Inocêncio Melo Filho
A grande arte
de Nilto Maciel
"A leste da Morte" (2006) é
o livro contos mais recente de Nilto Maciel. Belo título inspirado
no "A leste do Éden" de John Steinbeck. Bela capa. Sua arte externa
nos atrai, encantando-nos. Lendo-o percebemos que esta obra é bem
mais que estética externa. Na sua estética interna encontramos
inteligência, criatividade, linguagem bem tecida.
Os contos de "A leste da
Morte" transbordam mistérios, sonhos, delírios, lirismo, situações
metafísicas, marcas surrealistas, que podem servir de
características identificadoras da literatura de Nilto Maciel, ao
lado de intensas manifestações dotadas de um certo realismo mais
fantástico do que mágico. "A leste da Morte" é uma confirmação de
que "a literatura nasce da literatura" do título ao seu miolo. O
narrador na sua travessia nos cita obras, autores, um senso de
leitor e de leituras próprio de um escritor que se acorrenta às
universalidades e se liberta na sua escritura.
Vale salientar ainda que o
narrador dos contos de Nilto Maciel entrega-se intensamente às
indagações, eternas indagações, que não quebram o ritmo do discurso
nem cansam as retinas do leitor. Encaremos esta realidade existente
em "A leste da Morte" como uma necessidade que completa a metafísica
dos textos e a própria narratividade que busca um diálogo que não se
constrói, por ser feita num discurso indireto. A ficção de Nilto
Maciel "consegue imitar a vida matando-a", para que ela renasça como
se fosse uma espécie de fênix, atribuindo as suas personagens
(algumas extraídas de outros textos), um novo destino, uma nova
vida, um outro contexto histórico sem perder a verossimilhança. A
prosa de "A leste da Morte" não deixa que o delírio, o sonho e o
lirismo lhe alienem. Mostra denunciando e denuncia mostrando o
desemprego, a pobreza, a violência, a poluição, o caos urbano, as
paixões, o ciúme, o trabalho infantil... Estas realidades humanas
humanizam a literatura de Nilto Maciel tornando-a universal.
A molecagem do povo cearense
encontra-se presente em várias obras da nossa literatura. Serve-nos
de exemplo "O mundo de Flora" (1990)- Angela Gutiérrez e "O dia em
que vaiaram o Sol na Praça do Ferreira" (1983) - Gilmar de Carvalho.
Neste novo livro de Nilto Maciel no conto "Chão Pintado de Sangue",
também se registra o espírito moleque do povo do Ceará num espaço
real que acolhe ainda hoje as grandes manifestações dos
fortalezenses: Um dia caminhava pela calçada da praça na direção da
Guilherme Rocha. Diante do Cine São Luiz, um mendigo comeu uma
banana e lançou a casca ao chão. Sentou-se junto à parede e se pôs a
olhar para as pessoas que batiam palmas ou vaiavam o rapaz barbudo e
de roupas exóticas, em pé no banco, a vociferar: O poema é um punhal
que brilhará na carne dos condescendentes. Seus reflexos parirão
estrelas que habitarão o céu. Marinas cintilarão como ametistas nas
bocas dos desvalidos. Imensas pérolas de enfeite da grande festa
anunciada. Nas ruas novamente habitadas por benjamins, sorrisos,
brisas nos dentes de marfim, onde se inscreverão os versos dos
decapitados. Nesse momento George voltou a vista para o espetáculo,
pisou na casca de banana e caiu espalhafatosamente. Livros e
cadernos se espalharam na calçada do cinema. Uns deram vaias, outros
riram. (P.63) A poesia, o ensaio e a resenha vão aos poucos se
expondo no corpo da ficção de "A leste da Morte", nos revelando que
o escritor sabe lidar com esses gêneros e é capaz de misturá-los na
sua prosa sem danificá-los. O conto "Chão Pintado de Sangue" citado
anteriormente, nos manifesta exemplos identificadores de poesia. Um
desses exemplos pode ser percebido na transcrição acima.
Nos contos "Lilith Segundo
Paspa Tordre" e "Para Escrever o Caminho do Nada", o narrador nos
apresenta livros, autores, personagens, faz descrições, sínteses,
menciona opiniões críticas de outros autores, propondo assim, uma
estrutura própria de resenha ou de ensaio. No conto "Caim e Abel"
pode se perceber que Caim e seu irmão se atracam, estão em conflito,
são adversários. Vivem esta realidade nas várias fases das suas
vidas, sendo Abel o melhor em todas as suas performances aos olhos
do pai. É neste contexto que o enredo se inverte, mostrando-nos Abel
na condição de opressor e Caim na de oprimido, fazendo-nos pensar
que o narrador dará outro rumo à história, mas não é bem isso que
acontece. Ele se rende ao final que o leitor já conhece. Neste conto
de Nilto Maciel a história de Caim e Abel é recontada, numa dimensão
extremamente humana, desligada dos laços divinos. O narrador nos
expõe à família, os afetos paternos destinados a Abel e as ofensas a
Caim que acumula mágoas no seu coração. Os sentimentos maternos
equilibrados não podem modificar o discurso patriarcal, nem evitar
que o pior aconteça. Caim e Abel são duas personagens que não podiam
ficar detidas aos universos do livro sagrado. Elas são referências
de reflexões sociológicas e reflexos de uma falência familiar e
afetiva. A literatura tem assimilado essa ideologia, é por isso que
ela vem imprimindo-as nas suas páginas.
Quem conta um conto aumenta
um ponto. Esta afirmação procede ou será apenas uma construção
frasal sonora que se reproduz nas bocas dos falantes? Não
depreciemos esta afirmação que é por demais verdadeira. Cada
narrador narra uma única historia de forma diferente, usando
recursos próprios... Isto se comprova em "A Mulher Cortada" e "Na
História da Maçã" em "As Mil e Uma Noites". Em Nilto Maciel esse
procedimento narrativo também é visível no conto "Um Passarinho".
Tal qual Xerazade os habitantes de Anipar do conto "O Último Vôo de
Rapina", descobrem que narrar, contar seus sonhos, permite-lhes
continuar vivendo. As narrativas desse conto são marcadas pela
originalidade e seguem um plano hierárquico.
Retornamos ao conto "O
Último Vôo de Rapina" porque há nele um exemplo de antropofagia, que
se difere dos demais registrados pela nossa literatura. A
concretização desse ato antropofágico é comunicado e concedido pelo
ser dominador (Rapina), a resistência se faz nos subordinados (aniparenses),
que ainda desconhecem o sabor da liberdade: (...) Em outro sonho, o
chefe espiritual de vocês, o pajé, o xamã, seja lá como o chamem,
dará a seguinte ordem: "Enquanto ela estiver dormindo, vocês
amarrarão pernas e bico e arrancarão as penas. Impedida de voar e de
me defender, vocês a sacrificarão, queimarão e comerão a carne, para
que adquiram os poderes dela".
O terceiro sonho terá um
pouco de cada um dos outros, com um final diferente: Eu me livrarei
de vocês e voarei para o mais longe daqui, para nunca mais voltar, e
vocês ficarão nesta terra como sempre estiveram. "Boquiabertos, os
habitantes de Anipar se prostraram diante da ave: Não, não queriam
aqueles sonhos. Não queriam o paraíso nem voar nem devorar Rapina.
Queriam apenas a mesma vida de sempre (P.152). Alguns dos contos de
Nilto Maciel nos aproximam de outros textos e autores ainda vivos em
nossa memória quando o narrador assim se expressa: "Para que aqueles
olhos arregalados? Para te ver melhor" – "Chapeuzinho Vermelho" –
Charles Perrault. "O Tarado seminu, mal cobertas as vergonhas". –
"Carta de Pero Vaz Caminha". "Nos verdes mares bravios." – "Iracema"
– José de Alencar.
A posse integral ou
reformulada destes termos guiados pela consciência ou inconsciência,
revelam algumas das leituras diversificadas feitas pelo escritor. A
presença do mar na literatura cearense é um fato real na poesia e na
prosa. Na ficção de Nilto Maciel o mar simboliza o medo quando
comparado a um "monstro que ruge em fúria" e acolhimento quando o
narrador nos diz: "Examinou os dizeres do vento. Fechou os olhos
para ouvir mais a voz do mar". (P. 132). Como se vê, a existência do
mar subtende a presença eólica, ou seja, do vento, que se desvela em
algumas das narrativas de "A leste da Morte", substantivando-se e
personificando-se.
"Os escritores não são
cantores populares", mas Nilto Maciel é dono de uma farta fortuna
crítica e bibliográfica. Sua literatura se insere no rol dos nossos
autores contemporâneos e "A leste da Morte" é a sua grande arte,
digna de todas as atenções dos leitores e estudiosos da literatura
cearense e brasileira.
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