Efraim Tomás Bo
O país dos
Mourões
A operação humana, nada mais que humana,
de converter o conteúdo psíquico em plenitude, sejam os fantasmas do
sonho, sejam os duendes da reminiscência, até a uma forma objetivada
da expressão (ou espresione como queria Croce, ou também Gestaltung,
que alude com maior precisão à imagem que nasce), parece haver sido
uma constante da poesia que tem origem na viagem de Ulisses ao Hades,
e que alcança, no orfismo, categoria do sagrado.
Este trânsito ao reino noturno dos que
hão sido, uma e muitas vezes foi empreendido. No rastro do Odisseu
foi Enéias. E que outra cousa é a Divina Commédia senão o êxtase, a
violação das dimensões naturais do próprio ser e da própria
natureza, na descida ao frio e ao fogo eterno ? Dom Quixote, também,
como Ulisses, Enéas e o Florentino, ouviu, com os sentidos do corpo
e da alma , a memória tornada viva e presente dos que foram, no
fundo da Cueva de Montesinos. Francisco de Quevedo, em um dos seus
graves Sueños, contempla a dança grotesca e diabólica das almas
mortas na alma, na procura dos ossos próprios, da carne própria,
ossos e carne dispersados pelo pecado, mas necessários para a
tremenda presença da última chamada.
Este orfismo como forma de descenso
infernal, forma na qual se insere em todas as dimensões O País dos
Mourões, com o signo cristão, tem um novo antecedente e um novo
patrocínio: o poema apocalíptico de João. Seremos chamados,
poderosamente, à direita e à esquerda, e veremos – ou não veremos –
o sagrado na glória e na majestade. Em Dante, em Cervantes e em
Quevedo, através do Apocalipse, a revelação poética da experiência
do sagrado supõe uma vida purgativa alegoricamente expressada.
Quisera eu embrenhar-me pela floresta
alegórica de O País dos Mourões para saber, à maneira de Godo,
quando el aire débil hace una figura, ou en que momento los sonidos
impares acechan e porque no llegaran a las sílabas sus nombres
muertos. Mas, antes que a redução esquemático-significativa encontre
necessário, através da estilística da fala e da linguagem, desatar o
estilo individual e os elementos afetivos, originados da
reminiscência viva, que se incorporam à linguagem e, pela expressão,
se tornam formas objetivadas.
Toda poética se tece nos elementos
misteriosos – fonéticos, luminosos, cromáticos – de uma língua. Vejo
que é necessário harmonizar a afirmativa precedente com a poética de
Gerardo, para não ofuscar sua valiosa significação estilística na
conformidade de uma trivial paráfrase. E para que paráfrase, se o
pensar e o dizer subjetivo de Gerardo, neste trânsito infernal,
sobre homens e coisas que foram, está despojado de correções
lógicas: causa e efeito se separam, se invertem ou, simplesmente, se
fundem, pela impressão sensorial da lírica do objeto ? A alusão à
lírica, expressão íntima e estiliscamente individual, pareceria uma
negação do objeto. Em O País dos Mourões, como já foi no opulento
Cabo das Tormentas, as propriedades reais dos objetos,
sensorialmente, não são consideradas. A força formal da língua,
língua que se enriquece, língua que absorve e assimila o patinado
cromatismo contido em crônicas e cartas dos Mourões, datadas de um
século, mas com o saber e o sabor de centúrias passadas
conservadas no quietismo provincial, cria, não uma aparência de
realidade, mas fecunda, até à pura objetividade, a realidade que
aparece. Como na poemática da série órfica, como aquela do signo
apocalíptico, as sombras de Alexandre e de Úrsula, Hermenegildo e
Raimundo, Manuel, Tobias, Missanta e tantos outros da Canabrava dos
Mourões, foram caindo todos, à direita e à esquerda. Se embargo, a
lógica estrutural da poesia, vivência original, como quer Dilthey,
faz com que os caídos à esquerda e à direita, vigorosamente caídos e
pateticamente erguidos depois, desfilem suas chagas e suas almas ao
compasso gerado no não-ar e na não-luz, pela flauta que diz: "e meus
olhos/ assíduos e defuntos como a dos vivos/ começam a apalpar-vos:/
quem será testemunha senão vós/ de partida e chegada ? ... e que é
meu rosto senão/ a beleza que o amor talhara nalguns olhos ? ... é
sobre a terra de meu pai que me levanto agora ... e a tantos ... eu
os chamo e suplico:/ e altar e coro se incorporem/ e assim/ eu sou".
No continente de vivos e de mortos, desde pássaramagda-pássaralena,
depois pássaraléa, com o sangue inventado por um distraído querubim
(cherúbica, scienza eseráfico amore) navegarão entre brisa e brisa,
em barco de silêncio.
Atormenta-me esta tentação de paráfrase
para o rumor de flauta de um menestrel do Hades. Quero, e volto a
ela, a busca estilística. Como se escrevesse páginas de diário, na
leitura. E não será esta a verdadeira aproximação com a poesia,
guiado pela ondulante situação do ânimo ? A lingüística moderna fala
da representação verbal impressionista quando o fenômeno, aparição
no sentido lato, se dá sem antecedente nem conseqüente, como fato
simples e isolado. Obra e criador se fundem para a visão, em cada
perspectiva. Por um ato de estilo, a representação se inverte, se
obscurece, se desobriga da sucessão temporal e é como um brilhante
de mil facetas quebrando a luz mesma que o asseteia. Em Gerardo,
esse ato de estilo, ou vontade estilística, não é unívoco:
multiplica-se na significação e no cromatismo, no conteúdo e na pura
nominação. Impressionista, serve-se de expressões existentes, do
popular oitocentista de crônicas e cartas, da sensualidade
espontânea de uma voz popular, da gravidade apagada de um documento
público jogando com suas variedades semânticas. Mas, com uma
fidelidade íntima ao espírito indoeuropeu da língua própria, acentua
o voluntarismo do ego, eu sou, agente do vigoroso transmudar-se dos
que caíram, e, pateticamente, estão erguidos ao sopro da flauta
órfica. A vivência original vivificante, seja expressada em símbolo
ou em alegoria, é um ato poético, pela via da linguagem, voluntário
e criador, criador da realidade que aparece e não da aparência da
realidade. Para que exemplos ? Quem busca, encontra a estilização
das formas verbais preexistentes cunhadas no tempo, ou formas
espirituais de linguagem – convergentes razão, experiência e memória
– que corporificam as sombras e dão voz ao que já não é, por vias
intuitivas que não aquelas objetivadas na lógica quotidiana da fala.
Que via é essa, que não objetiva
espiritualmente, pelas vias conhecidas ? Ocorre-me, de súbito, uma
busca topológica no território da áspera superfície da alegoria. Por
que a experiência do sagrado ? Por que a experiência poética,
helenicamente, testamentariamente, em alegorias ? O não-sensível – o
sobrenatural – transcendia a um símile, externamente perceptível,
debilmente reflexivo. Mais topologia: a metáfora nos diz uma coisa
por outra, apenas como alusão; pelo símbolo, tudo é espírito no
fazer telúrico, ou as coisas nascidas da terra elevam-se à
representação da espiritualidade. Tipificamos – e sigo em parte o
raciocínio de Eliseu Richter como meio com outra meta – a idéia das
coisas (platonismo) não contempladas na realidade. O caminho se
bifurca e vamos à meta com o pensamento na origem – a alegoria. A
escritura primeira, aquela que sabemos que tem mais de cinqüenta
séculos, foi figura de imagens das coisas visíveis para o olho
físico: os egípcios, em formidável abstração, transformaram a
escritura em representação das imagens dos sons e ali se deteve o
espírito. Os chineses, desde tempo venerável, utilizam signos das
palavras. Nosso Ocidente, contado desde as helênicas idades,
introduziu, para sempre, na escritura, o signo dos sons. Terá havido
um empobrecimento do espírito neste trânsito de imagens, do
concreto, da coisa, até à pura figura do abstrato, som? Antigos
antiquíssimos, egípcios e chineses, que ficaram em figuras, em
imagens de sons e palavras, terão sido menos, espiritualmente, que
os helenos e os seguintes, forjadores da representação invisível por
signos fonéticos elementais? Dir-se-ia que neste trânsito, fixado
topologicamente, está o segredo da criação poética, uma vez símile
do sobrenatural e, agora, objetiva criação espiritual do objeto.
Reside aqui o primeiro grau para a percepção poética. A poesia - O
País dos Mourões – o faz em grau eminente. Transita por esses modos
de representação todos: é imagem verdadeira do que vemos, imagem que
cresce a nossos olhos do corpo com a pura enunciação verbal, sem que
ouçamos o rumor da contextura fonética; é também imagem,
pitagoricamente mensurável, de essências rítmicas não mensuráveis
pela pura lógica estrutural da significação. É a pura palavra como
canto, canto que se manifestou depois do nascimento das musas e que
eliminou a memória da vida e da morte na raça das cícadas, ébrias,
sem pausa, possuídas pelo dom divino da palavra cadenciada.
Importará se sujeito e predicado se
identificam pelo é, misterioso em sua estrutura em todas as línguas,
misterioso por sua função ontológica ou mais ainda, quando
desaparece como expressão idiomática concreta em certas línguas,
desaparecimento estranho para nosso falar indoeuropeu, necessitado
da cópula do juízo ?
É um teólogo – Gottlieb Soenhgen – quem
se pergunta, em um pensar da teologia do caminho sobre a escritura e
a cópula lógica. A criação poética supera essa aporia lingüística.
Disse que é imagem, puro som, palavra cadenciada. Outra coisa sua
lógica estrutural: desde a vivência, cria, a cada momento, sua
técnica e sua forma, tecida, sim, nos elementos da língua própria,
língua comunal, língua saturada de história e que, produto cultural,
também é portadora de sentido. Melhor, sua consistência íntima tem
sentidos e significados que se sobrepõem, condicionam ou dirigem a
fantasia, a imaginação e a criação.
Não é crítica – distinção – nem
paráfrase, nem elucidação meu ensaio sobre Gerardo. São – já o
declarei – como páginas de diário, de um leitor moroso, com os dias
fundidos pela mesma unidade temática, que foi lendo outras coisas,
não paralelamente, mas conduzido por uma necessidade implícita de
esclarecimento, na claridade ofuscante do poema. Quase nada falo do
poema dos Mourões. E para que, se ele está em seu trânsito
sobrenatural, como nostálgico, convocando como sopro de flautas as
sombras dos que, caídos à esquerda e à direita, na morte e na vida
da morte, se hipostasiam mais na linguagem que na pessoa, mais no
último descendente que, como Elbehnon, refugiado noturnamente no
herdado castelo, convoca os de sua linhagem para a última jogada,
para a parada heróica do fenecimento.
A tentação esclarecedora se repete
quando, precisamente, através da imagem, da alegoria ou símbolo,
veremos que a poética – e não a poesia – de Gerardo reconstrói
aquele trânsito da imagem às coisas: "de tuas mãos, amor, recebo o
novelo do fogo/ da linha do Equador ... hoje Abdias, a noite quer
tarefa de morenas/ e amanhã/ voltaremos à ruiva de outro dia/ vem,
formosa mulher, camélia pálida"... Só a imagem por sons, na
realidade que aparece – e não a aparência da realidade – em ... o
lírio que em teus olhos pálpebras/ apascentam de pétalas no
claustro.
É um diário (insisto em que se trata de
um itinerário quotidiano sobre a poesia de Gerardo) que se prolonga
perigosamente por explicações, necessárias talvez, para uma cordura
que está muito longe da poesia. Por que, por exemplo, não pesquisar
pausadamente uma sistemática montagem de andaimes da teologia
(montagem que foi o tomismo para Dante), que explique esse
purgatório, não já do pecador, mas de outro pecador, que alguma vez
recebia a chuva de ouro da graça, afastou-se e só a ela voltará
quando, por amor, outra alma seja pelo sortilégio do sopro de sua
flauta, na estrada sinuosa na visão e reta no andar, onde chovem o
ouro e a graça. Também não foi em vão que a leitura quotidiana me
levara a pensar na sintaxe, no mistério ontogênico da expressão
copulativa, ontogênico sempre, identificador no juízo da polaridade
sujeito-predicado. (E por que não objeto-sujeito, ou
alternativamente ? ).
Torno à poética – e não à poesia – de
Gerardo, para pensar que é, precisamente, uma poética do caminho,
caminho não traçado como procissão alegórico-simbólica, porém mais
fundo: é meta, é direção, é força inicial da flecha rumo ao alvo.
Chega? A poesia será testemunho. |