A Memória das Coisas:
Ensaios de Literatura, Cinema e Artes Plásticas (Rio
de Janeiro: Editora Lamparina, 2004), de Maria
Esther Maciel, como nos adverte a própria autora em
nota prévia ao livro, reúne ensaios escritos entre
1999 e 2003, publicados esparsamente em revistas e
jornais do Brasil e do exterior. O que permeia toda
a discussão do volume, abrangendo diferentes
universos estéticos de poetas, cineastas e artistas
plásticos, é a utilização peculiar de sistemas de
classificação e catalogação de coisas, idéias e
percepções do mundo, do tempo e dos indivíduos,
partindo, sobretudo, de indagações modernas
particularmente selecionadas e articuladas pela
autora.
Longe de fechar
compartimentos arbitrários nesse maquinário
abrangente da investigação moderna sobre a relação
entre o indivíduo e o mundo, Maria Esther não se
prende a uma escola crítica e, mais que isso, não se
prende a uma linguagem estética apenas, seja a
literatura, o cinema ou as artes plásticas; antes,
mescla essas diferentes percepções e mecanismos de
revivescimento do homem e do mundo, num todo que não
se deseja necessariamente simétrico, nem harmônico,
mas profundamente revitalizado. Nesse contexto, uma
profusão de nomes se inclui e se oferece à
lembrança, à medida que se lêem os ensaios: do
cineasta Peter Greenaway ao artista plástico Arthur
Bispo do Rosário, do escritor Jorge Luiz Borges ao
cineasta Júlio Bressane, do cineasta Helvécio Ratton
ao escritor Haroldo de Campos, do poeta Carlos
Drummond de Andrade ao outro poeta Altino Caixeta de
Castro. Todos eles são trazidos à discussão por um
fio que os identifica: a capacidade, ou pelo menos o
intento, de investigar ou traduzir o mundo. Assim, a
organização dos ensaios está dividida em três
partes: “Inventários do mundo”, “Texto, imagem,
tradução”, e “Do inventário à invenção”, com um
apêndice ao final do livro, em que a autora publica
entrevista concedida a Floriano Martins, para o
Jornal Rascunho, em março de 2003.
Porque as questões são
múltiplas e os ensaios, diversos e abrangentes,
gostaria de me ater particularmente a duas questões
que são colocadas no livro e que, de certa forma,
dialogam com outras que venho pensando e
considerando recentemente. É certo que minha maneira
de enxergar o livro pode soar pessoal demais, talvez
focalizando levianamente apenas aquilo que me diz
respeito, mas ao mesmo tempo, não penso que tudo
isso possa ser diferente, ou pelo menos, muito
diferente. Afinal, estou diante de uma poeta cuja
subjetividade assumida por meio de um “eu”
multiplicado e explícito no poema é, sem dúvida, uma
das marcas de sua poesia. As duas questões a que me
refiro são, enfim, as seguintes: 1) a idéia de que
as ordenações e classificações taxonômicas,
explicitadas principalmente no cinema de Peter
Greenaway são, na verdade, uma ironia e uma crítica
aos próprios sistemas classificatórios da
modernidade, iniciados, a meu ver, com a filosofia
medieval escolástica e perpetuados pelo
enciclopedismo iluminista; e 2) a idéia de que as
coisas se inserem no universo da memória não pela
funcionalidade, mas pela sua capacidade afetiva de
articulações passionais.
Ambas as proposições
merecem uma breve consideração de minha parte. A
primeira delas parece ser crucial ao desenvolvimento
do livro. Maria Esther começa, dando-nos notícia das
peças colecionadas por Arthur Bispo do Rosário,
artista sergipano excluído do eixo intelectual e
artístico do país: negro, pobre e psicótico (passou
50 anos num hospital psiquiátrico do Rio de
Janeiro), Bispo coletou objetos quotidianos de sua
existência como marinheiro e empregado doméstico, e
organizou imenso acervo de sua memória, hoje no
museu que leva seu nome. Convicto de que coletava
cacos de sua vida para o Juízo Final, e de que tinha
sido escolhido por Deus para reconstruir o mundo,
Arthur Bispo do Rosário colecionou objetos avulsos,
como navios de madeira, roda de bicicleta, faixas,
fichários, miniaturas, tabuleiros etc. O gesto é
motivo para Maria Esther identificá-lo com o
cineasta Peter Greenaway, ele próprio confesso dessa
identificação, quando de sua visita ao acervo de
Bispo. Greenaway teria se impressionado com a forma
como ele “parece zombar um pouco com a mania dos
intelectuais de catalogar tudo, de transformar o
mundo em verbetes de enciclopédia”.
O motivo parece
permear toda a discussão de Maria Esther Maciel, em
A Memória das Coisas, partindo, sobretudo, da
filmografia de Peter Greenaway que, como Bispo do
Rosário (porém com consciência estética e intenções
definidas), procura obsessivamente representar a
imaginação taxonômica, ou seja, a necessidade lógica
que tem o homem, e mais precisamente a
intelectualidade, de ordenar o universo e
classificá-lo em sistemas e catálogos que dêem conta
de suas multiplicidades. Esse novo “inventário do
mundo”, ou “museu de tudo”, no entanto, propõe
justamente o sentido oposto daquilo que nele
aparentemente reside: essa exposição de um sistema
classificatório, pensando-se na intenção proposta
por Greenaway, funciona, na verdade, como um
anti-sistema de classificação, como um contraponto
paródico à própria obsessão da filosofia escolástica
medieval (que, como disse, creio ser o primeiro
grande momento moderno de um racionalismo
classificatório de inspiração aristotélica), ou
seja, a reimaginação da taxonomia, por parte de
Greenaway e Jorge Luiz Borges, dentre outros, revive
para nós a tradição humanista que, oposta a qualquer
sistema de classificação, entende que as coisas não
devem ser compreendidas ou ordenadas, mas apenas
trazidas à memória do indivíduo, como proposta de
ressignificação. Não foi por motivo gratuito que o
primeiro Humanismo substitui o termo “nomen”
(“nome”, “denominação”), largamente difundido pelo
nominalismo, pelo termo “res” (“coisa”, em sentido
genérico), ou seja, substituiu o nome pela coisa, a
denominação das coisas pela sua essência. É esse o
legado de nossa filosofia moderna: qualquer
denominação, ou anseio de sistematização, servirá
para nos lembrar que toda catalogação é um fim em si
mesma. Nesse sentido, A Memória das Coisas está
afinado com as agruras e anseios de revitalização do
homem, por parte de um lado da nossa modernidade.
E as coisas, ou
objetos não compreendidos, porém trazidos à memória
como entidades ressignificadas, é o segundo tema que
destaco no livro, como ponto de convergência
(segundo Maria Esther) entre poetas e cineastas,
como Drummond, Altino Caixeta, Júlio Bressane,
Helvécio Ratton. Com destaque ao livro Lição de
Coisas, de Drummond, a autora revela que os objetos
do mundo são vistos, pela poesia, como coisas (no
amplo sentido da palavra) que, destituídas de sua
funcionalidade ou de sua serventia, são deslocadas
para um campo afetivo e passional, na ordem de uma
memória profundamente subjetiva. É o que parece
explicar muito do discurso lírico de O Livro de
Zenóbia, volume de ficção também recentemente
lançado por Maria Esther, e que investiga a
existência poética de uma alma feminina, ao longo de
seus mais de 90 anos. As listas supostamente
guardadas nos cadernos de Zenóbia (nomes de aves, de
cidades raras, de temperos, palavras preferidas e
outras coisas) parecem atestar não a ordenação
catalográfica de uma vida, mas a desordem
angustiante e profundamente sedutora da memória.
Por fim, quero lembrar
mais uma vez que A Memória das Coisas termina com
entrevista de Maria Esther, concedida a Floriano
Martins, em que discutem poesia, alteridade,
referências teóricas, modernidade e outros temas. De
resto, gostaria de me referir a uma frase da própria
autora, bem ao fim da entrevista, e que me parece
uma das necessidades mais urgentes da crítica no
Brasil, sobretudo jornalística, o que serve tanto
para os jornais inexpressivos do interior, quanto
para os de maior circulação: “Sem crítica não há
mobilidade do pensamento. E não se confunda crítica
com a desqualificação sumária do outro, com a
intolerância. O exercício crítico requer também a
responsabilidade ética de entender a lógica do
outro, para então colocá-la em crise, evidenciar
suas contradições e fragilidades. Algo que precisa
ser mais exercitado por nós, intelectuais do
presente”.