Castro Alves
Léo Schlafman
O poeta dos oprimidos
in Jornal do Brasil, 07/03/97
Os 150 anos de nascimento de Castro Alves,
comemorados no próximo dia 14, estão sendo marcados pela lançamento
da Obra completa do poeta dos escravos pela Nova Aguilar (906
páginas, R$ 62), numa edição que reúne, além da sua produção
literária, ensaios críticos e reportagem iconográfica sobre o autor
de Espumas flutuantes. Na Bahia, a data será lembrada com a abertura
de uma exposição que, depois de ocupar o Teatro Castro Alves, será
montada em outras capitais, Rio de Janeiro inclusive. Defensor da
causa abolicionista, Castro Alves foi um poeta precoce, de versos
melódicos e ardor romântico. Na efervescência política brasileira do
século 19, investiu a sua criação poética no espírito libertário e
incorporou em definitivo o negro à literatura. O seu lirismo esteve
sempre impregnado pelo sentimento da morte e pela precariedade da
vida. Morreu aos 24 anos com apenas um livro publicado. Amante
obsessivo de pelo menos duas mulheres - uma atriz e uma cantora -,
Castro Alves bem ao sabor do sentimento romântico tentou acabar com
a sua vida por uma paixão contrariada. Viria a morrer pelas
conseqüências de seu gesto. Poeta que levantou um brado de revolta
contra escravidão, fez do coração machucado, uma criação lírica.
Passados 150 anos redondos do nascimento e 126 da
morte, Castro Alves continua a ser o que ele próprio achava de si:
"Sou pequeno, mas só fito os Andes". Polêmicas, revisões, críticas,
elogios, tudo continua, mas não resta dúvida, como disse Manuel
Bandeira, que ele era "uma criança verdadeiramente sublime, cuja
glória se revigora nos dias de hoje pela intenção social que pôs na
obra".
Mário de Andrade, que criticou certos aspectos
literários da poesia de Castro Alves,sobretudo o mau gosto dos
excessos condoreiristas, no quase definitivo ensaio sobre ele em
Aspectos da literatura brasileira, observou que "chega a ser sublime
o enceguecimento apaixonado com que se entregou a uma grande causa
social do seu como do nosso tempo, a dos escravos". Se outros
problemas lhe despertaram ainda a "paixão de cantar", e de "cantar
freqüentemente mal, com vícios de Béranger e muito de didático", não
resta dúvida, no entanto, que sua obsessão pela liberdade, de que a
causa abolicionista era a expressão mais clamorosa, personifica uma
das melhores virtudes nacionais.
No tempo dele as grandes causas estavam nas praças:
republicanismo, insurreição dos negros de Palmares, papel
civilizador da imprensa e, acima de todas, campanha contra a
escravatura. Por ela, o poeta, em Vozes d’África, dirigiu-se
indignado diretamente aos céus, sem intermediário: "Deus! oh Deus!
onde estás que não respondes / Em que mundo, em que estrela tu te
escondes / Embuçado nos céus? / Há dois mil anos te mandei meu
grito, / Que embalde, desde então, corre o infinito... / Onde estás,
Senhor Deus?..."
Como a justificar o mote de Lamartine, de que "há
mais política num canto de Homero do que nas utopias de Platão",
Castro Alves se entregou por inteiro à causa dos escravos. Viveu
portanto a causa do século. E morreu, ainda criança, aos 24 anos, de
amor, de um tiro no pé e de tuberculose - como se fazia no século.
Sobrou para ele o epíteto de "poeta dos escravos",
embora não fosse o único a trabalhar pela causa. Um seu
contemporâneo, Sousândrade, tal como ele, era poeta participante,
pregou a república e sempre se insurgiu contra a escravidão. Só que,
opostos pela técnica, trilharam caminhos diferentes, um compondo
versos melódicos e cadenciados a metrônomo, como os românticos, o
outro se antecipando, numa genialidade quase louca, à estridência
polifônica da era tecnológica.
É curioso como o destino reservou-lhes sorte diversa,
um pelo atalho da fama, o outro pelo labirinto do esquecimento. No
entanto, eram umbilicalmente coetâneos. Sousândrade nasceu 14 anos
antes de Castro Alves e morreu em 1902, 31 anos depois dele. Suas
viagens pela Europa, África, América Latina e a longa permanência
nos EUA abriram-lhe o horizonte do mundo capitalista em plena
explosão industrial - coisa que os românticos não haviam percebido,
fechados em ambiente provinciano, afrancesado. Conheceu in loco o
fenômeno das concentrações urbanas, onde tudo o que era sólido se
desmanchava no ar, os escândalos financeiros de Wall Street e as
redações de jornais dirigidos às novas massas. O Guesa, poema em 13
cantos deixado incompleto, mas no qual trabalhou durante 30 anos,
trata da lenda quíchua que narra o sacrifício de adolescente de 15
anos, escolhido desde o nascimento a peregrinar pelo mundo e a
perecer depois pelas mãos dos sacerdotes. Escapando deles,
refugia-se em Walll Street, onde reencontra-os disfarçados de
empresários e especuladores ("O assassínio, o audaz roubo, o
divórcio, / Ao smart Yankee astuto, abre New York").
As excentricidades técnicas de Sousândrade, os
arranjos sonoros, plurilingüismo,conjuntos verbais ousados, palavras
raras e arcaizantes, neologismos, hibridismos - tudo contrasta com a
poesia de Castro Alves e mesmo a dos outros companheiros ("- Harlem!
Erie! Central! Pennsylvania! / = Milhão! cem milhões!! mil
milhões!!! / Young é Grant! Jackson, / Atkinson! Vanderbilts, Jay
Goulds, anões!). Desprezando o desenvolvimento lógico-linear e
evoluindo por assim dizer no plano da memória, o Guesa dá um salto
para o futuro, como o próprio Sousândrade previa: "Ouvi já dizer por
duas vezes que o Guesa será lido 50 anos depois." Mais do que
visionário, era otimista... Quem ainda continua lido é Castro Alves.
Contrastes entre os estilos poéticos de Castro Alves e Sousândrade e
o estilo vigorante um século e meio depois explicam as soluções de
continuidade na apreciação pública em relação a um poeta.
Sousândrade ainda espera pelo favor dos leitores, mas o autor de Os
escravos, adorado na infância, detetado na mocidade, é sempre
redescoberto na velhice.
Os poetas do século 19 tinham contato com o povo,
faziam poesia ao ar livre. Espumas Flutuantes, único livro publicado
em vida por Castro Alves, revela a presença do sentimento coletivo
que posteriormente Carlos Drummond de Andrade consolidou sob a forma
de sentimento do mundo. Cingiu-se, como assinalou Eugênio Gomes, à
máxima hugoana de que a poesia não está na forma das idéias, mas nas
próprias idéias, acentuando-se ainda mais, em seus cantos, a
antítese entre o mundo real e o mundo ideal. Pensar por antítese era
aliás atitude generalizada entre românticos e sobretudo em Castro
Alves: "E as palmeiras se torcem torturadas, / Quando escutam dos
morros nas quebradas / O grito de aflição." Havia intenção
pragmática em seus cantos (antíteses violentas, onomatopéias
ressoantes) feitos para serem declamados em praças, em teatros ou
grandes salas - discursos de poeta-tribuno.
Nele a palavra passou de subjetiva a objetiva. "A
gente vê a paisagem e sente o momento, o gosto da fruta, a umidade
do rio", como disse Mário de Andrade, que o acusou no entanto de
encompridador, de não saber absolutamente pautar o tamanho das
poesias, de ser todo instinto e bravura, todo verbo e sentimento. No
capítulo das críticas, Antônio de Alcântara Machado foi mais longe,
ao falar das "imagens disparatadas, imprecações heróico-asnáticas,
tiradas patético-pernósticas". Antônio Cândido observou que muitos
de seus poemas denotam incontinência verbal tão brasileira: "Ao seu
tempo, mais que agora, o orador exprimia o gosto ambiente."
Mas,mesmo reconhecendo que a poesia de Castro Alves envelheceu em
sua discurseira retumbante, destaca o efeito do discernimento lírico
da natureza e do sentimento. Em meio àquela eloqüência comicial se
destacam tiradas e achados extraordinários como em "Antevisão dos
mortos": "Os mortos saltam, poeirentos, lívidos, / Da lua pálida ao
fatal clarão."
O fato é que, num curto período de oito anos, de 1863
a 1871, quando morreu, o poeta precoce que, já no Adeus meu canto,
aos 17 anos, sentia em si o "borbulhar do gênio", sintetizou, na
solidão dos gênios, a própria existência aparentemente malograda ("O
gênio é como Ahasverus... solitário./ (...) Mas quando a terra diz:
Ele não morre, / Responde o desgraçado: Eu não vivi!"). Produziu
obra informe, dispersa, cujos fragmentos reuniu apressadamente em
Espumas flutuantes, antes da chegada da noite. O seu lirismo se
impregnou do pressentimento da morte prematura e a precariedade da
vida presa por um fio.
Os poetas do século 19 tinham contato com o povo,
faziam poesia ao ar livre. Espumas Flutuantes, único livro publicado
em vida por Castro Alves, revela a presença do sentimento coletivo
que posteriormente Carlos Drummond de Andrade consolidou sob a forma
de sentimento do mundo. Cingiu-se, como assinalou Eugênio Gomes, à
máxima hugoana de que a poesia não está na forma das idéias, mas nas
próprias idéias, acentuando-se ainda mais, em seus cantos, a
antítese entre o mundo real e o mundo ideal. Pensar por antítese era
aliás atitude generalizada entre românticos e sobretudo em Castro
Alves: "E as palmeiras se torcem torturadas, / Quando escutam dos
morros nas quebradas / O grito de aflição." Havia intenção
pragmática em seus cantos (antíteses violentas, onomatopéias
ressoantes) feitos para serem declamados em praças, em teatros ou
grandes salas - discursos de poeta-tribuno.
* Léo Schlafman é redator do JORNAL DO BRASIL
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