Eduardo Campos
O ENTERRO ou A CASA SEM CÃO
A mulher, à pressa, já segurava a
bolsa para sair, depois de verificar atenta se o fogão a gás não
ficara com alguma boca acesa; e se voltou para o pai idoso,
recomendando:
Estou de partida. Tenha cuidado na
casa. Demoro pouco.
Ia acrescentar que por urgente
necessidade tinha de se ausentar, pois precisava ganhar uns trocados
a mais para dobrar a resistência do bodegueiro sem mais querer
fiar... Parou. O outro dizia-lhe decidido:
– Vou sair também. Cadê o meu
paletó?
Ela estacou surpresa:
– Sair? sair pra onde?
A voz do homem soou enérgica e
resoluta:
– Você estava na cozinha, nem
prestou atenção. Deu a notícia no rádio...
– Que notícia, pai?
– Você conhece, não... Era meu
grande amigo. Morreu. Coitado do Belisário.
– Tão importante assim para
merecer registro em programa de rádio? Não, papai, o senhor se
confundiu...
Ele insistiu, a cobrar:
– Cadê o meu paletó?!
Seu paletó foi comido pelas
traças... Tinha virado peça de museu.
Me parecia ainda bom de uso. A
última vez...
Ela interrompeu-o:
– Isso foi há doze anos, quando
faleceu o vizinho.
– Sei disso não. Bom, só sei que
vou ao enterro do meu amigo Belisário. Sem paletó. Todo mundo vai
reparar. É que nunca vesti silaque em cerimônia social.
– Papai, não quero teimar, mas
tudo não passa de um equívoco. O locutor...
– ... o locutor falou bem duas
vezes o nome dele, o endereço, deu tudo! Meu amigão! E você não
sabe...
– Não sabe o quê?
– Tínhamos um pacto. Ele jurou, eu
jurei também: se um dos dois morresse primeiro, o que ficasse
estaria obrigado a ir ao enterro, estivesse onde estivesse. Assim
vai ser... Deus o chamou em primeiro lugar, tocando a mim, agora,
cumprir a palavra empenhada.
– Que palavra empenhada! Isso
passou! E por favor vá sossegar tenho de ganhar o meu dinheiro.
– Ah, então é desse modo? Muito
bem! Não causa admiração que o mundo esteja – me deixe dizer um nome
feio – nessa esculhambação de hoje. Não! Sou de ontem, de tempo em
que as pessoas possuíam palavra, cumpriam o trato. Cedia o lugar de
sentar nos bondes a uma dama, ajudava a idosos...
– Papai, escute bem. Os seus netos
já foram trabalhar, e eu só vou sair por extrema necessidade. Dessa
forma o senhor não pode comparecer ao sepultamento do seu grande
amigo. Por isso, é melhor se contentar com uma oração...
– Oração é coisa de protestante.
Eu rezo.
– Pois então reze. Dá tudo igual.
Contanto que fique em casa. A nossa, repare, não pode ficar sem
ninguém, principalmente com a onda de ladrões solta no bairro...
– ... ladrões aqui ?!
– É onde dá mais.
Ele ficou pensativo. Depois de um
momento, lembrou:
– Deixe o cachorro botando
sentido. Você pode ir pegar os seus trocados, como falou, e eu sigo
para cumprir o meu acordo...
Paciente, ela explicou:
– O senhor deve estar esquecendo
as coisas... O Japi morreu... morreu de velhice. E nós não tivemos
condições de adquirir outro animal de guardar a casa.
– Agora deu ruim! Eu não posso
desfazer o trato com o falecido. O Belisário se estivesse em meu
lugar, com paletó ou sem paletó ia acompanhar o meu enterro. Foi o
melhor amigo que tive, marido exemplar.
Ela moveu a cabeça, aborrecida:
– E tem mais, papai, o dinheiro
que vou receber é importante para pagar a mercearia. De outro jeito,
se duvidar, vamos ter de passar fome... E mesmo...
– Mesmo o quê?
– O senhor, aos oitenta, não tem
mais condições para sair de casa, desacompanhado.
– Minha companhia é Deus. Me
considero forte, me levanto sozinho de noite para ir ao banheiro...
e...
– Mas não pode.
– Alugo um menino do vizinho.
Ainda tenho uma pontinha de dinheiro da aposentadoria.
– Compreenda, papai! A família do
tal Belisário na certa nem sabe se o senhor existe. Bem, a hora está
passando e preciso, agora digo como o senhor, preciso cumprir meu
trato.
– Meu Deus, a que ponto cheguei na
vida! Minha própria filha quer que eu fique desmoralizado. Contando
não tem quem acredite!
– Ela tornou a insistir em tom
amável:
– Papai, vá sentar-se na sua
cadeira de vime, perto da porta... Prometo, prometo de verdade! Vou
ficar atenta aos jornais! Podemos ir juntos à missa de sétimo dia.
– Missa de sétimo dia não é
enterro. Não aceito esse tipo de solução.
E com convicção, exaltando-se:
– Vou ao enterro, VOU!
– Papai...
– VOU, VOU!
Foi só um instante, tempo em que
ela apreensiva consultou o relógio, a ver que horas davam, e
decidiu:
– Não tem acordo, não tem paletó,
não tem enterro! Vá sentar na cadeira como estou mandando, que
preciso ganhar o meu dinheiro. É isso!
– Deus castiga a quem maltrata os
pais.
– É sentar bem direitinho e não
deixar a casa só. Os ladrões, repito, andam por aí. Se duvidar vão
entrar aqui e carregar o seu rádio. Vá, vá, vá, me obedeça!
Fê-lo arriar-se na cadeira de
vime, nervosa, considerando que se não partisse quanto antes não
teria como passar a roupa, tarefa a que se obrigara de véspera.
– Não deixe ninguém entrar.
Ninguém mesmo!
Ele esteve para altear o tom da
voz e protestar mais uma vez, chutar os móveis da sala, gritar
palavrão, chorar, até chorar...
Mas se reconheceu trêmulo,
esmorecido, e na realidade sucumbido por não poder, como prometera,
honrar o compromisso com o Belisário.
E se deixou ficar batendo o pé no
chão, perdidamente magoado.
Dolorosamente cão.
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