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Celina Sheinowitz
31/08/2002 Outras
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Poesia Trajeto
de pássaro
Celina
Scheinowitz Com seu livro de
estréia - Papéis do Outono (Salvador: Edição do
Autor 2002; Prefácio de Heloísa Prazeres), Olinda
Maria Rodrigues Prata oferece ao leitor poemas de
feitura amadurecida. Reúnem-se cento e dezesseis
composições cuja maturação decorre de uma estreita
intimidade da autora com a poesia e com os textos
literários, brasileiros e estrangeiros. Na
confluência dessa sólida aparelhagem poética
pressente-se, sobretudo, o sopro de um Manuel
Bandeira, em filigrana na urdidura dos versos.
Os poemas agrupam-se em cinco cadernos - A
mão transitória, Meu olhar sobre o mundo, Entre
este e o outro espaço, Meus olhos transeuntes e
Cadê minha rua? -, com títulos retirados de versos
fundamentais para a compreensão das constelações
poéticas que se configuram. Poemas curtos. Em
poucas linhas - os versos cabem geralmente em uma
estrofe, com uma dezena deles, às vezes com menos,
podendo ainda se distribuir em duas ou três
estrofes -, constrói-se assim “um discreto
inflamar-se do mundo no sujeito lírico”, no
enfoque de Friedrich Theodor Vischer*. Poesia
efêmera, captada em um piscar de olhos, uma poesia
que busca flagrar a brevidade de um sorriso, o
trajeto de um pássaro que voa ou o instante em que
se paralisa a dança:
O mar, azul quadrado/
Pela janela, irrompe/ Sem rasgá-la, de repente/
Como se, de súbito,/ Surfista invisível/ Me
inundasse de sorriso (“Visão”, A vidraça sombria
me devolve/ Diluída no azul que desce/ A tela de
Gauguin/ E o pássaro que passaö (“Instante”) ou O
pássaro parado no ar / É ilusão fabricada pela
máquina,/ Mas nem por isso menos real/ Que o
pássaro que voa./ [...] E a mão transitória que
flagra o instante, / Paralisando a dança, / É
milagre também. (“O Beija-flor”).
Uma
poesia que não foi moldada no mármore nem traz a
dureza da pedra. Antes aquática, ela brota com a
espontaneidade de uma fonte, com
indissociabilidade entre sonoridade e conteúdo,
uma evocando o outro em reciprocidade gemelar. O
leitor que se coloca em idêntica disposição
anímica do poeta percebe esse traço no fluir das
palavras, vindas do recôndito do ser, que escorrem
como água, resvalando em um leito provisório que
se consolida no húmus da poesia:
As garças
esgarçam-se no ar/ Róseas e aquáticas,
balançando-se/ No chão subitamente envidraçado/ E
frio./ Ao fundo Chopin torce suas tranças/ De som,
para emoldurar/ A lenta elegância do balé aéreo
(“Graça”) Não quero dizer nada//
Apenas nadar nos lagos/ Das minhas fantasias.
(“Desejo”) Daí o mar, cuja presença
se percebe marcante já na escolha da ilustração
para a capa do volume, mar que, com suas vagas,
espuma, barcos, marujos, sal e vento, desponta
sorrateiramente nos poemas como figura arquétipa e
emblemática: não é de lá que veio o imigrante que
gerou a poetisa? O mar é Portugal, é a saudade e é
a vida. Visto em uma série de poemas com emoção,
carinho, amor e compreensão, apesar de sua rudeza,
suas zangas e temperamento aguerrido, o pai
reaparece ainda em “Legado”, juntamente com a mãe,
a quem o livro é dedicado, na expressão da dor
deixada com a partida final.
Outros temas
emblemáticos em destaque na poesia de Olinda Prata
são as escadas e seus equivalentes semânticos, as
ladeiras, e também as noivas, numa série deles. Ao
subir e descer espaços, não refaz ela o sonho de
Jacó, buscando chegar aos céus e entender o
universo? Essa caminhada expressa certamente uma
inquietude ancestral, um medo primordial de
despencamento e desejo de fuga, cuja repetição
metamorfoseada talvez se cumpra no vôo daquela
noiva louca que, com ‘buquê em ofertório”, vaga na
memória da poeta. Porque o cerne de sua poesia
situa-se mesmo na memória, que a faz voltar ao
passado, revisitar cenas vivenciadas, rever a sua
infância.
Plural, a poesia de Olinda
carrega outros epicentros temáticos: o ciclo das
viagens, momentos de reencontro, mas também de
deslocalização e desencaixe (com uma curiosa
inversão temporal que deixa entrever uma ordem não
cronológica para a coletânea) e aquele ponto
sinestésico de convergência para a poesia, pintura
e música, meio nebuloso de indecisão embrionária
da arte, instante em que Rimbaud caminha ao lado
de Botticelli, ou em que Chagall, Gauguin, Van
Gogh, Chopin, Beethoven, Valéry e Baudelaire
fraternizam.
Mestre no domínio da
linguagem, Olinda Prata, em duas composições,
“Desejo” e “A Valéry”, elabora uma arte poética,
com reflexões acerca do fazer de sua poesia, que
tem função lúdica para ela: E me digo: poesia é
fácil,/ É só gostar de brincar. Quando está
“atacada de poesia”, brinca com as palavras, que a
“povoam/ Como cisnes ondulantes/ No seu (meu) lago
azul Itamaraty”, aí “mergulham”, a “beliscam”,
põem-se em “mutismo egoísta”, “meditam”, são
“Encasteladas e altivas”, “São ingênuas, ela (eu)
também”. Com essa ingenuidade partilhada, a poeta
“as busca”, “espera”, “as ignora”..., pois
(...) Com palavras, desconexas que sejam/
O que importa é deixar/ No papel ou no ar/ Cascas
sonoras passíveis de demonstrar/ A existência
efêmera/ De um universo pessoal.
Brinca com as palavras quando utiliza recursos
lingüísticos como a sinonímia (Da roseira ao vaso/
A rosa mudou de nome/ Da roseira ao jarro/ A rosa
trocou de nome) ou os diminutivos (Na igrejinha de
Roma/ Era a freirinha rosada - “Ritual”). No jogo
lúdico que se instala, a poeta não hesita em criar
palavras, quando a urgência da expressão a
pressiona, como no título” Angústia”, termo que
lhe fere a garganta diante da impossibilidade de
pronunciá-lo e que é assim cuspido nesta roupagem
insólita. Também em “O trem bala belifica a
paisagem” (“Paris-Caen”), constata-se criação
vocabular, que escapole, desta vez, por
imperativos sonoros. Nos versos de Olinda Maria
Rodrigues Prata, a força de sua expressão convola
com a fragilidade de sua alma, resultando uma
lírica que, por uma alquimia do verbo, modula-se
em vários registros, recriando uma multiplicidade
de esferas sonoras e de significação, que se põem
a ressoar e a tilintar ao longo do poema. Essa
força poética faz-se notadamente visível nas
conclusões com que fecha os seus poemas,
verdadeiras chaves de ouro, com as quais, pelo
poder das palavras que cortam o silêncio como uma
lâmina, operam-se transmutações indeléveis, como:
Onde dormirei pouco importa/ É o despertar que
planejo (“Projeto”) ou Minha vida é uma viagem/
com bilhete “aller-retour”/ Que eu não comprei (“A
morte”).
*Apud STAIGER, Emil. Conceitos
fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1969, p. 28.
- Celina Scheinowitz, Doutora em Letras pela
Universidade de Paris, é professor titular de
Francês na Universidade Estadual de Feira de
Santana - Uefs.
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