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Um esboço de Leonardo da Vinci, página do editor

 

 

Marcus Accioly

 

Poesia:


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Alguma notícia do autor:

   
 
Culpa

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

Marcus Accioly

 

 


Suíte para os habitantes da noite


 

São os do Norte que vêm!...
Tobias Barreto
 

Tudo é música, ou - como diria a Arte poética de Verlaine - "De la musique avant toute chose". Beethoven considerava a música mais importante do que a filosofia. Donald Hatch Andrews, autor de Fundamental Chemistry, em aula inaugural da John Hopkins University, faz esta surpreendente declaração: Se precisássemos resumir em uma curta frase o sentido do que venho afirmando agora agora, poderíamos dizer que o universo é constituído não de matéria, mas de música, e esta descoberta dá-nos uma nova orientação para a filosofia da ciência, o que nos força a uma completa mudança de atitude sobre a relação da ciência com a religião (...) O termo música deve ser aqui interpretado como a experiência diária dos átomos. Conseqüentemente, é válido o argumento de que os átomos são feitos de música, de que nós também somos feitos de música e de que todo o universo é, essencialmente, música.

Poderia remontara Pitágoras, aos hinos filosóficos-mágicos, chamados nomos, que significa leis, onde a "música das esferas" ou "as leis da harmonia", cujo lendário exemplo é o da flauta de Anfion. J. Maynadé comenta Pitágoras: Poesia eram por excelência os hinos religiosos, que se recitavam nos templos e nas festividades sagradas e eram dançados ao som da lira de sete cordas ou heptacordo, onde cada uma das cordas se encontrava sintonizada com a tônica vibratória de cada planeta.

Também poderia remontar às vozes das sereias, vencidas pelo canto de Orfeu, pois só a voz vence a voz, só canto vence o canto.

Se tudo não fosse música, haveria em tudo uma espécie de música, perceptível ou imperceptível, como a música do nosso sangue ou do nosso coração. No Evaristo Carriego - "História do tango" - diz Jorge Luíz Borges: Shopenhauer (Welt als Wille und Vorstellung. 1, 52) ha escrito que la música no es menos inmediata que el mundo mismo; sin mundo, sin un caudal comùn de memorias evocables por el lenguaje, no habria, ciertamente, literatura, pero la música prescinde del mundo, poderia haber música y no mundo.

A música independe do homem: existiu antes e existirá depois, nos ventos e nos rios, na linguagem dos pássaros, na mesma voz do mar ou do silêncio - "o grande falador". Porém, à proporção que a música é uma arte independente do homem, a poesia, sem dúvida, é a arte mais dependente.

Hegel - na sua Estética - observa: A poesia tem por objetos, não o sol, as montanhas, a floresta, as paisagens, nem a forma e a configuração humanas exteriores, sangue, nervos, músculos etc., mas interesses espirituais.

Ora, todos sabem, a música é irmã gêmea da poesia. Os homeros, ou - como diria Derek Walkott - Omeros, já sabiam disto e, aedos, usavam a lira, que foi usada por David e que ainda continuava sendo usada, com outro nome, pelos rapsodos do Nordeste-grego. Assim é que o 6º Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira foi julgado por dois músicos (que também são poetas) e por um poeta (que também é músico): Milton Nascimento, Paulinho da Viola e eu.

Não é preciso dizer que existe, hoje, uma diferença entre o poeta, o compositor e o cantor. O cantor, que substitui o poeta (como observa) Jorge Amado, no ABC de Castro Alves) também substituiu o compositor. Porém, ao tomar o canto (vale o sentido duplo) dos criadores, o cantor, mero intérprete (mesmo que um recriador) distanciou-se do peta e do compositor, como um músico executante (mesmo que um virtuose) se distancia de Goethe e de Mozart.. Creio que foi Chico Buarque de Holanda que retomou parte da tradição e, se não fez o canto voltar ao poeta, o fez voltar para o compositor. Contudo, já existia o abismo.

A música, arte fonética e temporal como a poesia, conservou seus aspectos - continuou ótica - enquanto a poesia ingressou pelo campo plástico e espacial - tornou-se óptica. Porém, distinto do cantor, o compositor sempre esteve próximo do poeta e, já não sendo este, aproximou-se deste, como no exemplo dado por Chico Buarque de Holanda e João Cabral de Melo Neto.

Assim, por um poeta e dois compositores, foi feito o julgamento da Nestlé.

Livro de todo o país (7.038) em caixas e caixas, foram separados, lidos e analisados durante meses, até uma possível certeza, uma convicção. O trabalho foi compensado pela descoberta de alguns textos inéditos e, principalmente, pela alegria do resultado, único e unânime: Suíte para os habitantes da noite.

O poeta escolhido, Aníbal Beça, de Manaus, Amazonas, escreveu uma suíte para os habitantes da noite do Brasil. Seu livro - à Euclydes - sai desse mundo no terceiro dia de criação, das terras ainda não separadas das águas, e consegue ser terra e água, água e terra, rolando pela noite a sua música de palavras, seu estouro de pororoca para os habitantes das ribeiras. É um livro poderoso e vigoroso como um rio, como uma árvore arrancada, como um tronco de jacaré.

Aníbal Beça escreveu uma obra inteira, uma suíte - série de composições instrumentais destinadas a um coro ou à interpretação - buscando modelos musicais dos séculos XVII e XVIII para uma produção literária moderna, ou - na expressão cunhada por John Barth - pós-moderna. Edgar Allan Poe, n'A filosofia da composição, afirma: "Um poema longo é, no melhor dos casos, uma série de poemas curtos alinhavados". T.S. Eliot retruca tal opinião: "O que devemos ter presente é que ele (Edgar Allan Poe) era incapaz de escrever um poema longo". A polêmica é retornada por Octavio Paz que, em A Outra voz, pergunta: "O que é um poema longo?" E responde: "Um poema longo é um poema grande". Invertendo a definição de Paz, poder-se-ia dizer que um poema longo é um grande poema.

Aníbal Beça foi capaz do poema longo e, dentro do longo, ele quis o fragmentário do mundo moderno - o universo em decomposição. Assim, o conceito usado por Rubem Braga - "romance desmontável" - para Vidas secas, de Graciliano Ramos, pode ser usado com respeito ao livro de Aníbal Beça: poema desmontável (pois pode ser lido como um todo ou em partes). Todavia, pela própria definição dicionarizada, a sua suíte tem um "estreito parentesco tonal", ou seja, "uma tonalidade única ou alternância do modo maior com o menor, sobre a tônica escolhida". Aspectos que, à primeira vista, dentro da estrutura pareçam – na expressão de Poe - "alinhavados", são, na realidade, parte da "desconstrução" voluntária que, de modo intermitente, interrompem a narração com a descrição, o todo com a parte. O discurso de Aníbal Beça apóia a fala sobre uma palavra-chave - refrão ou referência – para continuar falando. Durante as pausas de respiração, ele prossegue dizendo o que respira. Sua corrente elétrica - que se quer contínua - é, propositalmente, feita de by-pass, de curtos-circuitos, de relâmpagos.

Suíte para os habitantes da noite é um épico moderno que, contendo o lírico, alcança a essência do dramático. Não há distanciamento dos gêneros, mas, consecutivamente, "um-no-outro" - como diria Emil Staiger - lírico-épico-dramático, como sílaba-palavra-frase.

De Erato a Melpômene, via Calíope, o poeta despersonaliza o seu "eu" para atingir – na concepção de Fernando Pessoa - "o quarto grau da poesia lírica".

Dentro da idéia do Mundo-Labirinto, de Friedrich Dürrenmart, Anibal Beça é Dédalo (conpositor do Labirinto de palavras) e é Teseu (não perde o fio de Ariadne) desafiando o Minotauro do poema. Logo após o soneto (Inglês) do "Prólogo", um alexandrino feito de ritmos e alterações, ele parte da "Abertura - chorinho para bandolim, cavaquinho, flautas e violões" - com Vontade essa intenção de músculos da memória.

Depois, fala dessas feridas sempre abertas/onde todas as noites/vêm se alimentar/os pássaros feitos de cinzas".

noite a noite
reduto inviolável de todos os retornos
Fênix
Fênix
ó águia noturna
 

E prossegue:


Eu te celebro
como teu irmão

Percebe-se, neste início, uma vontade de força, ou uma força de vontade para cantar – à Mayakóvsky - a plenos pulmões. A sua águia noturna ressuscita das cinzas, de um mundo queimado, carbonizado, saído da fogueira ou da coivara. Não sai do fogo a sua poesia, nem da brasa, nem da favila. Ela não é Salamandra, é Fênix, ressurge do resíduo da combustão.

Diria mesmo, o seu canto nasce do pó das imensas queimadas denunciadas pelo satélite.

Afeito à grande natureza, Anibal Beça tenta seguir o curso das coisas, quer abranger, olhar de cima, descortinar, rasgar os olhos para que entre a paisagem. Sua águia noturna tem algo d'O pelicano, de Musset, algo d'O albatroz, de Baudelaire, algo do Albatroz - leviatã do espaço - de Castro Alves. Ele deve ter ouvido Castro Alves: Na terra dos Andradas, dos Pedros Ivos e dos Tiradentes, deve ( a poesia) ser majestosa como as matas virgens da América, arrojada, como seus rios gigantescos, livre, como os ventos que passam gementes por suas várzeas e que zurzem os costados pedregosos dos seus gigantes de granito. A poesia, enfim, deve ser um reflexo dessa terra.

Deve ter lido (La nueva novela bispanoamericana) Carlos Fuentes:
Ya hemos indicado algunos de los desafios tradicionales para nuestra literatura: nuestra historia ha sido más imaginativa que nuestra ficción; el escritor ha debito competir com montañas, rios, selvas, desiertos de dimensión sobrehumana. Cómo invertar personajes màs fabulosos que Cortès y Pizarro, màs siniestros que Santa Anna o Rosas, màs tragiocòmicos que Trujillo o Batista?

E diante de tal realidade, mais absurda do que próprio absurdo (onde um livro como Os sertões, de Euclydes da Cunha, parece mais ficção do que a ficção d'A guerra do fim do mundo, de Mario Vargas Llosa) Anibal Beça procura e encontra o que costumo chamar de força e fôlego, respiração de mar, que, no seu caso, é o "mar doce" do Amazonas.

O leitor dos Tempos modernos (Eh, Carlitos - como diria Cortázar) por culpa única do poeta - que largou o canto pela metade, incompleto, inconcluso - anda desacostumado do poema inteiro, sem fôlego para livros de fôlego, sem força para livros pesados. A epopéia virou romance, a poesia virou prosa (e a prosa jornalismo) até que deixou o verso, deixou a palavra, deixou a sílaba, deixou a letra e, antes do Poema-Processo, partiu para o processo do "poema" sem poesia. Claro - como escreveu Jorge de Lima - "nem tudo é épico e oitava-rima" e, segundo Walter Muschg, na história trágica da literatura, "o artista é o último que ainda joga".

O poeta foi o grande perdedor desse lance de dados. Ser em extinção, ele fez – conforme Cortázar - "a escolha entre a bola de cristal e o doutorado de letras, entre o passe magnético e a injeção de estreptomicina". Renunciou à sua missão, desaprendeu o seu ofício e já não sabe - na expressão de Paz - contar e cantar. O sonhador, que revelava os sonhos, abriu mão do seu poder sagrado. Hoje precisa de pesquisadores (para pensar) e de escribas (para escrever). Carece, cada vez mais, de editoras munidas de um ghost writter capaz de sugerir títulos, frases feitas, versos feitos (ou de efeitos). Enfim, deixou-se censurar por qualquer copy desk que adultera o seu texto à guisa de oferecer algum "ingrediente" para compor best seller. O poeta já não consegue dizer - à Pilatos - "O que escrevi, escrevi" e, por isso, também já não pode dizer - à João Cabral de Melo Neto - "Saio de meu poema/como quem lava as mãos".

Anibal Beça é dos que voltam à ruptura, dos que revolvem a cinza do incêndio e, se já não tenta deter o leitor com fogo avulso do poema, entretê-lo nas chamas frias que já não queimam a sua asa, é que a sua consciência é a consciência do nosso fim de século, que também se assemelha a um final de mundo. Ante o processo escatológico, o poeta se detém para deter e, como nas placas ferroviárias, pára para que o leitor pare e olhe e escute... e não passe.

A lição vem de Schiller: Não nos precipitamos impacientemente para um ponto, mas paramos com amor a cada passo.

Assim, ele vai por seus igarapés e igapós, seus remansos, seus desvios de solidão. O leitor sai do leito forte da água, mas continua na água, entre as árvores, à sobra das árvores e sobre as águas, onde, às vezes, o seu reflexo é o reflexo do poeta. Depois é novamente mar, espuma e nuvem. É rio, é visão de proa, à frente, clássica, horizontal.

O que a viagem longa não permite, o poeta se permite:

ribalta luciferina
lunária ária da lua

 

As lâmpadas da Lúcifer - lu, ciferina (ferina luz) - acendem as luzes da luna, lun(á)ria (ária da lua). O "a", vogal clara, pulsa e pisca nove vezes nos dois versos. Luzes, Luzes da Ribalta, Luzes da Cidade - Luzes de Chaplin a Ferlinghetti - City Lights Bookstore.

A luz se inflama e, dentro da luz, a dor é a inflamação do espinho do poeta:

sei no que sou no espinho em que me cravo
E volta, naturalmente, aos seus palimpsestos.

 

O narrador-poeta corre paralelo a Majnun (também pseudônimo de Aníbal) e Laila, anunciados no Prólogo: E assim me assisto esse uno e esse outro Majnun (...) mesmo sem Laila...
 

As vozes se separam e se encontram. Um uivo do lobo (que não é o de Allan Ginsberg) atravessa o poema. É um lobo árabe, nômade do deserto ou da floresta, reclamando pelas lutas das origens e das raízes. O poema se desdobra e não se dobra. Segue, cita, dilui-se, vira anagrama, diagrama, pentagrama, caligrama, fluxograma, ideograma e continua poema em cada folha, continua o mesmo poema em cada página. A epopéia vira melopéia e soneto é Toada para solo de ocarina:

Fio tênue de céu em claridade
E me morro no haxixe com Rimbaud
 

Longe, do Norte - como na epígrafe de Tobias - vem Aníbal Beça, poeta com a idade dos poetas da minha geração, vem trazendo outros - Thiago, Bacellar, Tufic, Max, Elson, Simão, Zemaria, Aldísio, Alcides, Antísthenes, Alencar, Aúreo - vem trazendo muitos, tantos, todos da Madrugada com o seu Clube. E quando um poeta vem, vem com ele a poesia. A de Aníbal é lunar, fluvial, musical: Suíte para os habitantes da noite.

 

Marcus Accioly é poeta e foi membro do júri do 6º Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira. Este texto é o prefácio da 1a edição de Suíte para os Habitantes da Noite.

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Marcus Accioly

 

16.3.2002

Um épico da latinidade

Esforço hercúleo por trás de poema longo sobre o continente esbarra no maniqueísmo político e na monumentalidade kitsch

FELIPE FoRTUNA

[16/MAR/2002]

LATINOMÉRICA

Marcus Accioly

Topbooks/Biblioteca Nacional, 620 páginas

R$ 49

Ao desocupado leitor (como escreveu Miguel de Cervantes) talvez não pareça relevante informar que comecei a ler Latinomérica num vôo que partiu da Colômbia em direção ao Brasil. Mas o ato de intercalar a leitura dos versos com a visão, pela janela, do território amazônico daqueles dois países, na escala de um vasto mapa natural, associava-se perfeitamente à empreitada de Marcus Accioly: cantar a América em dimensão épica e reunir, em versos, o imenso acervo da cultura e da história que atravessa o continente desde os extremos da Terra do Fogo até o ponto mais ao norte do Canadá, banhado pelo Oceano Ártico. Para tanto, o poeta não concebeu, obviamente, um poema geográfico, mas sim um longo poema político, em cuja construção se fez vigente um princípio fundamental: o da arte como ataque e engajamento, ou como instrumento de denúncia e de combate persistente. E é como um guerreiro latino-americano que o poeta se apresenta e se solidariza: ''dá-me ao punho sem luva um golpe novo/ (quero lutar o canto do meu povo)'', ''emprestarei às regras da canção/ estruturas que são próprias do boxe/ e assim (...)/ te narrarei com minha voz armada''.

Mais precisamente, o poeta de Latinomérica é um pugilista que organiza a sua luta épica e continental segundo as regras estritas do boxe, na qual estão presentes o árbitro, o cronometrista, os jurados e ainda a seqüência massacrante de rounds - cada um destes um canto de poesia e de confronto. São vários os inimigos trazidos ao ringue: ora o neocolonialismo, ora os Estados Unidos da América, ora os ditadores e torturadores, todos caracterizados como violentos representantes da opressão e de uma utopia histórica interrompida: ''o que veio depois?/ depois... (eu creio / que se me embarga a voz)/ depois... não veio.../ teu sonho foi sonhado/ pelo meio''. A originalidade da estrutura do poema corresponde, portanto, a um conteúdo de violência em reação direta à violência sofrida pelas sociedades primitivas da América.

A primeira violência foi a imposição da língua do colonizador, rapidamente seguida por diversas outras que culminaram com a violação de todos os tipos: no corpo, na escrita, no pensamento e, de um modo totalizante, no destino mesmo: ''(América) sofreste o teu estupro/ e (dele) nós viemos sem saber/ do pai (desse europeu bárbaro e bruto/ que nos deu o destino de nascer)''.

Na atualização do tema da violência, Latinomérica se define como o poema mais anti-estadunidense da literatura brasileira: trata-se de uma percepção primordialmente maniqueísta, tendente ao caricato, da qual Marcus Accioly obtém as imagens e metáforas mais virulentas dos seus versos. Paralelamente à busca da identidade da América Latina, o poeta insiste na tese de que os Estados Unidos sucederam a Espanha no projeto colonialista que submeteu todo o continente, e assim vincula a história de cada país a um só cortejo fatal: ''eis (atrelados à locomotiva/ dos Estados Unidos) teus vagões/ de países (América-Latina)/ que (no sentido-Norte) aos encontrões/ são puxados de baixo para cima/ (do Sul ao Centro sobem as nações)/ pátrias tombadas pela via férrea/ (Américas levadas para a América)''. O libelo do poeta se converte, de fato, numa peça acusatória à maneira intelectualmente engajada que deu fama a Émile Zola ao desmascarar a infâmia dos ataques ao militar e judeu Alfred Dreyfus: ''Ó Unidos Estados desUnidos/ (não ao teu povo) ao teu governo acuso/ (em meu nome e dos povos oprimidos)/ acuso a tua Águia (...)/ acuso a tua posse (após o usu-/ fruto dos bens dAmérica-Latina)/ (...) para que saibas (mesmo que sorrias)/ que David não tem medo de Golias''.

Definida a conformação ideológica de Marcus Accioly, afinal esquemática e, por isso mesmo, pouco surpreendente, convém saber sobre os recursos poéticos de que se valeu na sua renovação da tradição épica. É quando a monumentalidade de Latinomérica se reduz a uma dimensão francamente ínfima: o longo poema não tem o arrojo das imagens delirantemente sustentadas em Invenção de Orfeu (1952), a ''biografia épica'' de Jorge de Lima; tampouco a mescla de alta sensibilidade histórica e sentimental que caracteriza o Poema sujo (1977), de Ferreira Gullar, entre poucos outros exemplos brasileiros. Latinomérica se ocupa bem mais do pretexto político do que do texto poético: dos seus versos se extraem quase sempre a aliteração e o trocadilho, em freqüência abusiva e com duvidosos efeitos, a exemplo de ''(jaz Jamaica jungida ao jugo e ao jogo/ da chuva) nela dança Bob Marley'', ou então ''dentro da voz (cortando a indagação/ que tu fazes à praia surda-muda/ dos pés desse gigante que te USA)''. Muitos desses versos, como é comum acontecer na tradição épica, não escapam a uma recorrente ilegibilidade, provocada por reverberações do kitsch, como neste exemplo de memória infantil e latino-americana: ''(sim) uma nuvem era a tua teta/ monstruosa de cheia como estava/ com seu mamilo (única chupeta/ que eu não dormia enquanto não chupava)/ tu cantavas o boi da cara-preta/ e (boi) eu te fazia (mãe) de vaca/ pois (cheio de vontades e direitos)/ só vivia pegando nos teus peitos''. Reporte-se, ainda, às duas estrofes finais do poema 11 do capítulo X e às do 24° round (primeiro minuto de luta) para que se possa avaliar a extensão e o paroxismo daqueles recursos poéticos, que fazem ainda do Haiti a exclamação de um lamento (ai-de-ti) e de Equador um reflexo (eco à dor)...

Latinomérica é um poema-compêndio de farta erudição - e, à maneira de um catálogo, como se lê notavelmente no capítulo IV (''Os Jurados''), enumera autores e obras canônicas do continente. Mas logo se pode concluir que as duas principais matrizes latino-americanas do livro são o Canto general (1950), de Pablo Neruda, e Omeros (1990), de Derek Walcott, este último aparecido quando Latinomérica provavelmente se encontrava em parte escrito, mas ainda sujeito a profundas revisões, tanto assim que o poeta de Santa Lúcia comparece nos seus cantos iniciais. O épico de Neruda inspira e dá substância ao vetor histórico do poema brasileiro, tanto na sua grandiloqüência quanto na imensa tarefa de esboçar uma história do continente e do país natal, em que está presente até mesmo o anti-estadunidismo, representado por empresas como a Standard Oil e a Anaconda Copper Mining; por sua vez, o épico de Walcott delineia o vetor mitológico de Latinomérica, que ainda se beneficia do rigor métrico e da comovente presença dos habitantes marginalizados. Encontram-se na interseção do eixo vertical da cordilheira andina com o eixo horizontal do mar caribenho as principais ambições e virtudes do épico de Marcus Accioly.

Naturalmente, uma discussão sobre o épico moderno ultrapassaria os limites desta resenha, bastando assim registrar que o poeta pernambucano se vê inserido numa tradição que remonta ao também longo Colombo (1866), de Manuel de Araújo Porto-Alegre. Marcus Accioly reconhece que a sua preferência pelo épico denota não apenas uma consciência, mas também um temperamento, embora seja perceptível que a ''áspera ciência de cantar'' do poeta esteja fundamentada, irreversivelmente, na questão política. E por ser política cada opção do poeta é que se pergunta, por exemplo, se o uso da oitava camoniana não constituiria uma contradição, na estrutura do poema, tão passível de denúncia quanto a que se fez à língua do colonizador, já que ambas foram impostas pelo mesmo processo ideológico e imperialista. Questão idêntica incide sobre a escolha das regras de boxe em conformidade com a International Boxing Union (IBU) - cuja sede fica em Atlanta, na Geórgia.

Em outras palavras, a estrutura de Latinomérica se assenta, justamente, no regulamento de uma entidade norte-americana que tem como objetivo sancionar as lutas, nomear o árbitro e os jurados e, como convém à boa prática, enviar um representante para assegurar que as suas regras estão sendo observadas. Tomadas em consideração as palavras de Marcus Accioly no também extenso ''Apêndice'' do seu livro, ''a forma passa a ser uma homenagem e uma comemoração'' - o que de uma só vez descarta a assimilação dialética da oitava camoniana e do regulamento da IBU e instaura, por fim, um contexto irônico para todos os capítulos do livro.

Por contestador que seja, Latinomérica oferece numerosas passagens nas quais o poeta não se importa em prolongar estereótipos que só prejudicam a criatividade e o tom elevado do épico, como acontece no canto a alguns países - a exemplo de Honduras, que surge descrito numa brevíssima sinopse de história e na referência jocosa à ''guerra do futebol''. Também notável é o agrupamento de lugares-comuns histórico-mitológicos, como em ''urge matar a infância (ó rei Herodes)/ (...) (trocarei ordens por odes/ se Laio lhe amarrar o pé ao pé)/ mas (Édipo que sai dos meus passados),/ a infância volta sobre os pés inchados''. Bem sucedido, no entanto, é o uso das metáforas sexuais, que são tão impactantes e violentas como a denúncia e a contestação políticas: nesses poemas de irrefreável lirismo surge o melhor de Marcus Accioly, que combina uma forma singular de erotismo e engajamento, à maneira do Moacyr Félix de Neste lençol (1977), poeta homenageado em um dos rounds.

Ao vislumbrar parte da América da janela de um avião, também se pergunta se o continente pode estar contido na forma homérica ou anacreôntica - ou, como escreve Marcus Accioly, se o poeta deve ser condor ou pardal. Talvez interesse saber, no entanto, se um grande poema da língua deve ser o manifesto de uma indignação ou uma obra polissêmica, aberta a um extenso conjunto de interpretações. Pois, definitivamente, Latinomérica, apesar de longo, é um poema monocórdico e encerrado no seu labirinto. O poema comunica uma transfiguração do temperamento que termina por descobrir, repetitivamente, a mesma realidade. Sem ser pessimista, falta-lhe utopia e escape - quando se percebe que o sopro homérico, incapaz de semear, acaba convertido tão-somente em esforço hercúleo.

Felipe Fortuna é diplomata, poeta e ensaísta

 

 

 

 

 

 

25.12.2008