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Francisco Orban



Poema V


A noite por dentro das horas e do amor
e os rostos deitados no chão do mundo
Assim caminhava-se
trinta milhões de cigarras na pele das calçadas
e as pedras suando
e o cheiro de rio mata e silêncio
e eu sem saber navegar
e sem saber do mar
e o ônibus 614 levando os meninos e meninas
com seus destinos de vento
e se embrenhando por outros caminhos
e não chegando a seu paradeiro

Nada mais se sabe desta terra
nem do rosto dos seus encantados
nem das disputas de carros
nas madrugadas das noites
sem fusos-horários
O ônibus 614 passou
me arrastando para fora do tempo
para onde me deixei levar

Éramos filhos da terra
e havia os heróis e não heróis
os balões que subiam nas noites acesas
e seus caçadores pela madrugada
e o espírito da mata sobre os sonhadores
e os primeiros amores
e os dias com seus mares abertos
onde caiu pelo ralo
a chave do mundo
e meu destino sem retorno juntos

Ventava nas janelas do tempo
ventava dentro da vida e da morte
ventava entre os versos vedados
e um rio entre nossas mãos crescia
e nossas mãos desciam pelo rosto do mundo
e sua face era um rosto de terraços
a nos amarrar para sempre
nas tramas do absoluto

O ônibus 614 atravessou vinte quadras
antes de cair no infinito

Poucos voltam do amor e suas terras
só os cães das ruas sabem disso
os seus habitantes também sabem
quando a noite fora das hora nos recria
Um rio atravessava a Usina
sob a chuva que se estendeu por cem horas
entre pedras, caminhões, estrelas mortas
tudo desceu pelo dedo das horas
naquela vida assombrada
em que para sobreviver era preciso nascer
em que para nascer era preciso descer
no ônibus 614
em um dia qualquer de fevereiro
no ano de 1968
em um mundo sem palavras
em pleno estado de comunhão

Não estava escrito nos braços
dos navegantes
nem no navio que nos fez sair
do dia comum
Não estava escrito no passado
onde nos vimos todos em silêncio
sentados nos mesmos bares e verbos
imunes ao tempo e seu grande cenário
enquanto o ônibus 614
atravessava um pântano de escuridão
levando os meninos e meninas
com seus destinos de vento

Tramo com o dia um poema
que se torne passagem
Tramo com os pescadores
uma canção para ninar o mundo
Enquanto a terra não se nina
eu nino meu filho que me chama de pai
enquanto não cresce, enquanto não cresço
enquanto não me vejo esperando o ônibus 614
que sempre me acena com sua viagem impossível
antes de capotar nas ruas reais do dia

O ônibus 614 desceu a rua Rocha Miranda
e viu Maria Cristina, feita de adolescência
e passou por dentro do tempo
entre as árvores desencontradas da esperança
pela experiência de ser guiado por uma estrela
que também por nós se guiava
pelos corredores azuis da noite
com o mapa do mar no bolso
com o mapa das águas no coração
Mínimos meninos
pisando nos trilhos de um trem que ia da alegria
a Itaguaí
mas que foi desativado
como foram oceanos
bichos, palavras, amores, amigos
lutas, violões, ventanias

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Empire of Flora

 

 

 

 

 

Francisco Orban


 

Rio de Janeiro


Noite densa de falas e pontes
que país sangrado é esse
de falsos horizontes e profetas?

No meu tempo não era bem assim,
meus inimigos tinham a cara aberta
meus amigos banhavam-se na maresia
os bondes passavam sob as pontes de luzes
do Rio de janeiro
e não havia canção muda nos meus versos.

Mas o meu tempo também é hoje
de circos derrubados e elefantes proscritos
de noites decretadas e frios ofícios
de trens partindo e vidas divididas.

No meu tempo também era assim,
as luzes do Rio de janeiro me diziam
um animal de sonho espreitava a vida oficial
que eu vivia
e eu amava as pontes de luzes dos Rio,
que eram de marfim e eu não sabia.


 

 

 

Ticiano, Magdalena

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Lilian Mail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Theodore Chasseriau, França, 1853, The Tepidarium

 

 

 

 

 

Francisco Orban


 

Pó de Tardes


Cansei de ti
pra ti oferto
as coisas descidas
da cruz do tédio:
meu delírio de Carlitos
embriagado
um pó de tardes
com lua
uma utopia de espanto.
e se isso não te bastar
te entrego o silêncio
do mar

A tarde encantada
de um país proscrito
o rítmo dos buzios
e das bailarinas


 

 

 

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Neide Archanjo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

Francisco Orban


 

Só o deserto


Só o deserto
meu amor
sabe do meu amor
por você,
nem a cidade
com seus bichos
pousados
nem a decisão
de sonhar
ou morrer


Só o mar
com seu tremor
diário
atrelado à voz
dos que sonham
e os peixes
com as presas
do luar nas guelras
sabem


 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

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Rita Brennand

 

 

14/10/2005