Emmanuel
Nogueira
11.08.1997
Surpreendente réquiem poético sobre a
Terra da Luz
No livro “Psi, a Penúltima”, Soares
Feitosa conta a saga dos lázaros de sol e sal
A
palavra se fez carne. Não com o verbo, mas pelo substantivo. Poesia
carnal em “hologramas” que expõem a ação intransitiva,
substantiva. E a desconcretude da razão em “louvor” a um
lirismo sorrateiro, buliçoso, fecundo, que não se deixa conter
pelos arautos da verdade histórica ou determinismos abissais da
natureza. São os acordes de trombeta do Anjo Vingador. Sim,
acreditem! é o anjo que emergiu da poeira mítica da terra do sol;
uma terra que oculta entre sua luz ofuscante (“luzeiro sem
matriz”) as dores e delírios, as lendas e lírios, o imaginal e o
real, de uma raça semeada em cinco século de fome e miséria,
transmutada em poesia. (“Imaginal – é uma matriz em que todos
os elementos do dado mundado, constituído de sonho, de lúdico, de
onírico e de fantasia entram em interação, ecoam em concreto ou
correspondem de várias maneiras e em constante reversibilidade,
para descrever o real ou a hiper-realidade” – In: A Contemplação
do Mundo, Michel Maffesoli).
O
Anjo veio só. Ele não precisa de auxílio de Virgílio, pisa em
qualquer chão, mesmo no chão esturricado da terra em sua morte
quente – morte Severina, morte nordestina, vida-morte morrida.
Sabem por quê? ele é a pura poesia. Não veio para julgar, veio
para cantar. Um canto que nos faz abrir os ouvidos para vermos a
beleza e a leveza das coisas nordestinas. Veio fazer um réquiem
sofisticado que perfuma as páginas virtuais com o cheiro do mato da
imburana. É essa sua vingança, macular de poesia os olhos cegos
dos que esqueceram a arte da contemplação. Em seus “cânticos”
podemos auscultar que de coisas simples se vive e se faz a vida.
Escutemos o salmo 151: “O ato supremo da criação/ é também o
galo que canta madrugadas/ e a raposa que o espreita;/ ambos criam
– porque as Auroras criam-/ as Auroras estão carregadas -/ as
Auroras, o galo e a raposa estão pelejadas de Electricidade,
‘Elektri’ mestre Álvaro, Álvaro de Campos,/ e os volantes que
tangem todas as coisas.”
O
Anjo atende pelo nome de Soares Feitosa (natural do
solo-seco-sagrado de Monsenhor Tabosa – CE) e o réquiem completo
está no seu livro de estréia no campo da Poesia, “Psi, a Penúltima”
(Edições Papel em Branco, 254 página, 1997). Em nossa literatura
jamais um estreante foi recebido com tanto furor e elogios,
principalmente no clube seleto de artesãos da palavra (carpintaria
poesia). Mestres como Jorge Amado, Manoel de Barros, Ledo Ivo, José
Louzeiro, entre outro, não pouparam tintas nem adjetivos para
espalhar a boa nova, o nascimento de um grande Poeta. Que nasce com
uma alma inquieta e um coração trêmulo.
Lázaros
de Sol
Orientado
por essa intuição criadora, Soares Feitosa vai bulinando no
universo dos versos quase tristes, quase perfeitos; é o catador dos
cacos de um imaginário que parecia perdido. Ou, como diz Jorge
Amado, “Seu livro é como uma dessas arcas de antigamente, onde
eram recolhidas coisas diversas, cada uma delas co sua importância
e significação”. Chega de confetes, a poesia não necessita
disso. Ousemos abrir de vez essa caixa de Pandora às avessas. Para
o poeta nordestino, segundo Wilson Martins, “o mundo exterior
existe, não como paisagem ou quadros de exposição, mas como bloco
existencial de matas e rios, pássaros silvestres e animais domésticos...”.
O bloco existencial funciona como cenário onde as criaturas do sertão
(plantas, bichos, rios e bichos-homens) interpretam seus papéis no
enredo cosmogônico que Soares traz em si. Conversando em intimidade
com o sol, a raposa, os ventos, as palmeiras, as tanajuras, as
avoantes, os bichos-homens, Soares nos ensina que é possível amar
aquilo que nos destrói, sem deixar de afrontá-lo. Isso porque sua
poesia é um decreto sancionado a alforria à consciência das
palavras. É o bloco estrutural em que tudo é permitido.
Ora,
a prosa nordestina é regional porque a palavra é carregada de
sentido, de uma busca político-ideológica. Graciliano Ramos e
Raquel de Queiroz interpretaram a natureza sertaneja – numa
leitura não menos importante, como estorvo que subjuga e atormenta
o homem; como se um inviabilizasse a vida do outro. Sem entrar no mérito
político dessas narrativas (Vidas Secas e O Quinze), apenas aponto
aqui que as palavras são carregadas de uma consciência –
politicamente correta. Com o Anjo, aprendemos a contemplar, amando,
aquilo que nos toca, ferindo. Sim, o sol é poesia... o corpo esquálido
do xique-xique, os juás que enganam a sede, as chuvas fêmeas-efêmeras,
a inanição incurável... Sim, é a poética da luta do homem com a
vida, sem dicotomias – “quixotices dá força para viver”.
Cheiro
de alecrim
“Psi, a penúltima” revela poesia
feita de saudosismo com toques de amargura; ufanismo pincelado com
ironias, que brotam de uma memória viva, terral; possibilitando o
reencantamento das veredas esquecidas do sertão nordestino. O poeta
rejeita a consciência das palavras porque sabe que ela não traduz
o cheiro nem a cara “forquilhada” do homem-sertão. Prefere sim,
amalgamá-los no bloco existencial, como na genial ode Antífona. Ou
como em Panos Passados, um passeio lírico pelas intempéries da
existência (sertaneja?): “Os bichos desocupam a areia/ ação de
despejo (Juízo Invisível)/ ao cheiro da terra molhada/ sobem às
barrancas/ e o fantástico cheiro da terra/ da terra fêmea, terra
molhada:/ mais uma vez,/ as primeiras estrofes do Gênesis/ Como se
fosse a primeira:/ um tímido fio d’água,/ o rio,/ a aflição
das formigas,/ o revôo dos cupins e das tanajuras,/ e ali se diz:/
por uns breves dias, o leito deste rio tem dono: a Cheia.”
A
possibilidade de reencantamento do mundo na poesia de Soares faz com
que transcenda os limites regionalistas. Nos convida a sentir o
cheiro da terra. Esse livro tem o cheiro das tarde de sol, no mormaço
asfixiante, das águas esporádicas que fecundam a terra como
donzelas semeadas. Poesia que invade a paróquia dos nossos sonhos.
Poesia trabalhada com mãos fecundadas de barro elementar. Um livro
que começou a ser escrito não na era dos dígitos. Sua primeira
estrofe foi nasceu há 54 anos, quando dona Anísia
despejou ao mundo seu único filho, Francisco José Soares
Feitosa.
É
um livro que veio para ocupar um lugar na estante das obras-primas
da literatura brasileira. Veio trazer o movimento sublime da criação.
Por isso, dificilmente terá definição. Na ânsia de traduzir a
obra, busca-se perdidamente adjetivá-la. Porém, a sensação é
que todos adjetivos são inócuos. Esse palavreado que enseja
funcionar como uma ponte entre o leitor e o poeta, às vezes
distanciá-os. Apenas uma outra poesia poderia responder ao muno
imaginal criado pelo Poeta-Soares. Ou que sabe, uma viagem por seus
poemas etéreos.
Não
desanimo, penso em Goethe contradizendo o Evangelho de São João.
Para o autor de Fausto, no princípio não era o verbo. “No princípio
era o sentido. O sentido é tudo que cria e opera? Deveria dizer: no
princípio era a força. Mas também, ao escrever isso, algo me
avisa que não pare aqui. O espírito me ajuda. De repente, sei o
que fazer; e escrevo seguro: no princípio era a ação” –
“Psi, a Penúltima” é o bloco estrutural que pinta o ser e a
paisagem em ação substantiva. |