Lucinda Persona
POR IMENSO GOSTO
Por imenso gosto
olho o poente
como se fosse
a última vez
que alguém se dedica
às coisas doces
do modo mais simples
A geratriz do amarelo
desaparece completamente
em nuvens de abóbora
e se sobrepõe
um vermelho intenso
onde as aves pretas
ganham destaque
Então vem o roxo
para que eu chore
minha seca cascata
Abaixo meus olhos
e encontro as sombras
neste lugar
onde as sombras moram
Por muito tempo
no círculo escuro
persigo brilhos
que a noite acata
como estrelas mortas
(mas são palavras)
UM PUNHADO DE TERRA
Um punhado de terra
cobre a semente
enterra o morto
(Abafa a chama
do que se entende por cio
no breve conto de um corpo?)
(Do livro
Por imenso gosto, 1995)
AO REDOR DO CORAÇÃO
Sete horas da manhã.
Meio raquítico
enferrujado
o sol veio ao mundo.
A vida mal alcançou nossas juntas.
Estamos à mesa
sentados frente a frente
cara a cara
tanto faz.
Um pouco dobrados
à canga cósmica
máscara triste
sim
mas estamos aqui
entre nossas conchas cartilaginosas
atrás de nossos narizes
debaixo dos cabelos
ao redor do coração.
Nossa pele
-
como está séria!
Porém, dentro de nós,
rica em cálcio
e
banhada em gordurosa luz,
a
caveira sorri.
SOPA DE ERVILHAS
Em minha mesa
no meu prato
vai caindo a noite
lenta e silenciosa
como um veneno do tempo.
A sopa de ervilhas está quase fria.
À primeira vista
é um suave musgo
estancado na louça branca. Depois,
porção de um pântano distante
aguardando o natural mergulho
do objeto que mistura e remexe o
fundo.
Não tenho fome
não reparto minhas horas com filhos
nem sei por que uma célula normal
se desgoverna.
A tristeza é tão perigosa
põe um nó na garganta
e usa agora esse disfarce:
é uma sopa verde envolta em trevas
que vou tomando devagar.
Em tempo
a alegria também existe
atravessa os anos
mas
numa escala decrescente.
MODO VELHO DE ACORDAR
De repente
num modo velho de acordar
abro a úmida casca noturna.
Sou folha? Inseto? Passarinho ou
gente?
Que dia é hoje? Que horas são?
Onde está o homem que dorme comigo?
No meio das suposições
minhas pálpebras amarfanhadas
são peso e desproporção,
minhas córneas não entendem.
Dói, na penumbra, o reajuste dos meus
ossos.
Dói a bexiga que tem rígido horário.
Dói o cotidiano no meu caminho.
(Do livro:
Ser Cotidiano, 1998)
PEQUENO SER VIVO
(deste vazio eu não morro)
eu
pequeno ser vivo
as vértebras doendo
olhando o firmamento
começa neste instante
a esboçar-se a noite
é raro que eu não dê atenção ao fato
é raro que eu não chore um pouco
é raro que eu não tenha um desejo
diante do crepúsculo
num canto particular do mundo
reconheço
que muitos e muitos
já publicaram o assunto
e felizes foram e felizes foram
que modo simples e maior existiria
para eu ser feliz como aqueles?
qual é
ainda não sei.
DEZENAS DE CARACÓIS
Dezenas de caracóis
(alegro-me em dizer)
estão no meu jardim.
Eles avançam sobre a grama
molhada pela chuva.
São desses caracóis menores e comuns
cinzentos como as intimidades.
Colossalmente cautelosos.
Pobres moluscos
até parece que sabem
o quanto o mundo é grande
o quanto a vida é pequena.
(Do livro: Sopa Escaldante, 2001)
AGORA VOU CORTAR
ABÓBORAS
Aquilo que a vida diária
há de oferecer
e sem que seja
numa ordem fiel
eu posso contar ao mundo
Cada instante é único e decorre
na convulsão das imagens
quase sempre intoleráveis
pelo muito ou pelo nada a ofertar
Proclamar abertamente
que agora vou cortar abóboras
(abóboras em cubinhos)
é embrenhar-me no contragosto
que me governa
(o único método verdadeiro?)
Palavras são meios de vida
gestos também o são
Eu sou a soma de muitos destinos
não há razão para pensar
numa realidade menor
Explicar de outro modo é dizer
que em todo agrupamento humano
há um germe antiqüíssimo de solidão.
A SEDUÇÃO DE
CERTOS MOVIMENTOS
Em pleno velório
indócil à rigidez da morte
estudo o seu inverso: a vida
a voracidade
a sedução de certos movimentos
ansiosos
das chamas que se agitam
Quero tudo
que não esteja parado
nem tenha entrado em descanso
Quero tudo
que não se deite
em posição tão paralela ao horizonte
Depois de o tempo se fartar das velas
(nos quatro cantos do funeral)
dou graças a mais um pormenor
que enfim me conforta:
os lagos de parafina
no fundo dos pires
(sempre fui assim)
(Do livro:
Leito de Acaso, 2004)
OUTONO
Meus passos (um dia)
se desviaram da rotina
esse caminho que
de tão fácil
dá medo
E muito ao longe
fora do campo de minha língua
aos meus olhos se apegaram
algumas folhas de ouro claro
algumas folhas de ouro escuro
Florença, outono, encontro nobre,
dado o que estava exposto em ouro
Ali chegando
de algum lugar do mundo
tropecei desprevenida
numa fórmula melancólica
que estava por terra
em vasta medida
Tudo articulado
num plano de sustentação passivo:
Quantas folhas amarelas
em estado de repouso
E até castanho-escuras
E até apodrecidas.
(Do próximo livro Delicada
Armadilha).
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