Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Olinda Rodrigues

Entardecer, foto de Marcus Prado

Poesia: Papéis do outono


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna crítica: 

 

 

Sophie Anderson, Portrait Of Young Girl

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

Celina Sheinowitz


31/08/2002
Outras notícias de Cultural >>

Poesia
Trajeto de pássaro

Celina Scheinowitz
 
Com seu livro de estréia - Papéis do Outono (Salvador: Edição do Autor 2002; Prefácio de Heloísa Prazeres), Olinda Maria Rodrigues Prata oferece ao leitor poemas de feitura amadurecida. Reúnem-se cento e dezesseis composições cuja maturação decorre de uma estreita intimidade da autora com a poesia e com os textos literários, brasileiros e estrangeiros. Na confluência dessa sólida aparelhagem poética pressente-se, sobretudo, o sopro de um Manuel Bandeira, em filigrana na urdidura dos versos.

Os poemas agrupam-se em cinco cadernos - A mão transitória, Meu olhar sobre o mundo, Entre este e o outro espaço, Meus olhos transeuntes e Cadê minha rua? -, com títulos retirados de versos fundamentais para a compreensão das constelações poéticas que se configuram. Poemas curtos. Em poucas linhas - os versos cabem geralmente em uma estrofe, com uma dezena deles, às vezes com menos, podendo ainda se distribuir em duas ou três estrofes -, constrói-se assim “um discreto inflamar-se do mundo no sujeito lírico”, no enfoque de Friedrich Theodor Vischer*. Poesia efêmera, captada em um piscar de olhos, uma poesia que busca flagrar a brevidade de um sorriso, o trajeto de um pássaro que voa ou o instante em que se paralisa a dança:

O mar, azul quadrado/ Pela janela, irrompe/ Sem rasgá-la, de repente/ Como se, de súbito,/ Surfista invisível/ Me inundasse de sorriso (“Visão”, A vidraça sombria me devolve/ Diluída no azul que desce/ A tela de Gauguin/ E o pássaro que passaö (“Instante”) ou O pássaro parado no ar / É ilusão fabricada pela máquina,/ Mas nem por isso menos real/ Que o pássaro que voa./ [...] E a mão transitória que flagra o instante, / Paralisando a dança, / É milagre também. (“O Beija-flor”).

Uma poesia que não foi moldada no mármore nem traz a dureza da pedra. Antes aquática, ela brota com a espontaneidade de uma fonte, com indissociabilidade entre sonoridade e conteúdo, uma evocando o outro em reciprocidade gemelar. O leitor que se coloca em idêntica disposição anímica do poeta percebe esse traço no fluir das palavras, vindas do recôndito do ser, que escorrem como água, resvalando em um leito provisório que se consolida no húmus da poesia:

As garças esgarçam-se no ar/ Róseas e aquáticas, balançando-se/ No chão subitamente envidraçado/ E frio./ Ao fundo Chopin torce suas tranças/ De som, para emoldurar/ A lenta elegância do balé aéreo (“Graça”)
 
Não quero dizer nada// Apenas nadar nos lagos/ Das minhas fantasias. (“Desejo”)
 
Daí o mar, cuja presença se percebe marcante já na escolha da ilustração para a capa do volume, mar que, com suas vagas, espuma, barcos, marujos, sal e vento, desponta sorrateiramente nos poemas como figura arquétipa e emblemática: não é de lá que veio o imigrante que gerou a poetisa? O mar é Portugal, é a saudade e é a vida. Visto em uma série de poemas com emoção, carinho, amor e compreensão, apesar de sua rudeza, suas zangas e temperamento aguerrido, o pai reaparece ainda em “Legado”, juntamente com a mãe, a quem o livro é dedicado, na expressão da dor deixada com a partida final.

Outros temas emblemáticos em destaque na poesia de Olinda Prata são as escadas e seus equivalentes semânticos, as ladeiras, e também as noivas, numa série deles. Ao subir e descer espaços, não refaz ela o sonho de Jacó, buscando chegar aos céus e entender o universo? Essa caminhada expressa certamente uma inquietude ancestral, um medo primordial de despencamento e desejo de fuga, cuja repetição metamorfoseada talvez se cumpra no vôo daquela noiva louca que, com ‘buquê em ofertório”, vaga na memória da poeta. Porque o cerne de sua poesia situa-se mesmo na memória, que a faz voltar ao passado, revisitar cenas vivenciadas, rever a sua infância.

Plural, a poesia de Olinda carrega outros epicentros temáticos: o ciclo das viagens, momentos de reencontro, mas também de deslocalização e desencaixe (com uma curiosa inversão temporal que deixa entrever uma ordem não cronológica para a coletânea) e aquele ponto sinestésico de convergência para a poesia, pintura e música, meio nebuloso de indecisão embrionária da arte, instante em que Rimbaud caminha ao lado de Botticelli, ou em que Chagall, Gauguin, Van Gogh, Chopin, Beethoven, Valéry e Baudelaire fraternizam.

Mestre no domínio da linguagem, Olinda Prata, em duas composições, “Desejo” e “A Valéry”, elabora uma arte poética, com reflexões acerca do fazer de sua poesia, que tem função lúdica para ela: E me digo: poesia é fácil,/ É só gostar de brincar. Quando está “atacada de poesia”, brinca com as palavras, que a “povoam/ Como cisnes ondulantes/ No seu (meu) lago azul Itamaraty”, aí “mergulham”, a “beliscam”, põem-se em “mutismo egoísta”, “meditam”, são “Encasteladas e altivas”, “São ingênuas, ela (eu) também”. Com essa ingenuidade partilhada, a poeta “as busca”, “espera”, “as ignora”..., pois

(...) Com palavras, desconexas que sejam/ O que importa é deixar/ No papel ou no ar/ Cascas sonoras passíveis de demonstrar/ A existência efêmera/ De um universo pessoal.
 
Brinca com as palavras quando utiliza recursos lingüísticos como a sinonímia (Da roseira ao vaso/ A rosa mudou de nome/ Da roseira ao jarro/ A rosa trocou de nome) ou os diminutivos (Na igrejinha de Roma/ Era a freirinha rosada - “Ritual”). No jogo lúdico que se instala, a poeta não hesita em criar palavras, quando a urgência da expressão a pressiona, como no título” Angústia”, termo que lhe fere a garganta diante da impossibilidade de pronunciá-lo e que é assim cuspido nesta roupagem insólita. Também em “O trem bala belifica a paisagem” (“Paris-Caen”), constata-se criação vocabular, que escapole, desta vez, por imperativos sonoros. Nos versos de Olinda Maria Rodrigues Prata, a força de sua expressão convola com a fragilidade de sua alma, resultando uma lírica que, por uma alquimia do verbo, modula-se em vários registros, recriando uma multiplicidade de esferas sonoras e de significação, que se põem a ressoar e a tilintar ao longo do poema. Essa força poética faz-se notadamente visível nas conclusões com que fecha os seus poemas, verdadeiras chaves de ouro, com as quais, pelo poder das palavras que cortam o silêncio como uma lâmina, operam-se transmutações indeléveis, como: Onde dormirei pouco importa/ É o despertar que planejo (“Projeto”) ou Minha vida é uma viagem/ com bilhete “aller-retour”/ Que eu não comprei (“A morte”).

*Apud STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, p. 28.
 
  • Celina Scheinowitz, Doutora em Letras pela Universidade de Paris, é professor titular de Francês na Universidade Estadual de Feira de Santana - Uefs.

 

 

 

 

 

Muito mais de não sei quantos mil poetas,

contistas e críticos de literatura.

Clique na 1ª letra do prenome:

 

A

B

C

 

D

E

F

G

H

I

J

K

L

M

N

O

P

Q

R

S

T

U

V

W

 

X

Y

Z

 

 

WebDesign Soares Feitosa

Maura Barros de Carvalho, Tentativa de retrato da alma do poeta

 

 

SB 13.03.2023