Maria da Conceição
Paranhos
comenta o prefácio
de Soares Feitosa
para o Recordel, de
Virgílio Maia
1. Num primeiro e-mail:
From: "Maria da Conceição
Paranhos" <paranhos_44@hotmail.com
To: <soaresfeitosa@uol.com.br
Sent: Thursday,
December 04, 2003 4:17 AM
Subject: Dor e júbilo
Meu
amigo,
DOR: morreu um dos maiores poetas
brasileiros, meu amigo Affonso Manta. Estou sofrendo muito com
isto. O meu mestre Tasso da Silveira dizia que quando um poeta
morre é como se um cofre de tesouros tivesse submergido
em alto mar para sempre. Affonso Manta é um patrimônio
da humanidade. Depois lhe relatarei a vida deste grande poeta. Estou
em luto, poucas palavras. O poeta Inácio vai lhe enviar,
a meu pedido, material para você inserir em seu sítio
(acho que é uma fazenda, na verdade, uma imensa fazenda,
o seu site, e aqui já se inicia o júbilo).
JÚBILO: seu texto. É
de uma beleza confrangedora - foi o adjetivo que me veio. "Ah,
meu caro Vergilius - Nunes Maia ou Publius Maro, tanto faz -,
a legitimidade do nosso canto é tão-só a sustentar o
júbilo. Se cantamos a vida, cantemo-la como a não-morte;
se cantamos a morte, que seja um psalmo de ressurreições.
Poeta Virgílio, creia-me, o catálogo das mãos
é inesgotável porque as mãos dos novos hão
de garantir as nossas mãos. Por sobre, sempre por sobre;
assim tem sido". — Diz você, com absoluta propriedade.
O que
você realiza em seu texto é uma lúcida captura do mundo,
nos catálogos que tipifica. Ocorre uma vizinhança
com a experiência individual e social espantosa. Mais que
vizinhança, uma co-percepção do mundo criado
pelo homem, mundo cultural e poiético,
à semelhança do gesto de Javé no início
deste mundo em que nos é dado o canto. E, ainda à semelhança
de Deus, viu e vê o criado e achou e acha que era e é
bom. Ato genésico, o seu.
Mais:
com seu inventário articulado poiéticamente você erige
uma Ars Poetica. Veja, no anexo, os trechos que destaquei do
seu texto e se não é isto que você realiza
- uma arte poética encorpada e radical.
Suas
palavras sibilam e zunem, são como aríetes, às vezes,
na percepção do mundo e da natureza da arte. Da
Arte.
Que
texto, o seu! Parabéns mesmo, parabéns são poucos, viva
você!
Um
beijo e um abraço de sua amiga,
Conceição
2. Num segundo e-mail:
From: "Maria da Conceição
Paranhos" <paranhos_44@hotmail.com
To: <soaresfeitosa@uol.com.br
Sent: Thursday, December 04, 2003
11:08 AM
Subject: Dor e júbilo
Meu amigo,
Ontem, escrevi um longo mail para
você, dizendo de DOR (morte de Affonso Manta, um dos
maiores poetas brasileiros) e JÚBILO (pelo seu texto,
com amplo comentário. Mas como meu Windows está acusando um
erro desconhecido para mim, talvez não o tenha recebido.
Quanto ao Manta, espero de você
uma super-homenagem a ele em seu sítio (que, como o
dissera antes, no primeiro mail, é fazenda e fazenda
sem limites, sem ser latifúndio, graças a Deus! Penso até
que os poetas do MST deveriam enviar suas conribuições...Veja
bem: acho a causa justa e a ela adiro; sou contra alguns procedimentos
de pessoas isoladas - abusos).
De qualquer modo, havia uma colagem
do seu excepcional texto para arquivo do Word, comentado seus
catálogos e os substratos anímicos, e outros,
destes, em alguns aspectos, que anexo agora, como já o fizera no outro.
Parabéns!
Estou feliz com sua
performance maximal. Você está crescendo mais
do que um jequitibá. E, paralelamente à sua auto-construção
como ser humano, a sua bela e ímpar contribuição
a uma literatura que encontra raquitizada cada vez mais neste País.
Nos seus textos, corre o sangue da Vida, o sangue quente do
contato com as vísceras.
Você dá as mãos
ao expressionismo kafkiano, sim, e à sua condição
de judeu sefaradita. Afinal, os marranos são irmãos
destes, são "rapazes" da estirpe do Maimonides, Marx,
Engels, Mendelssohn, Freud, Einstein, Wittgenstein, Henri Bergson,
Edmund Husserl, Martin Buber, Karl Popper, Einstein, do Freud,
do Spinoza...
Lembrei-me, também, da piada
dos "cinco rapazes judeus" que mudaram os rumos da história
da humanidade, passada para mim por um amigo querido, o Roberto
Ponczek, um desses mesmos "rapazes", apaixonado por Baruch
Spinoza, com livro e tese de doutorado sobre o filósofo considerado
anárquico por seus irmãos: Moisés: "o mais
importante é a lei, e esta se faz com a cabeça";
esus Cristo: "o importante é o amor, e este se situa mais em
baixo, no coração"; Marx: "o mais importante é
a igualdade social, e esta é sentida um pouco mais embaixo, no estômago"; Freud: "o importante fica ainda mais
em baixo, no sexo, pois é neste local que se situam os desejos".
Finalmente, o quinto, Einstein: "meus quatro colegas judeus
estão relativamente equivocados pois o importante é
que tudo é relativo". Envio-a para você
sentir ainda mais a alegria de ser criador de Criador e sua criatura.
Foi Ele quem disse, não foi mais ninguém: "Sede
perfeitos, como eu o sou".
Continua a informação do Ponczek,
me dizendo que, certa vez, quando perguntado por um pastor
se acreditava em D'us, Spinoza lhe teria respondido: "Eu não
acredito em D'us, eu conheço D'us". E, quando um rabino
americano fez a mesma pergunta a Einstein, este lhe respondeu:
"O D'us que acredito é o D'us de Spinoza". Por este motivo, Spinoza
é conhecido como "o filósofo embriagado de D'us".
Depois de Spinoza e Einstein é perfeitamente possível
conciliar o judaísmo com a ciência e a filosofia
modernas.
Isto você faz no seu texto, isto você
É no seu texto, com a diferença de ser poeta.
E poesia é verdade (Poesie ist Wahrheit, quem o disse
foi Goethe). Poiésis: o mais alto conhecimento, pois há
o contato direto com o mundo empírico, sem intermediações
da lógica causal.
O Virgílio Maia deve estar
muito feliz com tudo isso. Que ele receba o meu abraço
e as minhas homenagens.
Vou tentar lhe enviar os comentários
sobre seu texto mais tarde, se for corrigido o erro do meu
Windows.
Abraço e beijo.
Conceição
Notas
do Editor:
i) A página
sobre o poeta Affonso Manta já está no ar. Evidentemente,
material remetido de iemdiato pela poeta Maria da Conceição
Paranhos. Basta clicar!
ii)
O problema de Word n�o era no computador de Concei��o Paranhos,
mas no de Soares Feitosa. Com alguns solavancos, depois de espantar
os v�rus, os email's apareceram.
A
seguir a an�lise, do tipo tomografia do texto, sobre o
Pref�cio do livro do poeta Virg�lio Maia:
Maria da Conceição
Paranhos
comenta
Estudos & Catálogos,
Mãos,
de Soares Feitosa
Ao dono, indelegável,
personalíssimo, o direito de ferrar. Algo solene, quase
místico, manhãzinha, que de tarde o sol, a poeira e
a fadiga do gado seriam por demais. O proprietário, tomando nas
mãos o ferro-quente - um cabo bem comprido, com uma madeira
na ponta ou um sabugo de milho a protegê-lo. O ferro em
ponto de brasa, marcava, de próspero, as reses recentes:
as de compra e as de nascido.
O vaqueiro, no quinhão
que lhe tocava (de cada cinco bezerros nascidos e
criados, um para si; ou um em cada quatro; a variar, condições
da terra), havia de ferrar, ele mesmo, com as mãos dele,
a sorte dele. E com sua própria marca. Mas, de marca
comum, no outro lado da rês, da banda esquerda, ferravam-nas,
proprietário e vaqueiro, com a marca do santo, dita também
da freguesia.
Conta-nos Euclides,
em Os Sertões, sobre aquelas gentes, nós, iletrados, que sabíamos "ler" fluentemente
qualquer marca de gado. Para os meninos da cidade grande: marca
de gado, meu jovem, um ferro em brasa, o boi ali, subjugado;
o ferro, rapidamente à perna-alta da rês, até
fumacear num olor de carne-couro, chiante, queimante. Uns esturros
de dor, no bicho. Passa-se-lhe, a “desinfetar”, um óleo
rápido de carrapateira. É soltar... a ver criar e
recriar — graças a Deus! Estas, parece, algumas notícias
das mãos. Catálogos. E suas serifas. Arte. A arte
dos ferros, tão vasta como a arte de decifrar o catálogo
das naus dos aqueus, em Tróia, contra Tróia. E cavalos.
Reparava, meninote,
na perna esquerda dos bois. Se um A ali, era de Anastácio,
santo, o padroeiro de Tamboril, de lá, a rês. Um Q? De
Quitéria, santa, padroeira, cidade do mesmo nome, vizinhança.
Um S? Espere aí, meu caro, este boi é "meu", Sebastião
naturalmente, São Sebastião, «Ó
mártir de Cristo,/ ó santo varão,/ livrai-nos
da peste,/ São Sebastião!», janeiro, 20,
padroeiro da Serra das Matas, dita outrora Vila da Telha, hoje
Monsenhor Tabosa.
Os modelos da Ferrari, o catálogo
de todos os filmes, o relato completo das grifes de marca, roupas
de vestir - sabe-os todos, meu jovem? Pois sabíamo-los
aos ferros, os nossos ferros. E berros. Um chocalho num timbre alto; outro mais soturno, outro chocalho,
e outro e outro. Tropel. De galos e auroras, meu caro engenheiro.
Tecem a manhã os teus galos. Tecem os bois e seus chocalhos
a tarde chegante.
Arte, coisas — o catálogo
das letras finamente desenhadas. Nem tão grandes a não
inutilizarem o couro do animal com uma mancha exagerada; nem
tão miúdas a ponto de o vaqueiro não as "ler" à
média luz, de média distância. E sabíamo-las de cor, a reproduzi-las no chão com um graveto
fino. E suas serifas. Arte!
Aqueles pequenos rabichos que rebatem a perna do A ou repuxam
um pequeno rabinho duplo na ponta baixa do P.
Conceição
Paranhos:
Aqui você inicia
a inscripção da escrita. Leu e foi tomado
do que se chama em filosofia existencialista de
"choque do reconhecimento". Inicia a observação
da encriptagem. Decodifica no mundo empírico. Assim a
Arte nos move.
Raciocínio indutivo-dedutivo.Até
aqui, atos do Homem. A partir daqui, atos da Mulher
(a Mãe). Paixão e Ressurreição.
|
Experimente, na
tela do seu computador, com a fonte Arial,
que é
um modelo tipicamente sem serifa. O A será um V de cabeça
para baixo, atravessado por um
garranchinho sem nenhum enfeite. Cabral. Retas. Arial.
Veja, agora, no modelo
Times, o mesmo A. Repare que no final de cada perna da
letra há um rebate, um acabamento a mais, uma
pequena sapata. Esse enfeite é a serifa. Rabichos.
Rebatido. A proporção
justa, da divisão
áurea. A haste maior e seu acabamento,
eis a beleza das marcas de ferrar. Catálogos. Virgílio
Maia, poeta, é especialista em marcas de bois. E Socorro
Torquato, a mulher dele, sabe desenhá-las em pedra &
fogo. Assina-as: Côca.
Há, dentre
muitos outros, o catálogo dos leites. As coisas de gerar,
parir, alimentar e comprar - gado - são minhas. Coisas d'Ela,
as vasilhas impecavelmente lavadas, enxutas; os panos de coar,
com uma marca vermelha, em ponto-de-cruz, serifas, o mesmo
"ferro" do ferro dos bois. Coisas minhas: "espichar" os úberes
(sem aniquilar os bezerros, evidentemente), levar para dentro
de casa, ao fabrico dos queijos, os baldes de leite, sempre
dizendo que estão bem leves, mas em tempo de me arrebentarem
o espinhaço. Dali para frente porém o traço
do coalho, os utensílios, as formas de moldar, mãos,
levíssimas mãos, o grau de cozimento da coalhada,
estas coisas são d'Ela, um catálogo fêmeo.
A prensagem do queijo,
d'Ela. Um rápido torque no cabo da
prensa. Toque, nem por demais para não ressecar ou espatifar a
massa (e perder no peso, na hora de vender), nem de menos para não
azedar o produto, de tanto soro, a perder na qualidade... Sim,
um apertar de braços, abraços, Ela. Também
do catálogo fêmeo, o desenformar do queijo, desembrulhando-o,
alvíssimo (tomando-lhe o sal), úmido, lúbrico,
uma tarefa da noite cedo. De mais um pouco, as coalhadas e suas
terrinas, ceia e rezas - d'Ela, minha. E a noite.
Conceição
Paranhos:
Essa suspensão
de palavras com "E a noite" é a fonte da perdição
e da culpa, da descoberta das saídas e da compreensão
dos mistérios da vida. Da Vida.
|
Levá-los,
queijos, à feira; negociá-los em açúcar,
querosene e alguns álcoois são coisas de minha
lavra, numa tropa de burros. No cavalo mais dócil, de
parelha com a burra Faceira comigo em cima, Ela. Na volta,
um cálice de Imperial. Ou do Porto. Sem esquecer
o nome das reses. Ela quem ajuda a escolher. Flor do Pasto
à vaca “mais bonita do lugar”, Ela disse. [Eu disse:
Flor, tu!] O touro Canário, lhe botei
este nome, aos canários de um certo alpendre. Ela
sorriu. Mas zombou que noutras casas, de alpendres e saias, havia
canários. Eu disse que não seriam amarelos tanto
quanto.
Conceição
Paranhos:
Lirismo e encantamento,
da magia, do oculto, do inconsciente e de sua projeção
em júbilo.
|
Ah! o catálogo
das águas?! Aquele cavar, escolher onde cavar, recavar
(porque tudo que um dia eu cavo, a cheia vem e entope), coisas
minhas, catálogo meu. Encher os cântaros — cabaças,
roupas, lajedos, moitas de melão São Caetano,
perfumar as redes em sol de capim-santo... falem com Ela,
digam que fui eu que disse. Mas o fabrico da moringa de sola,
dita também borracha-de-sola, curtindo antes o couro em
cinza e cascas de angico... Assovelar cada uma das peças
em paciência. E Arte. A arte dos couros; selas, gibões,
peitorais, chinelos, inclusos os d’Ela (com as vaquetas
mais tenras); sim, estas coisas estão comigo, sempre estiveram.
Botar a moringa de sola a limpar o gosto e o cheiro da sola com
tantas e tantas águas, falem com Ela. Também
os canecos-de-beber, potes, jarras, bandejas, toalhas e ornatos
de fino crochê; rendas e bilros; linhas brancas e de matiz.
Conceição
Paranhos:
Leo Spitzer fala de "enumeração
caótica", traço de estilo que imprime
ao ato assim enumerador uma nova forma de percepção
de mundo. Isto está aqui no seu texto.
|
Ainda no catálogo
das águas, reparar no tempo, no "olho" dos formigueiros,
"profetizar" se vai chover ou não, poupem-na. Se sabe,
talvez saiba, mas de puro recato, Ela não diz.
E o catálogo dos animais. Dizemos animais tão-só aos
cavalos, burros e jumentos - e dalgum político mal-abuzado.
Gado é gado! Peá-los a campo, encabrestá-los,
montá-los bravios, a pulso e ordem — cavalos e burros;
jumentos não, que são dóceis e calmos de
natureza — não remetam a Ela, tarefa minha, só
minha.
Conceição
Paranhos:
Ordenação
do mundo inconsciente, condução de seus lucros para o
consciente, abolido (felizmente) o superego.
|
Aos animais miúdos,
patos, galinhas, pavões, perus, e os pássaros de
dentro de casa — "assum-preto" — soltos, Ela quem os dirige. Ninhos
— pô-los a pôr, deitá-los, tirá-los,
o primeiro xerém, falem com Ela, por favor, que
não entendo dessas artes. Espingardear os inimigos,
costurá-los à faca? Ela está inocente, mas
saberá desembrulhar seus mortos.
Conceição
Paranhos:
Embora em todo o texto
você mostre semelhanças com Borges, é
mesmo de Kafka - mestre de Borges - o seu manejo da
palavra em função de uma significação
que preserva o sentido da realidade empírica,
todavia conduzida de modo lúdico e encantatório
(mais uma vez e sempre no seu texto).
|
Ia-me esquecendo,
uma tarefa muito d'Ela: fazer, em letra calma, uns papeluchos
«Ave Maria concebida sem pecados, rogai por...»,
a apregá-los (com um grude ligeiro, de goma, feito
no bico da colher, na chapa do fogão de lenha); isto
mesmo, pregá-los pelo lado de dentro, em todas as portas,
em todas as janelas. Também nos currais quando os bichos
adoecem, nos moirões da porteira, protegendo a nós
todos, brutos e viventes. Contra os de fora! Por dentro. E
"esquecer" um desses papéis no fundo do bolso do meu gibão.
Percebo que Ela o troca quando o suor do meu rosto...
papel. Um longo aboio. Amarfanhado.
Conceição
Paranhos:
A origem de SUA poiésis.
Catálogos! O catálogo dos Doze
- tribos e apóstolos. Trivium e quatrivium,
ou, digamos... uma lista... a lista dos galos. Galos?
Sim, galos, manhãs e auroras.
Ou da tarde rubra (Gular),
num saguão de sombras, cimento, o olho em riste,
desafiante, galo-galo: - De que me defendo?
Os catálogos. As Leis. A legislação,
o código, os códigos, a pólis
-legislação eidética, a moira e a hýbris
conduzindo a palavra poética.
Ampliação,
redução, mergulho na memória individual e
histórica, bíblica. Os Doze exorcizam os próximos
passos na sua escrita.
|
Nada melhor
para assustar as aves de arribação que um aboio bem longo.
Ferros de bois. Hoje, os computadores e
as máquinas de satélite nomeiam e rastreiam
os bois. Naqueles tempos, um chocalho, uma pisada mais arisca,
uma cor de pelagem, o formato dos chifres e orelhas ou, irrefreável,
a marca de ferros. Desaparecemos?
Dizem que sim, tal
qual os livros-copistas e seus monges foram sumindo. Também
os palimpsestos. Mas o poeta Virgílio me mandou os originais
deste livro embrulhados num pedaço de couro de bode, todo
escrito em letra de fino traço. Como haveremos pois de sumir
com todas essas coisas?!
Catálogos!
O catálogo dos Doze - tribos e apóstolos. Trivium
e quatrivium, ou, digamos... uma lista... a lista dos
galos. Galos? Sim, galos, manhãs e auroras. Ou da tarde rubra (Gular),
num saguão de sombras, cimento, o olho em riste, desafiante,
galo-galo: — De que me defendo?
O catálogo
das cercas. Somos terra e cercas. Daqui para frente, não!
Um risco no chão e se levantam marcos. Cercas. O catálogo
abrange a cerca de jangarela, dita também de rama ou
de ramada; as de lombo; as de arame de três pernas mais
os estacotes na vertical; as de arame com doze fios, à
prova de bodes e bacorinhos; as de fachina (de fachos, verticais,
especantes) com moirões de sabiá a insultar com
o tempo; mais as cercas modelo Piauí: quatro fios de arame por sobre
uma muralha justaposta, exata, construída à eternidade com
as pedras de Piracuruca, léguas e léguas, vide
estrada de rodagem Altos-Campo Maior-Piripiri.
Conceição
Paranhos:
Os limites. Escrita extremamente
erótica, mais ainda, lúbrica, aprisionada,
para não se perder, nos limites da linguagem
que expressa uma percepção e experienciação violentas
da vida. Séries metafóricas, todas fálicas.
|
Dizem que ninguém
mais sabe fazer uma muralha inca. As pedras talhadas à
mão destra, justas, sem emendas, nem cimentos; ou, pelo contrário,
as mãos é que já nasciam talhadas em
pedra. O que fazer agora do nosso catálogo de hinos
do santo padroeiro, dos desenhos das farinhadas, dos engenhos
da rapadura, caieiras, tijolos, telhas, cal, piões, cumeeiras,
biqueiras — o que mais, meu Deus? — se do sertão, dizem que
acabou, resta apenas um juazeiro com a gente debaixo (INSS) jogando
sinucas?
Não! Não
e não! Quem saberá, daqui mais uns dias, no catálogo
das coisas de comer, notícias de um chouriço,
que era apenas um estranho doce de sangue de porco? Um doce de
sangue de porco? Talvez fosse nossa herança marrana
a desmentir ao mundo a condição de cristãos-novos.
Conceição
Paranhos:
Continua a trabalhar a
lubricidade - o delírio na linguagem - e sobrevém
a queda na tragédia da história.
|
Lubricamente matávamos
o porco: as mãos viajando no quente das vísceras...
Só quem já matou é quem sabe como é. A festa,
os rins do bicho, assando-os ligeiros, afogueando-os ao primeiro
trago. E a matutagem, um ritual de amizades em que metade ou
mais das carnes saíam gratuitas, de puro gáudio,
à certeza da retribuição quando do próximo
porco do vizinho.
Conceição
Paranhos:
Lautréammont conhecia,
como você, este mundo de sangue e vísceras
fumegantes.
|
Falemos agora da sorte.
Sorte de vaqueiros, sorte de leitor. Há de ter sorte para
abrir um livro. Abri-lo na página certa, no poema certo.
De gostar ou não gostar. No primeiro lance, um lance de mãos.
Foi assim que abri este. A esmo. O poema As Horas do Dia.
Comecei pela hora uma:
O dia vai
começando
e diante d'Ele me calo.
No seio da escuridão
se escuta assim um abalo:
toda a caatinga estremece,
pois mais parece uma prece
o primo cantar do galo.
Conceição
Paranhos:
A redenção
operada pelo conhecimento (no sentido bíblico)
da palavra como gatilho das emoções mais fortes, a
partir do ato de abertura do mistério do livro que,
não tenho dúvidas, "cai" em nossas mãos
quando dele mais carecemos e nos ajuda a discernir
algumas das faces da inominabilidade (do "indizível",
como preferiam os poetas do Romantismo, em seu movimento
de streben ins Unendlich).
|
A emoção
me disse que o fechasse imediatamente. Nessa mania de achar
as coisas com as mãos como sói acontecer com os cegos,
Conceição
Paranhos:
Os cegos. São eles
que têm o poder da clarividência, personagens
ou motivos de sub-rogação, freqüentes na
tradição literária / poética, para indicarem
a ruptura com a visão comum, de superfície,
e o ingresso no proto-, prete-, inter-, intra-, super-
e hipernatural.
|
reabro-o, momentos
depois, bem em cima da estrofe da quinta hora, que, noutro canto, um
dia, cantei (Antífona):
Pontualmente,
de manhã
bem cedo, pontualmente:
o sol,
o galo,
a aurora,
a lufada do vento,
a manhãzinha,
o café forte,
a porta aberta.
Mais um entalo. E outro silêncio,
a suspendê-lo só bem depois, para correr, na calma,
o livro inteiro. Um defeito gravíssimo, a droga deste
livro: é um só! Devia ser cem, um cento. Em multi. Sons.
Aboios. Poeiras. Cinzas e memória. Pior é o seu
autor: também único. E os juazeiros fervilhando
de sinucas...
Conceição
Paranhos:
Ah, este entalo! Ah, este
silêncio! Ah, este porque se é "trezentos,
trezentos e cinqüenta" - e o poeta Mário
de Andrade só estava usando um eufemismo ou uma
metonímia - e porque se tem a capacidade de ouvir e
entender estrelas.
|
Ah, meu caro Vergilius
— Nunes Maia ou Publius Maro, tanto faz
—, a legitimidade
do nosso canto é tão-só a sustentar o júbilo.
Se cantamos a vida, cantemo-la como a não-morte; se
cantamos a morte, que seja um psalmo de ressurreições.
Poeta Virgílio,
creia-me, o catálogo das mãos é inesgotável
porque as mãos dos novos hão de garantir as nossas
mãos. Por sobre, sempre por sobre; assim tem sido.
|