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(De Flauta Onírica e Novos Poemas, 2001) |
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Em 21/07/2001
Poesia
Carlos Cunha reaparece pelas mãos cuidadosas e competentes de Guido Guerra, com ilustrações de J. Arthur (belíssimas, precisariam de comentário à parte), sob o patrocínio da Fundação Gregório de Mattos (presidida por esse humanista, Francisco Sena), nessa coleção que merece todos os louvores e reconhecimento dos leitores e da Bahia de modo geral. Carlos está como um poeta deve estar: tratado à altura do seu mérito. A flauta onírica e novos poemas, 2ªed. ampliada (Salvador: Edições Cidade da Bahia, 2001, Coleção Poesia nº 4, 167 págs.), é uma publicação da maior importância para a literatura baiana, por todas as evidentes virtudes e características. Bem distribuída, estará melhor ainda. Como objeto, o livro é um primor - lúcido e minucioso trabalho editorial. Claro, há falhas na editoração, mas essas independem de quem edita. Guido está dando uma significativa contribuição à nossa cidade e, conseqüentemente, às Letras. Diante de tanta edição mal posta que anda por terras brasílicas, as Edições Cidade da Bahia são uma lição de competência e probidade numa conjunção feliz de pessoas que, reciprocamente, se merecem. Ganhamos nós, leitores, ganha a literatura baiana, nesse livro que se abre em texto recendendo a fruto recém-colhido. Isto é a verdadeira poesia: não importa o tempo em que foi escrita, terá sempre o sabor do novo em sua construção de linguagem, que nos conduz para uma percepção única do mundo. O segredo se encontra na delicada passagem da percepção poética (estado pré-verbal) para a realização dessa percepção em linguagem. Há um ponto nevrálgico, de discussão acalorada, por entre os intelectuais da Bahia neste momento, no que toca à marca diferencial da poesia - há os “formalistas” e os “conteudistas”, dizendo-se uns aos outros seus recíprocos pecados. E essa não é uma questão local, diga-se de passagem: é nacional e possivelmente geral - o que precisa ainda ser examinado com mais vagar. O livro de Carlos Cunha surge - não por acaso - nesse momento de controvérsia, aqui na Bahia. A flauta onírica e novos poemas, após 21 anos de lançamento de Flauta onírica (Livraria Nosso Tempo, 1977), nos conduz à morada misteriosa dos sonhos, fonte permanente da criação poética e artística de modo geral, além de instigação continuada às indagações das ciências, não apenas as humanas. É uma edição comemorativa em todos os sentidos: o do aniversário de nascimento de Sosígenes Costa (vide colofão), o da celebração do reaparecimento do poeta, há mais de duas décadas ausente das livrarias, o da celebração da poesia - que prevalece, independentemente de ficar oculta ou ocultada por algum tempo. Por isso é que, daqui de onde me situo, aconselho aos poetas jovens: não tenham pressa, não fiquem ansiosos, pois a boa poesia emerge e se mostra, mais dia, menos dia. Basta um leve movimento do poeta: é visto. Assim como a poesia débil será ocultada pelo tempo, mesmo que, na sincronia, esteja rutilando com o brilho falso da bijuteria. Deixemos o mito da precocidade genial para Rimbaud, no século XXI, não há mais lugar para a criança/poeta, pois poetas/crianças somos todos nós, independentemente de nossa decisão. É Rimbaud ele mesmo que nos incita a meditar sobre a infância como pátria do poeta: Cette idole, yeux noir et crin jaune, sans parents ni cour, plus noble que la fable, mexicaine et flamande; son domaine, azur et verdure insolents, court sur des plages nommés, par des vagues sans vaisseaux, de noms férocement grec, slaves, celtiques. (Enfance).* A flauta onírica indica o dilema da poesia desde sempre e aponta para a essência da poesia ela mesma: a rejeição ou a exigência de um mundo transcendente, de um mundo de essências que, ante o poeta particular - e no caso de Carlos Cunha com sua própria personalidade fremente e dolorosa - é mobilizado pela incursão sensorial no mundo das aparências. A pátria poética de Carlos Cunha é o Simbolismo (e não se esqueça que, neste, as marcas do Parnasianismo são indeléveis, ao nível de forma). A imagética, as sinestesias, as conexões sensoriais revelam a matriz simbolista; o gosto pelo retórico, pela palavra rara, pelo artifício denunciam a matriz parnasiana. E é daí que Carlos Cunha parte para erigir seu texto, singular entre seus contemporâneos, marcadamente impostado ante uma vida banal e utilitarista contra a qual se posiciona. Nesse movimento, o poeta dialoga com as alegorias, seus totens sagrados, situados numa terra distante do cotidiano e resgatados pela visitação da infância: Em trezentos semáforos luminosos esse tempo tem seus opiáceos...(...) Há um sistema que produz risos;/ há uma lógica que organiza o cio./ Há uma assepsia que desinfeta os pulmões/ em três segundos num relógio cor de óxido. (Artefatos). Essa arrogância, essa afirmação do locus da poesia enquanto substrato e fonte de emoções preservadas e puras (Platão) confunde o julgamento de alguns companheiros de geração desse poeta, que o consideram gratuitamente rebuscado e ornamental. Não é. O poeta me faz lembrar as decisões verbais do nosso maior simbolista, Cruz e Sousa. Em Carlos Cunha, também, a sugestão indireta dos símbolos - que não se situam na realidade lógico-causal - atingem um intuicionismo alógico. Estilizando diferentes apoios fonéticos, volta-se para uma poesia densa e musical: aliterações, assonâncias, cognatismo dirigem a orquestração do verso, e a busca da palavra contagia-se do encantamento pelas sonoridades e conteúdos imersos que faz emergir, libertando o vocábulo dos padrões do gosto contingente. É, mais uma vez, Cruz e Sousa, que aqui comparece como modelo de construção formal: Busca também palavras velhas, busca,/ limpa-as, dá-lhes o brilho necessário,/ e então verás que cada qual corusca/ com dobrado fulgor extraordinário. (Arte, 1891). Observem-se esses versos de Carlos Cunha: A visita tem espadas escondidas,/ oculta escarpa entre os mamilos;/ e se despede aromada de suspiros/ martirizando de lírios meus sentidos. (Flauta onírica, p.58). Aqui, como em outros - se não todos - momentos, o poeta vai buscar o casamento raro dos atributos em relação aos referentes, dos complementos em relação às ações ou emoções expressadas pelos verbos e last but not least, um gosto pela super-realidade que o aproxima do surrealismo. Nesse livro, há poemas antológicos como “Breve comunicado do poeta burguês”, “Somos” e “Canto de Natal no perímetro urbano”, nos quais o poeta se revela um domador de miragens e um artífice de imprevistos: Há mecanismo no espaço físico das ruas,/ Ruas estreitas apertando/ Casas e cones,/ Ruas largas, aceitando/ Esquinas e deltas. // Ruas que se eu penso/ São becos, burgos, rampas. (p.35). A visão do poeta realiza uma incisão nas geografias por onde deambula e daí retira uma realidade mais real do que a das aparências. O flânneur (Benjamim) busca na cidade aquilo que a própria cidade oculta - uma cidade implantada na lembrança, longínqua e harmoniosa, recolhida, no agora (tempo ameaçado dos deambuladores), em pedaços, fragmentos de uma vida perdida e situada no Absoluto. O simples andar pela cidade conduz o eu poético à percepção de várias camadas de realidade escondidas pela aparência imediata ao olhar desprevenido dos que amam com uma ternura dúbia e morta (“Canto de Natal no perímetro urbano”). A escolha vocabular, aqui como alhures, privilegia substantivos concretos que se desprendem da realidade e tornam-se símbolos de uma outra existência, marcadamente onírica. O devaneio do homo delirans substitui-se à rigidez do homo sapiens e retoma o caminho perdido do homo faber, sobrepujando, por isto mesmo, a loucura e a morte. Não há mais lugar para se respirar no mundo das criaturas mecânicas que dormem o sono depressa. (ib.). Por outro lado, os blocos fônicos deslizam pelo trilho do tempo humano, espacializando-o para sobreviver. O poeta é ser dos espaços, das geografias, das demarcações de terreno, da palpação dos objetos, da degustação dos momentos, da audição dos sons inaudíveis, da detecção e contemplação do eterno no ínfimo. Arcanjo)aurora(pássaro:/ seu coração foi escasso,/ Astúcia) sargaço (cáften:/ seu coração foi só asco. (p.14). Nos parênteses que se fecham, as realidades escondidas, nos parênteses que se abrem, as realidades percebidas em símbolos; no interregno, o alumbramento e a queda na realidade. As assonâncias e as consonâncias criam a atmosfera onírica, mais uma vez e sempre. O poeta aprendeu a fazer poesia com os grandes poetas do século XIX, inclusive os surrealistas. Claro está que, ao situar características de Carlos Cunha em relação à tradição literária é na busca de sua inserção nessa mesma tradição, seja para confirmá-la, seja para contrapor-se-lhe, seja para acrescentá-la de novos conteúdos e novas formas - visto que não há um sem o outro em nenhum momento do resultado do processo poético. O grifo é para assinalar o sintoma, a marca, a cicatriz, a fissura, o crivo, a forma poética, esta, condutora dos conteúdos apreendidos e revelados exatamente porque há uma forma - trabalhada, cuidada, convincente, nítida, transparente, lúcida, conseqüente, bela. Bela, exatamente, porque extremamente cuidada com o rigor obstinado - o ostinato rigore que batiza os poetas para ingressá-los no panteon do cânone. Não há outra saída. O cânone, este sim, permeia-se do gosto pessoal do observador e selecionador, e não poderia ser diferente, mas o cânone é a referência, o caminho claro da realização plena, por isso também norteador para os que estão a emergir e se beneficiam do já construído, do paideuma e sua moira - suas sanções e exigências. E a poesia será, provavelmente, a mais exigente entre as artes. Não é um objeto cultural, já que seu ângulo de visão é supracultural, fragmentário; não se dobra às políticas de territorialidade, pois, a despeito de só existir no espaço da linguagem e da língua, delas se desprende para formar um objeto transcendente; não é literatura, no sentido em que Sartre a concebe em seu famoso ensaio Qu’est-ce que la littérature?, situando-se mais próxima do mito e da religião: suas manifestações externas e suas liturgias. Esse esclarecimento é necessário para iluminar a controvérsia local forma/conteúdo, e para direcionar esse foco de luz para a poesia de Carlos Cunha, que sofreu por parte de alguns de seus contemporâneos uma grave injustiça: acreditaram-no maneirista no sentido minimizador do termo, por, pretensamente, cultivar o verso e o vocábulo raros e preciosos. É que a geração 60 vivenciava o clima das vanguardas, desacreditando da tradição, notadamente a romântica/simbolista e a parnasiana. A poesia de Carlos Cunha é, entre os seus companheiros de geração, de primeira linha, não há dúvida. Quem viver, verá. O que se espera agora, do poeta, é o desvelamento de seu texto oculto - os inéditos e os por virem. Afinal, começamos a merecê-lo. * Este ídolo, olhos negros e crina amarela, sem pais
nem corte, mais nobre do que a fábula, mexicana e flamenga; seu
domínio, azul e verdor insolentes, corre nas praias onde ondas sem
naus gravaram nomes ferozmente gregos, eslavos, célticos.(Arthur
Rimbaud. Infância. Tradução de Celina de Araújo
Scheinowitz).
Maria da Conceição Paranhos
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A Ceia |
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