por desgosto, depois do livro
pronto, Alcides soterrou toda a edição numa vala em seu quintal.
Apesar de me haver dito os respectivos nomes, pediu-me apenas
que contasse os casos sem decliná-los, para dar-lhes mais uma
chance para que se redimam. Em outra ocasião, também foi
lubidriado pelo dono de uma gráfica que ficou com o dinheiro que
lhe havia adiantado e jamais publicou o livro. Por incrível que
pareça o caloteiro também era escritor... Contra esses vilões
JAP descarrega a violência de suas imprecações poéticas. A eles
os adjetivos espúrios que o poeta prefigura em seus textos. Se
não fosse a existência de tais calhordas não existiria a poesia
maldita. Por causa deles é que surge o poema sórdido,
contundente, para acusar a desonestidade dos patifes, a
falsidade dos infames. Chego a acreditar que a arte de JAP
transparece um profundo teor moral, disfarçado em rebeldia. Na
realidade, trata-se de um grande moralista às avessas, pois
prega a ordem dissimulada em desordem, e enquanto acusa o crime,
condena o vicio. A realidade do mundo exige que se combata o
mal, mas torna o homem presa das armadilhas da condição terrena.
E é preciso lutar com palavras e atitudes em defesa da Verdade.
Se alguns o decepcionaram ao ponto de inspirar-lhe a
máxima “podendo ter cinco amigos não tenha dez”, outros souberam
merecer-lhe a estima. Assim e que alguns dos amigos que lhe tem
apreço telefonam-lhe todos os dias, como Soares Feitosa e Rui
Câmara, que não deixam de contactar o maldito iluminado, que a
todos atende generosamente qual avoengo mestre. Duas gerações
dos mais competentes poetas cearenses o louvaram em prosa e
verso no livro Guerreiros da Fome, entre os quais também o
inolvidável baiano Paulo Garcez de Sena: “...enxergas para alem
dos abissais horizontes...” Alano de Freitas também participa de
tal coletânea com um texto em que recorda as mechas de cabelo
das musas que Alcides guarda em suas gavetas. Francisco Carvalho
consagrou-lhe monumental poema em cordel. Faria Guilherme no
cordel “O cigano, o vate e o frade, narra o gracioso episodio do
uso da batina franciscana. No artigo intitulado “José Alcides
Pinto, o Espetáculo Permanente”, Adriano Espinola lembra-lhe a
magreza absoluta, os gestos tempestuosos, os braços longos e as
mãos que se movimentam sem parar, sua eletricidade teatral e sua
fala torrencial, matizadas de emoções mutáveis, em que conforme
o seu estado de humor, e capaz de criticar severamente
determinado escritor e elogiá-lo em seguida com a mesma ênfase.
Acerca de Alcides, escreveu Gerardo Mello Mourão artigo
publicado no jornal Diário do Nordeste, em que o menciona como
um nome avançado nas melhores aventuras revolucionárias do texto
poético e ao mesmo tempo como um François Villon urbano e
rústico. Ao elogiar a obra de ficção de JAP, cita o romance O
Dragão como um texto violento e agônico, que pela carga poética
de sua escritura demonstra o quanto é tênue a fronteira entre a
as metáforas da ficção romanesca e as da ficção poética.
Trata-se da história do povoado do Alto dos Angicos, “um pequeno
bando de viventes entregues à indolência, à superstição, aos
inocentes vícios dos pobres, a desolação, a fúria dos elementos
e ao salubre fanatismo de um pobre padre com os miolos torrados
pelo sertão, mas ainda assim com um sentimento medular da
presença de Deus e da razão sem razão de seus castigos cruéis”.
Situa o autor de “O Dragão” ao lado dos grandes ficcionistas
modernos do Brasil, como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz,
José Américo de Almeida, Graciliano Ramos e José Candido de
Carvalho. E pelo êxito alcançado em seu texto, chama-o de poeta
de Jerusalém, escriba de Canaã e cronista da atormentada ribeira
do Acaraú.
Na condição de admirador e discípulo, não poderia
deixar de expressar-lhe minha estima na forma de poesia. Penso
que só um poema delirante, em tom de alumbrado arrebatamento,
poderia descrever o inimitável caráter de JAP. Assim foi que
escrevi o escatológico poema “Perfil de José Alcides Pinto
Vislumbrado num Instante de cosmovisão”, que considero
condizente com sua personalidade e cujo teor reproduzo aqui:
Alcides, cavaleiro dos mangues/, arauto dos poderes litorâneos,/
nervoso pássaro de olhar faiscante,/ maldito santo, arrasta com
teus uivos a podridão do mundo./ José, ícone dos povos
transatlânticos,/defensor da justiça, sagaz e triunfante,/
arguto como o cavaleiro da triste figura,/ só tu que oscilante
na ponta dos punhais,/ conheces o misterioso anfíbio da vida./
Sete vezes a fatalidade galopou nos teus ombros o calafrio/ ---
peçonhento animal rastejou sobre as tuas vértebras/ e tu
esmigalhaste com os dentes as vespas, os pistilos e os lagartos
voadores./ Príapo da Kaliyuga, intimo dos chacais,/ venerado
pelas princesas do Peloponeso,/ pelas fêmeas do Reino Mórbido/
estimado e estimulado pelas bailarinas de Lesbos,/ heráldico
espadachim pantomímico,/ as ninfas gemem de pejo e os planetas
estremecem quando passas./ O descendente de Belial,/ aniquila os
súcubos, doma os morcegos, o pastor dos unicórnios,/ ordenhador
das bruxas de Lúcifer,/ um simples pensamento emanado de tua
fúria/ faz gemer os demônios, os patifes e os furacões/. Es um
ser da lama dos alagadiços/ porque devastas os pântanos de
lesmas e besouros./ Messiânico, fescenino, és o faquir dos
outonos arcangelizados/ e eu, o devoto, conclamo teu poder
purificador./ Verte o grito transido de gelados sobressaltos,/
afugenta os antílopes, cose a teia dos infortúnios./ O
tempestuoso irmão de Zoroastro,/ és impiedoso com os tiranos e
brincas na ventania./ Do inferno sazonaste as peras, sufocando
as borboletas./O misericordioso arcanjo./ Lembro-me com que
desvelo perfuraste o peito tísico dos vampiros,/ por ocasião das
bodas de Satã./ Ó potestade do Cáucaso, José,/ a raça humana
deve tanto a tua fecundidade/ que andas extasiado sobre os
flagelos/ e destróis a vileza dos biltres./ Tu que bebes urina
no crânio dos sarcófagos,/ gane, uiva, lobo esfomeado./ Abutre e
fauno, vocifera contra o esterco do Nada,/ transmuta o
excremento das Parcas,/ gargalha ante a ignomínia/ porque reténs
a fortuna de impérios inimagináveis./ Ruminando as messes
douradas,/ berraremos como os animais santos que a morte
esculhamba./ Tu que mijas na cloaca do organismo social/ pois a
falsa moral fede muito, o grande possesso./ O espreitador de
precipícios,/ ouve estas reflexões utópicas enquanto espancas a
felicidade./ Tu que cagas na face dos invejosos, das hidras,/
pois só tu, anjo e demônio,/ podes escandalizar os deuses
ostensivamente./ Nenhum mortal ousa desafiar a tempera dos
monstros malignos,/ só tu, mendigo afortunado, possuis o farnel
das coisas dissolutas./ Em verdade, tens um pacto com os
anofelinos/ que fuçam as paredes dos cemitérios,/ farejando a
resina mineral./ A resina das origens./ O filho do opróbrio,/
ermitão que ministras polens venenosos aos sátiros,/ por que te
debruças sobre os abismos/ e dissipas candeias pelos caminhos
perdidos?/ Do teu claustro de vertigens,/ ensina-me a hipnotizar
os hidrófobos,/ a soprar o cautério sobre os coágulos./ Em nome
dos Arcanjos da Natureza,/ ensina-me a viajar no infinito como
os filhos de Orfeu./ Tu que és eterno como os vampiros
entediados,/ desvairado amigo,/ tu que sabes os signos mágicos
dos antropófagos da própria desgraça,/ sultão, califa, faraó,/
Afrodite te persegue por tua fama degradante,/ gnomo de
delirantes ilações e paixões caóticas./ maldito santo, maldito
iluminado,/ tu que exorcisaste o amolador de punhais,/ tu que és
cruel com os hermafroditas/ e cantas o desespero eterno,/
argonauta do mar do absinto e do sacrifício,/ silfo da
Oceania,/ só o Mar pode aplacar o teu desatino”.
Outro renomado escritor que não perde uma chance de
tecer apologias ao maldito iluminado e o jornalista Blanchard
Girão. Transcrevo um trecho de artigo publicado na imprensa
cearense, em que Blanchard afirma o seguinte: “Espírito
inquieto, rebuscando múltiplas verdades e contestando-as,
procurando resposta as duvidas através da poesia, que acabaria
por ser a sua única opção verdadeira na vida. Ora crédulo e
temente a Deus; ora rebelado; tímido ou atirado, um ser humano
complexo, onde a mente em permanente efervescência se derrama
em caudalosas idéias em prosa e verso. ... De longe, contudo, ou
perto de seus escritos --- versos, contos e crônicas que tenho
lido -- me parece, antes de tudo, um homem profundamente
liberto, sem as peias das conveniências, dessa hipocrisia que
tutela o chamado “bicho social”que somos ou que fomos obrigados
a ser.”
Dos amigos que lhe fizeram apanágios em prosa ou
verso, a meu ver, quem melhor configurou-lhe o perfil foi Juarez
Leitão, na crônica citada nos parágrafos antecedentes. Para
finalizar este esboço da personalidade do poeta, transcrevo
alguns trechos do mencionado texto: “... Assim esguio como uma
pintura de Modigliani, vive do oficio de inventar na terra das
insânias, dos condenados da paixão, dos filhos da dor e do medo.
Suas historias e cantigas armadas sobre o lado cinzento da vida
se afirmam na densa maravilha da condição humana, em todas asa
suas ambiguidades e contradições. Com a mesma espantosa
profundidade Jose Alcides trata dos reflexos corriqueiros do
cotidiano e dos grandes mistérios humanos. O confronto constante
entre o real e o fantástico alimenta a peripécia de seus
personagens, entre os quais ele figura como o mais estranho e
singular protagonista. ... Travestido de compadre do diabo, e,
entretanto, um romeiro devoto, capaz de fazer promessas e vestir
o balandrau do Pobrezinho de Assis. Finge regar os caminhos de
Satã para vencê-lo de tocaia e ganhar aas graças de Deus. É um
homem cheio de riquezas e muito pobre de bens. Nunca mediu
barreiras ou calculou os custos de sua aventura individual. Sua
única medida e o prazer do salto e a vertigem do vôo.
Constrói-se, como se diz, na contradição de si mesmo. E um
saltimbanco, um mágico manipulador de faíscas nesse arame
esticado de inconstâncias... A grandeza de Alcides resulta de
sua autenticidade. O poeta e verdadeiro quando reza ou ate
quando mente. Pôs-se diante da vida como rebelde porque
conseguiu ser original, singular. Ivan Junqueira afirma que
Alcides, tanto do ponto de vista estético, quanto do angulo
existencial, escolheu a transgressão como deusa e musa”.