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16.3.2002 Um épico da latinidade Esforço
hercúleo por trás de poema longo sobre o continente esbarra no
maniqueísmo político e na monumentalidade kitsch FELIPE FoRTUNA [16/MAR/2002] LATINOMÉRICA Marcus Accioly Topbooks/Biblioteca Nacional, 620 páginas R$ 49 Ao desocupado leitor (como escreveu Miguel de Cervantes)
talvez não pareça relevante informar que comecei a ler Latinomérica num
vôo que partiu da Colômbia em direção ao Brasil. Mas o ato de
intercalar a leitura dos versos com a visão, pela janela, do território
amazônico daqueles dois países, na escala de um vasto mapa natural,
associava-se perfeitamente à empreitada de Marcus Accioly: cantar a
América em dimensão épica e reunir, em versos, o imenso acervo da
cultura e da história que atravessa o continente desde os extremos da
Terra do Fogo até o ponto mais ao norte do Canadá, banhado pelo Oceano
Ártico. Para tanto, o poeta não concebeu, obviamente, um poema
geográfico, mas sim um longo poema político, em cuja construção se fez
vigente um princípio fundamental: o da arte como ataque e engajamento, ou
como instrumento de denúncia e de combate persistente. E é como um
guerreiro latino-americano que o poeta se apresenta e se solidariza:
''dá-me ao punho sem luva um golpe novo/ (quero lutar o canto do meu
povo)'', ''emprestarei às regras da canção/ estruturas que são
próprias do boxe/ e assim (...)/ te narrarei com minha voz armada''. Mais precisamente, o poeta de Latinomérica é um
pugilista que organiza a sua luta épica e continental segundo as regras
estritas do boxe, na qual estão presentes o árbitro, o cronometrista, os
jurados e ainda a seqüência massacrante de rounds - cada um destes um
canto de poesia e de confronto. São vários os inimigos trazidos ao
ringue: ora o neocolonialismo, ora os Estados Unidos da América, ora os
ditadores e torturadores, todos caracterizados como violentos
representantes da opressão e de uma utopia histórica interrompida: ''o
que veio depois?/ depois... (eu creio / que se me embarga a voz)/
depois... não veio.../ teu sonho foi sonhado/ pelo meio''. A
originalidade da estrutura do poema corresponde, portanto, a um conteúdo
de violência em reação direta à violência sofrida pelas sociedades
primitivas da América. A primeira violência foi a imposição da língua do
colonizador, rapidamente seguida por diversas outras que culminaram com a
violação de todos os tipos: no corpo, na escrita, no pensamento e, de um
modo totalizante, no destino mesmo: ''(América) sofreste o teu estupro/ e
(dele) nós viemos sem saber/ do pai (desse europeu bárbaro e bruto/ que
nos deu o destino de nascer)''. Na atualização do tema da violência, Latinomérica se
define como o poema mais anti-estadunidense da literatura brasileira:
trata-se de uma percepção primordialmente maniqueísta, tendente ao
caricato, da qual Marcus Accioly obtém as imagens e metáforas mais
virulentas dos seus versos. Paralelamente à busca da identidade da
América Latina, o poeta insiste na tese de que os Estados Unidos
sucederam a Espanha no projeto colonialista que submeteu todo o
continente, e assim vincula a história de cada país a um só cortejo
fatal: ''eis (atrelados à locomotiva/ dos Estados Unidos) teus vagões/
de países (América-Latina)/ que (no sentido-Norte) aos encontrões/ são
puxados de baixo para cima/ (do Sul ao Centro sobem as nações)/ pátrias
tombadas pela via férrea/ (Américas levadas para a América)''. O libelo
do poeta se converte, de fato, numa peça acusatória à maneira
intelectualmente engajada que deu fama a Émile Zola ao desmascarar a
infâmia dos ataques ao militar e judeu Alfred Dreyfus: ''Ó Unidos
Estados desUnidos/ (não ao teu povo) ao teu governo acuso/ (em meu nome e
dos povos oprimidos)/ acuso a tua Águia (...)/ acuso a tua posse (após o
usu-/ fruto dos bens dAmérica-Latina)/ (...) para que saibas (mesmo que
sorrias)/ que David não tem medo de Golias''. Definida a conformação ideológica de Marcus Accioly,
afinal esquemática e, por isso mesmo, pouco surpreendente, convém saber
sobre os recursos poéticos de que se valeu na sua renovação da
tradição épica. É quando a monumentalidade de Latinomérica se
reduz a uma dimensão francamente ínfima: o longo poema não tem o arrojo
das imagens delirantemente sustentadas em Invenção de Orfeu (1952),
a ''biografia épica'' de Jorge de Lima; tampouco a mescla de alta
sensibilidade histórica e sentimental que caracteriza o Poema sujo (1977),
de Ferreira Gullar, entre poucos outros exemplos brasileiros. Latinomérica
se ocupa bem mais do pretexto político do que do texto poético: dos
seus versos se extraem quase sempre a aliteração e o trocadilho, em
freqüência abusiva e com duvidosos efeitos, a exemplo de ''(jaz Jamaica
jungida ao jugo e ao jogo/ da chuva) nela dança Bob Marley'', ou então
''dentro da voz (cortando a indagação/ que tu fazes à praia surda-muda/
dos pés desse gigante que te USA)''. Muitos desses versos, como é comum
acontecer na tradição épica, não escapam a uma recorrente
ilegibilidade, provocada por reverberações do kitsch, como neste
exemplo de memória infantil e latino-americana: ''(sim) uma nuvem era a
tua teta/ monstruosa de cheia como estava/ com seu mamilo (única chupeta/
que eu não dormia enquanto não chupava)/ tu cantavas o boi da
cara-preta/ e (boi) eu te fazia (mãe) de vaca/ pois (cheio de vontades e
direitos)/ só vivia pegando nos teus peitos''. Reporte-se, ainda, às
duas estrofes finais do poema 11 do capítulo X e às do 24° round
(primeiro minuto de luta) para que se possa avaliar a extensão e o
paroxismo daqueles recursos poéticos, que fazem ainda do Haiti a
exclamação de um lamento (ai-de-ti) e de Equador um reflexo (eco à
dor)... Latinomérica é um poema-compêndio de farta erudição - e, à
maneira de um catálogo, como se lê notavelmente no capítulo IV (''Os
Jurados''), enumera autores e obras canônicas do continente. Mas logo se
pode concluir que as duas principais matrizes latino-americanas do livro
são o Canto general (1950), de Pablo Neruda, e Omeros (1990),
de Derek Walcott, este último aparecido quando Latinomérica provavelmente
se encontrava em parte escrito, mas ainda sujeito a profundas revisões,
tanto assim que o poeta de Santa Lúcia comparece nos seus cantos
iniciais. O épico de Neruda inspira e dá substância ao vetor histórico
do poema brasileiro, tanto na sua grandiloqüência quanto na imensa
tarefa de esboçar uma história do continente e do país natal, em que
está presente até mesmo o anti-estadunidismo, representado por empresas
como a Standard Oil e a Anaconda Copper Mining; por sua vez, o épico de
Walcott delineia o vetor mitológico de Latinomérica, que ainda se
beneficia do rigor métrico e da comovente presença dos habitantes
marginalizados. Encontram-se na interseção do eixo vertical da
cordilheira andina com o eixo horizontal do mar caribenho as principais
ambições e virtudes do épico de Marcus Accioly. Naturalmente, uma discussão sobre o épico moderno
ultrapassaria os limites desta resenha, bastando assim registrar que o
poeta pernambucano se vê inserido numa tradição que remonta ao também
longo Colombo (1866), de Manuel de Araújo Porto-Alegre. Marcus
Accioly reconhece que a sua preferência pelo épico denota não apenas
uma consciência, mas também um temperamento, embora seja perceptível
que a ''áspera ciência de cantar'' do poeta esteja fundamentada,
irreversivelmente, na questão política. E por ser política cada opção
do poeta é que se pergunta, por exemplo, se o uso da oitava camoniana
não constituiria uma contradição, na estrutura do poema, tão passível
de denúncia quanto a que se fez à língua do colonizador, já que ambas
foram impostas pelo mesmo processo ideológico e imperialista. Questão
idêntica incide sobre a escolha das regras de boxe em conformidade com a
International Boxing Union (IBU) - cuja sede fica em Atlanta, na Geórgia.
Em outras palavras, a estrutura de Latinomérica se
assenta, justamente, no regulamento de uma entidade norte-americana que
tem como objetivo sancionar as lutas, nomear o árbitro e os jurados e,
como convém à boa prática, enviar um representante para assegurar que
as suas regras estão sendo observadas. Tomadas em consideração as
palavras de Marcus Accioly no também extenso ''Apêndice'' do seu livro,
''a forma passa a ser uma homenagem e uma comemoração'' - o que de uma
só vez descarta a assimilação dialética da oitava camoniana e do
regulamento da IBU e instaura, por fim, um contexto irônico para todos os
capítulos do livro. Por contestador que seja, Latinomérica oferece numerosas
passagens nas quais o poeta não se importa em prolongar estereótipos que
só prejudicam a criatividade e o tom elevado do épico, como acontece no
canto a alguns países - a exemplo de Honduras, que surge descrito numa
brevíssima sinopse de história e na referência jocosa à ''guerra do
futebol''. Também notável é o agrupamento de lugares-comuns
histórico-mitológicos, como em ''urge matar a infância (ó rei
Herodes)/ (...) (trocarei ordens por odes/ se Laio lhe amarrar o pé ao
pé)/ mas (Édipo que sai dos meus passados),/ a infância volta sobre os
pés inchados''. Bem sucedido, no entanto, é o uso das metáforas
sexuais, que são tão impactantes e violentas como a denúncia e a
contestação políticas: nesses poemas de irrefreável lirismo surge o
melhor de Marcus Accioly, que combina uma forma singular de erotismo e
engajamento, à maneira do Moacyr Félix de Neste lençol (1977),
poeta homenageado em um dos rounds. Ao vislumbrar parte da América da janela de um avião,
também se pergunta se o continente pode estar contido na forma homérica
ou anacreôntica - ou, como escreve Marcus Accioly, se o poeta deve ser
condor ou pardal. Talvez interesse saber, no entanto, se um grande poema
da língua deve ser o manifesto de uma indignação ou uma obra
polissêmica, aberta a um extenso conjunto de interpretações. Pois,
definitivamente, Latinomérica, apesar de longo, é um poema
monocórdico e encerrado no seu labirinto. O poema comunica uma
transfiguração do temperamento que termina por descobrir,
repetitivamente, a mesma realidade. Sem ser pessimista, falta-lhe utopia e
escape - quando se percebe que o sopro homérico, incapaz de semear, acaba
convertido tão-somente em esforço hercúleo. Felipe Fortuna é diplomata, poeta e ensaísta |
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25.12.2008