Navegação no Eu
Profundo
A poesia de Soares Feitosa, cearense
até pouco tempo radicado em Salvador, é dessas que se impõem a partir da
simples presença. Tem timbre, tom e vozes novos, tem
parâmetros antigos e desnudamentos atuais, e muitos de seus
signos, os gráficos, trazem a cumplicidade do
microcomputador. O poema parece, às vezes, brotar da
virtualidade cibernética, na sua inusitada composição
espacial, e em outras ocasiões – que são muitas – ele
prima pelo lado humano.
Apesar do aparato
eletrônico, Soares Feitosa não perde de vista a sua
condição, a sua circunstância, e sente-se que o passado,
nele, é a primacial matéria-prima do canto. A
este poeta foram propostos, como a Thiago de Mello, Gerardo
Melo Mourão e outros que vivem debruçados nos
abismos, os enigmas da existência, da não-existência
e da intemporalidade. Quando tentam compreender os enigmas, eles
partem sempre do seu posto privilegiado de observação:
a borda da funda cisterna em que projetam a sua sombra.
De modo que, em
Soares Feitosa, neste seu
livro de estréia Psi, a Penúltima (o livro anterior,
Réquiem em Sol da Tarde, foi uma edição
artesanal, produzida em computador), há que ver-se logo
a vocação brasileira. Todos cantam a sua terra,
e Casimiro foi um destes. Mas, em Soares Feitosa e outros de
sua geração, o canto elementar e lírico,
canto de comunhão e busca, de acalanto e rebeldia recolhe temas
de severas reflexões sociais. À véspera
do Terceiro Milênio e em todos os quadrantes, mas principalmente
no Brasil e no Nordeste, o homem, este patético Rei dos
Animais, parece destinado a estrume da terra.
Louve-se logo, pois, em Soares
Feitosa, o conhecimento da sua realidade psicossocial e a
vontade de transformá-la em matéria poética, para que mais
fundo repercuta, se é que a insensibilidade já não nos
cegou por completo. Seus cantos pessoais, que jorram com a
força de águas represadas e de súbito sangradas, em
contínuo avanço para um estuário de verificações e quase
sempre transformadas em perplexidade, são os cantos do
conhecimento do ser, da ânsia do ser em definir e possuir uma
identidade. É o caso de Antífona.
O poeta, natural do Ceará, ou do país do Siarah, vai à
Grécia, vai a Roma, ouve as perorações de Jeremias, entoa
salmos de Jó, sobe com Elias na carruagem de fogo (que se
transforma no carro de Ayrton Senna), mas continua
fundamentalmente brasileiro e nordestino. Seu pai Tatim
suicidou-se, rasgando o ventre à maneira dos samurais, no
próprio dia em que o poeta, filho único e desejado, vinha à
luz. A mãe Anísia, mãe de muitos porque parteira de renome
nos sertões, foi mulher resistente – de uma resistência de
rocha primitiva.
Com tanta biografia íntima, de
choro e de júbilo, de velas e de foguetes, é natural que
Soares Feitosa, vivendo em estado de poesia, sentisse aos 50
anos a poesia irromper de dentro dele, numa erupção que o
recobre de lava. Menos de 4 anos depois (está agora a caminho
dos 54) o poeta recolhe essa poesia e nela trabalha guiado
pelo instinto e pela erudição. Está certo o outro poeta
Cajazeira Ramos quando se refere, sobre a poética de Feitosa,
a uma “trempe cultural” greco-romana, judaico-cristã e
“mundinordestina”. Isso mesmo: a nordestinidade
transfigurada, absorvendo valores universais.
Nessas navegações, que transbordam
da tela do computador e retomam os percursos da
rosa-dos-ventos, o poeta de Psi, a Penúltima deixa-se invadir
pelo sentimento da solidariedade (além de crianças, rios,
florestas e bichos dizimados, o poeta comunga com Luiz de
Camões, Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos e Castro Alves,
editados por inteiro no seu Jornal de Poesia, na Internet):
seus poemas são lamentações de Jeremias, e a sua busca, a
busca do eu profundo, que abre caminho ao eu coletivo,
assemelha-se à do Hearst-Kane de Orson Welles, resume-se a
uma “bésta” ou a um trenó
– o Rosebud de todos os poetas puros, porque
inocentes.
Em suma, uma poesia
buliçosa, arrelienta e cheia de invenções. Uma
poesia nova.
[in A TARDE,
caderno Cultura, 26 abril 1997]
2.
Orelha do livro Psi, a Penúltima
Não conheço poesia brasileira
atual mais buliçosa e arrelienta que esta de Soares Feitosa.
Uma vez lida, não desarreda
mais da nossa emoção, fica zanzando na lembrança,
futucando nas nossas cordas íntimas.
Poesia-menina, danada de criativa,
cheia de traquinagens: inventa, reinventa, parodia, salmodia
e vai em frente, sabendo espalhar-se no espaço em branco
e ali adquirir as formas gráficas do seu visual subjetivo.
Uma poesia lírica, gostosa, irônica, sapeca, meiga
e sussurrante - e sempre cheia de ousadias formais e sentimentais.
[Orelha
do livro Psi, a penúltima]
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