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Efraim Tomás Bo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Alguma notícia do autor:

Efraim nasceu em Villaguay, na província de Entre-Rios, Argentina, naturalizou-se brasileiro em 1940 e faleceu em 1978, no Rio. Escreveu a vida inteira, artigos e editoriais (como no jornal anárquico "La Vanguardia", de Buenos Aires), filosofia (período paulista sobretudo, revistas Convivium e Cavalo Azul), e literatura ("Cuadernos del Hombre Verde", publicação post-mortem por iniciativa dos amigos Godo Iommi e Gerardo Mourão, no Chile). Existe uma rua com seu nome no bairro de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, ao lado da Cidade de Deus. O filho de Efraim, João Batista Lanari Bo, reside no Japão. Contato: lanari@brasemb.or.jp

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion

 

Rafael, Escola de Atenas, detalhes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

Efraim Tomás Bo


 

O país dos Mourões

 

A operação humana, nada mais que humana, de converter o conteúdo psíquico em plenitude, sejam os fantasmas do sonho, sejam os duendes da reminiscência, até a uma forma objetivada da expressão (ou espresione como queria Croce, ou também Gestaltung, que alude com maior precisão à imagem que nasce), parece haver sido uma constante da poesia que tem origem na viagem de Ulisses ao Hades, e que alcança, no orfismo, categoria do sagrado.

 Este trânsito ao reino noturno dos que hão sido, uma e muitas vezes foi empreendido. No rastro do Odisseu foi Enéias. E que outra cousa é a Divina Commédia senão o êxtase, a violação das dimensões naturais do próprio ser e da própria natureza, na descida ao frio e ao fogo eterno ? Dom Quixote, também, como Ulisses, Enéas e o Florentino, ouviu, com os sentidos do corpo e da alma , a memória tornada viva e presente dos que foram, no fundo da Cueva de Montesinos. Francisco de Quevedo, em um dos seus graves Sueños, contempla a dança grotesca e diabólica das almas mortas na alma, na procura dos ossos próprios, da carne própria, ossos e carne dispersados pelo pecado, mas necessários para a tremenda presença da última chamada.

 Este orfismo como forma de descenso infernal, forma na qual se insere em todas as dimensões O País dos Mourões, com o signo cristão, tem um novo antecedente e um novo patrocínio: o poema apocalíptico de João. Seremos chamados, poderosamente, à direita e à esquerda, e veremos – ou não veremos – o sagrado na glória e na majestade. Em Dante, em Cervantes e em Quevedo, através do Apocalipse, a revelação poética da experiência do sagrado supõe uma vida purgativa alegoricamente expressada.

 Quisera eu embrenhar-me pela floresta alegórica de O País dos Mourões para saber, à maneira de Godo, quando el aire débil hace una figura, ou en que momento los sonidos impares acechan e porque no llegaran a las sílabas sus nombres muertos. Mas, antes que a redução esquemático-significativa encontre necessário, através da estilística da fala e da linguagem, desatar o estilo individual e os elementos afetivos, originados da reminiscência viva, que se incorporam à linguagem e, pela expressão, se tornam formas objetivadas.

 Toda poética se tece nos elementos misteriosos – fonéticos, luminosos, cromáticos – de uma língua. Vejo que é necessário harmonizar a afirmativa precedente com a poética de Gerardo, para não ofuscar sua valiosa significação estilística na conformidade de uma trivial paráfrase. E para que paráfrase, se o pensar e o dizer subjetivo de Gerardo, neste trânsito infernal, sobre homens e coisas que foram, está despojado de correções lógicas: causa e efeito se separam, se invertem ou, simplesmente, se fundem, pela impressão sensorial da lírica do objeto ? A alusão à lírica, expressão íntima e estiliscamente individual, pareceria uma negação do objeto. Em O País dos Mourões, como já foi no opulento Cabo das Tormentas, as propriedades reais dos objetos, sensorialmente, não são consideradas. A força formal da língua, língua que se enriquece, língua que absorve e assimila o patinado cromatismo contido em crônicas e cartas dos Mourões, datadas de um século, mas com o saber e o sabor de centúrias passadasGerardo Mello Mourão conservadas no quietismo provincial, cria, não uma aparência de realidade, mas fecunda, até à pura objetividade, a realidade que aparece. Como na poemática da série órfica, como aquela do signo apocalíptico, as sombras de Alexandre e de Úrsula, Hermenegildo e Raimundo, Manuel, Tobias, Missanta e tantos outros da Canabrava dos Mourões, foram caindo todos, à direita e à esquerda. Se embargo, a lógica estrutural da poesia, vivência original, como quer Dilthey, faz com que os caídos à esquerda e à direita, vigorosamente caídos e pateticamente erguidos depois, desfilem suas chagas e suas almas ao compasso gerado no não-ar e na não-luz, pela flauta que diz: "e meus olhos/ assíduos e defuntos como a dos vivos/ começam a apalpar-vos:/ quem será testemunha senão vós/ de partida e chegada ? ... e que é meu rosto senão/ a beleza que o amor talhara nalguns olhos ? ... é sobre a terra de meu pai que me levanto agora ... e a tantos ... eu os chamo e suplico:/ e altar e coro se incorporem/ e assim/ eu sou". No continente de vivos e de mortos, desde pássaramagda-pássaralena, depois pássaraléa, com o sangue inventado por um distraído querubim (cherúbica, scienza eseráfico amore) navegarão entre brisa e brisa, em barco de silêncio.

 Atormenta-me esta tentação de paráfrase para o rumor de flauta de um menestrel do Hades. Quero, e volto a ela, a busca estilística. Como se escrevesse páginas de diário, na leitura. E não será esta a verdadeira aproximação com a poesia, guiado pela ondulante situação do ânimo ? A lingüística moderna fala da representação verbal impressionista quando o fenômeno, aparição no sentido lato, se dá sem antecedente nem conseqüente, como fato simples e isolado. Obra e criador se fundem para a visão, em cada perspectiva. Por um ato de estilo, a representação se inverte, se obscurece, se desobriga da sucessão temporal e é como um brilhante de mil facetas quebrando a luz mesma que o asseteia. Em Gerardo, esse ato de estilo, ou vontade estilística, não é unívoco: multiplica-se na significação e no cromatismo, no conteúdo e na pura nominação. Impressionista, serve-se de expressões existentes, do popular oitocentista de crônicas e cartas, da sensualidade espontânea de uma voz popular, da gravidade apagada de um documento público jogando com suas variedades semânticas. Mas, com uma fidelidade íntima ao espírito indoeuropeu da língua própria, acentua o voluntarismo do ego, eu sou, agente do vigoroso transmudar-se dos que caíram, e, pateticamente, estão erguidos ao sopro da flauta órfica. A vivência original vivificante, seja expressada em símbolo ou em alegoria, é um ato poético, pela via da linguagem, voluntário e criador, criador da realidade que aparece e não da aparência da realidade. Para que exemplos ? Quem busca, encontra a estilização das formas verbais preexistentes cunhadas no tempo, ou formas espirituais de linguagem – convergentes razão, experiência e memória – que corporificam as sombras e dão voz ao que já não é, por vias intuitivas que não aquelas objetivadas na lógica quotidiana da fala.

 Que via é essa, que não objetiva espiritualmente, pelas vias conhecidas ? Ocorre-me, de súbito, uma busca topológica no território da áspera superfície da alegoria. Por que a experiência do sagrado ? Por que a experiência poética, helenicamente, testamentariamente, em alegorias ? O não-sensível – o sobrenatural – transcendia a um símile, externamente perceptível, debilmente reflexivo. Mais topologia: a metáfora nos diz uma coisa por outra, apenas como alusão; pelo símbolo, tudo é espírito no fazer telúrico, ou as coisas nascidas da terra elevam-se à representação da espiritualidade. Tipificamos – e sigo em parte o raciocínio de Eliseu Richter como meio com outra meta – a idéia das coisas (platonismo) não contempladas na realidade. O caminho se bifurca e vamos à meta com o pensamento na origem – a alegoria. A escritura primeira, aquela que sabemos que tem mais de cinqüenta séculos, foi figura de imagens das coisas visíveis para o olho físico: os egípcios, em formidável abstração, transformaram a escritura em representação das imagens dos sons e ali se deteve o espírito. Os chineses, desde tempo venerável, utilizam signos das palavras. Nosso Ocidente, contado desde as helênicas idades, introduziu, para sempre, na escritura, o signo dos sons. Terá havido um empobrecimento do espírito neste trânsito de imagens, do concreto, da coisa, até à pura figura do abstrato, som? Antigos antiquíssimos, egípcios e chineses, que ficaram em figuras, em imagens de sons e palavras, terão sido menos, espiritualmente, que os helenos e os seguintes, forjadores da representação invisível por signos fonéticos elementais? Dir-se-ia que neste trânsito, fixado topologicamente, está o segredo da criação poética, uma vez símile do sobrenatural e, agora, objetiva criação espiritual do objeto. Reside aqui o primeiro grau para a percepção poética. A poesia - O País dos Mourões – o faz em grau eminente. Transita por esses modos de representação todos: é imagem verdadeira do que vemos, imagem que cresce a nossos olhos do corpo com a pura enunciação verbal, sem que ouçamos o rumor da contextura fonética; é também imagem, pitagoricamente mensurável, de essências rítmicas não mensuráveis pela pura lógica estrutural da significação. É a pura palavra como canto, canto que se manifestou depois do nascimento das musas e que eliminou a memória da vida e da morte na raça das cícadas, ébrias, sem pausa, possuídas pelo dom divino da palavra cadenciada.

 Importará se sujeito e predicado se identificam pelo é, misterioso em sua estrutura em todas as línguas, misterioso por sua função ontológica ou mais ainda, quando desaparece como expressão idiomática concreta em certas línguas, desaparecimento estranho para nosso falar indoeuropeu, necessitado da cópula do juízo ?

 É um teólogo – Gottlieb Soenhgen – quem se pergunta, em um pensar da teologia do caminho sobre a escritura e a cópula lógica. A criação poética supera essa aporia lingüística. Disse que é imagem, puro som, palavra cadenciada. Outra coisa sua lógica estrutural: desde a vivência, cria, a cada momento, sua técnica e sua forma, tecida, sim, nos elementos da língua própria, língua comunal, língua saturada de história e que, produto cultural, também é portadora de sentido. Melhor, sua consistência íntima tem sentidos e significados que se sobrepõem, condicionam ou dirigem a fantasia, a imaginação e a criação.

 Não é crítica – distinção – nem paráfrase, nem elucidação meu ensaio sobre Gerardo. São – já o declarei – como páginas de diário, de um leitor moroso, com os dias fundidos pela mesma unidade temática, que foi lendo outras coisas, não paralelamente, mas conduzido por uma necessidade implícita de esclarecimento, na claridade ofuscante do poema. Quase nada falo do poema dos Mourões. E para que, se ele está em seu trânsito sobrenatural, como nostálgico, convocando como sopro de flautas as sombras dos que, caídos à esquerda e à direita, na morte e na vida da morte, se hipostasiam mais na linguagem que na pessoa, mais no último descendente que, como Elbehnon, refugiado noturnamente no herdado castelo, convoca os de sua linhagem para a última jogada, para a parada heróica do fenecimento.

 A tentação esclarecedora se repete quando, precisamente, através da imagem, da alegoria ou símbolo, veremos que a poética – e não a poesia – de Gerardo reconstrói aquele trânsito da imagem às coisas: "de tuas mãos, amor, recebo o novelo do fogo/ da linha do Equador ... hoje Abdias, a noite quer tarefa de morenas/ e amanhã/ voltaremos à ruiva de outro dia/ vem, formosa mulher, camélia pálida"... Só a imagem por sons, na realidade que aparece – e não a aparência da realidade – em ... o lírio que em teus olhos pálpebras/ apascentam de pétalas no claustro.

 É um diário (insisto em que se trata de um itinerário quotidiano sobre a poesia de Gerardo) que se prolonga perigosamente por explicações, necessárias talvez, para uma cordura que está muito longe da poesia. Por que, por exemplo, não pesquisar pausadamente uma sistemática montagem de andaimes da teologia (montagem que foi o tomismo para Dante), que explique esse purgatório, não já do pecador, mas de outro pecador, que alguma vez recebia a chuva de ouro da graça, afastou-se e só a ela voltará quando, por amor, outra alma seja pelo sortilégio do sopro de sua flauta, na estrada sinuosa na visão e reta no andar, onde chovem o ouro e a graça. Também não foi em vão que a leitura quotidiana me levara a pensar na sintaxe, no mistério ontogênico da expressão copulativa, ontogênico sempre, identificador no juízo da polaridade sujeito-predicado. (E por que não objeto-sujeito, ou alternativamente ? ).

 Torno à poética – e não à poesia – de Gerardo, para pensar que é, precisamente, uma poética do caminho, caminho não traçado como procissão alegórico-simbólica, porém mais fundo: é meta, é direção, é força inicial da flecha rumo ao alvo. Chega? A poesia será testemunho.

Direto para a página de Gerardo Mello Mourão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

31.8.2007