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Ildásio Tavares


 

Poema Desnatal


Será Natal também em Kabul
quando chegar o dia. Mas pouco
importa. Será Natal. A fome e a
miséria prosseguirão o seu presépio.
Não importa. Será Natal. A solidão
estará solitariamente só e solitária.
A solidão estará tudo menos solidária.
Mas será Natal.
 


No Brasil, em Portugal.
Na Groenlândia, na Tailândia.
Na Nigéria, na Libéria.
Na Desunião Soviética.
Na paranóia norte-americana.
Na prosperidade germânica.
Na voracidade nipônica.
No imperativo britânico.
No desterror do golfo.
E no horror supremo do lugar onde o menino nasceu –
 


Pipocam no ar os petardos,
rasgam céus outros cometas,
matracam metralhadoras,
balas assobiam.
 


E em cada milímetro do solo sagrado
explode uma bomba
em comemoração pelos mortos de Belém.
 


Em verdade não ficou pedra sobre pedra,
nem há de ficar. Está escrito.
 


Quando os peixes se dispersam pelo mar,
dificilmente nadam para trás.
 


A roda roda para trás e eis a hora do Aquário.
Do Espírito Santo. Ruáh. De todas as
confluências. E será sempre Natal
em todas as partes deste aprazível
planeta, mesmo naquelas em que
os meninos de Liverpool são mais conhecidos
que o menino de Nazaré.
 


Será Natal. Nascerá um menino.
E nele, por ele, com ele nascerão
todos os meninos que houve, há e haverá
de nascer. Nascerá um menino,
determinação segura de prosseguir.
Ninguém sabe. Nem para onde.
Nasceu, viu e venceu.
 


Venceu o tigre dente de sabre.
Venceu o gelo, a inundação.
O ciclone, o terremoto, o vulcão.
Venceu os ares, os mares, a noite.
Venceu o outro. Venceu até a si mesmo
(sem constância, todavia). Mas lutou
contra suas certezas, essas mesmas
certezas de que é feita sua ignorância,
seu medo. E venceu-as. Venceu o medo
quando se fez imperioso e necessário.
 


Veio de longe, do escuro, esse menino,
essa menina a lhe enxugar os olhos. A
lhe dizer o que ninguém sabe nem pode
dizer. A lhe dar o colo, o sexo, o útero
benfazejo, o seio farto, e a palmada
na hora certa da traquinagem errada.
 


Menino e menina os criou. E nascem
todos os dias em um Natal cotidiano.
Nascem, vêem e vencem.
Em mais uma etapa da aventura que
começou quando, atraído pela lua,
um ser emergiu do mar e rastejou pela praia,
atraído pela lua, périplo pelas estrelas
de meninos e meninas
a nascer todos os dias
em ininterruptos Natais. Amem.
 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Grief of the Pasha

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Floriano Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Ut floreas


Há quem curve o poema ante o leitor.
Eu o escrevo como vem: um fruto; um potro;
um rio; um matagal; escrevo-o
sem pensar – o sucesso das palavras
não depende de mim; nem tampouco
é um simples problema de carpintaria.
 


Se o poema se equilibra sobre as pernas
com alguma elegância; e se é mesmo
uma planta; um animal; até um córrego
discreto, tudo bem –
Lê-lo-ão e, então amá-lo-ão ou não.
 


Só o dinheiro agrada a todo mundo.
Que hei de fazer
se não entendem meu poema?
 


Tem horas que nem mesmo eu o entendo.
 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Yeda

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Cristiane França

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Fotopoema


Um poema feito foto
qual imagem do poema:
uma foto de palavras
pra começar o cinema –
fantasia de palavras
para imaginar o tema,
imagem de fantasia,
concebida pela câmara
que concebe e forma a imagem
feito o útero que gesta
e que pare uma pessoa.
A câmara é um útero
e o útero faz a foto
de carne de um ser humano.
 


Um poema feito gente
que revele amor e ódio;
que tenha cuspe, suor;
tenha alegria e tristeza;
chore e ria, cante e xingue
para a câmara captar
com o útero na mão,
sem idéias na cabeça.
Dona do útero, a mulher
sabe mais sobre as imagens,
da concepção ao parto,
ela se emprenha de luz
com a câmara na mão
e o futuro na cabeça.
 


Um poema para o parto
de luz que engendrou a luz –
a mulher pensa pra dentro
e o homem pensa pra fora
e tem idéias demais.
o homem nunca vai sentir
o sublime de emprenhar-se,
conceber, gestar, parir,
inventar uma pessoa
e a revelar para o mundo –
útero, câmara, parto –
a mulher é mais si mesma,
penetrada pela luz,
recebe o homem entre os braços,
pare a foto, o fato, o ser.
 

 

 

A menina afegã, de Steve McCurry

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Andréa Santos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Antonia Zarate, detalhe

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Normal ode


A poesia é a loucura organizada.
Nunca apenas a loucura. Seu discurso caótico.
Seu desenho anárquico. Geografia convulsa
de ignorância e desespero. Suas lucubrações
vertiginosas sobre todos os absurdos.
Seu abraço grotesco. Sua sala de estar
ornamentada com excrescências rococós.
Seu Horror, sua Ira, seu Destempero, sua Degola.
seu tempo que se desenfreia nas cordas
Febris de violoncelos desafinados.
Sua constante, surda, pertinaz, traiçoeira e laboriosa
escalada até os píncaros nevados do Poder,
de onde excrita Onipotência,
urina fel e comanda com a mão direita
os que, em transe, os cabelos revoltos,
soltam pelos campos e mares
os Cavalos do Medo e do Terror.
Donzela sinistra que crispa nos olhos
os projetos, símbolos e instrumentos da Devastação.
Eia Loucura! Eia Insensatez! Eia todos os caminhos
que se enrijeceram para transformar a Natureza
em Desrazão quando a loucura vê a Razão
no seu espelho e imediatamente abre o Dicionário
pensando que encontrará a Poesia
como um ovo de macuco num ninho de colibri.
Falo da loucura e de seus irmãos mais gêmeos e fortes,
os Desmandos da Razão.
Nunca das afecções da mente
identificadas pelos psiquiatras
que sabem, com suas exceções, domá-las com álcoois
ou sais extremamente simples. Talvez
fale dos próprios psiquiatras, empolgados
pela possibilidade de entender o sistema límbico
quimicamente; frustrados por não poderem
contrariar o livre arbítrio
do ácido desoxi-ribo-nucleico
com a Onipotência científica do século XIX
que se nutre soturnamente
da ingenuidade de Kant enquanto o rejeita.
São eles, os empertigados psiquiatras,
os que desejam à socapa que todos nós tenhamos
o fígado no cérebro,
para nos injetarem extrato hepático
que de nada adiantaria
mas pelo menos não teria efeito colateral:
Salve, salve, três vezes salve
esses aplicados Sacerdotes da Loucura,
na mão esquerda uma seringa hipodérmica;
na mão direita um tratado de Farmacologia
como se o ser humano fosse apenas
esse emaranhado físico-bio-químico que eles não
entendem ou uma simples máquina de desejar
como querem outros. Isso tudo é Loucura.
Com a Loucura se faz psiquiatria
e se vive muito bem dela.
Mas ninguém faz poesia só com a Loucura. Nem
com a Insensatez. Muito menos com a Razão
caminhando numa reta inexorável
de onde nem a desvia a Morte, como o búfalo
mesmo ferido. Nada é reto.
opte-se pela reta e no máximo chegar-se-á a ser
um poeta concretista, assim mesmo, em caixa baixa,
para usar seus códigos contra eles
essas serpentes que criaram
e que hoje lhes mordem sem que o percebam.
A redundância, por vezes, não é defeito,
dizia um célebre publicitário alemão,
ou nunca é – convence, suaviza, refresca, revigora.
Tudo que sei dizer. Falta-me
uma boa memória para números e nomes.
E as pessoas só dão credibilidade
a quem sabe manipular números e nomes. Eu mesmo
nunca contei aquela história do filósofo Zen
que publicou um livro no Ocidente,
com o prefácio elucidativo de Jung
e deu uma entrevista nos jornais da época,
dizendo que Jung não entendia nada de Zen.
Quem entende? Eu? Eu não. Eu não entendo
outras coisas, quanto mais
de Zen Budismo. Imaginem. Logo eu
que, quando estou com fome preocupo-me
Com os carboidratos justamente porque
não quero ficar bojudo
como esses monges orientais
que ficam milionários nos Estados Unidos,
pregando abstinência dos bens materiais
e de toda a carne, e suas discípulas
retribuem iniciando-os nas delícias supremas
dos chocolates suíços e do “ strawberry cheese cake” ;
logo eu que, quando estou com sede bebo vinho branco
brasileiro ou chileno – amaldiçoando o bolso
porque não posso beber um Chateau Laffite,
safra 1972. Logo eu que, quando estou com
vontade de escrever um poema
tenho que dar aula de literatura numa universidade
Federal que nem sabe se isso existe. Aula de literatura.
Como se alguém pudesse, em verdade, dar aula
de literatura. Nem que fosse para justificar
a existência do barroco baiano.
Mas olhem, antes que me esqueça. Nunca contei
essa história porque não consigo me lembrar do nome
do engenhoso filósofo Zen. Mas é isso mesmo.
Até Freud não explicou nada.
Jung mesmo, ele nunca entendeu e incinerou
seu pensamento à luz de preconceitos científicos
que hoje são execrados pela ciência. Como fez
com Reich que não teve para onde correr.
Morreu só, exilado em si mesmo.
Como todos os gênios. Freud nada explica.
nem sequer os que forjaram metáforas fulgurantes
em cima de suas conclusões precipitadas
quando não levianas. Quem melhor
elaborou seu pensamento e dele fez poesia,
ele simplesmente desdenhou
“ desculpe, Monsieur Breton, mas nada entendo
de literatura; como o senhor não entendeu
meu conceito de Inconsciente” . E agora?
Que será de milhões de palavras drapejando no papel?
Que será de milhões de telas penduradas nos olhos?
E tudo o mais ? Hein? Que será?
E foi justamente esse pesquisador lotado em Viena
que tentou tapar os buracos da alma humana.
Dá pra entender? Ou é mesmo Surrealismo?
para mim é apenas um pequeno capítulo
da novela do Absurdo. Ninguém
explica nada. Não há o que explicar. As coisas
são o que são. Convém, todavia, frisar
que sou apenas um funcionário da Literatura
e que nunca fiz mal a ninguém. Mesmo
      quando belisco a pele por vezes sensível
de algum Sacerdote da Loucura.
Sempre quis fazer poesia, organizando
todo o caos que já encontrei
quando cheguei, desprevenido, a esse planeta azul
que amo como poucos; organizando assim meu caos
interior, Eis o melhor que fiz da minha e da de todos
loucura, fruto de minha imaginação e ansiedade.
A flor carnívora desses versos.
 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

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Renato Suttana