José Alcides Pinto, de coração pendido
Depois de longa “volta”, um belo dia, procurei meu velho companheiro de jornal, o César Coelho. Não foi fácil achar-lhe o endereço, que ele, também "sumido", ninguém sabia dele. A festa! A surpresa dele em me saber, assim de susto, metido com poesia, que poeta era ele, eu não. Fôramos, de jovens, companheiros de jornal, Gazeta de Notícias, Fortaleza, Ceará, 1961. Eu, 17, ainda de-menor; César, uns dois ou três a mais; Tarcísio Holanda, nosso chefe de reportagem, e amigo, já de cabelos poucos, menos de trinta. Morávamos, os três, ali para os lados do Colégio Militar, Ruas Dona Leopoldina e Costa Barros, em Fortaleza, CE. Naquele ancestral costume de andar a pé (por falta de dinheiros), zarpávamos os três de lá até a Clarindo de Queiroz, o jornal, praça da Faculdade Direito, póco, póco, póco, e tome assunto! E, quando os deuses permitiam, de nossos bolsos magros, um “pega-pinto”, bem gelado, no calorão da Praça do Ferreira, no caminho. Leitor, amanhã, prometo-lhe, contarei a pé quantos quarteirões, andando, a pé, de lá e cá. Direi também se ainda tem “pega-pinto”, um refresco de uma raiz selvagem. Sumíramos. Tarcísio Holanda mudou-se para Brasília. César continuou nas letras, aqui, jornais. Escapuli-me eu noutras paragens, Recife, Bahia, auditor de profissão, coisa de pouco a ter com poesia. Ou, quem é que sabe?! — de muito a ter. Trinta e muitos anos, notícia nenhuma. — César, sou eu! — Feitosinha! — assim me tratava ele, embora triplo de pescoço e bucho imenso, este aqui, eu mesmo, sob um diminutivo injusto. Até que... o meu amigo, o César, inesperada a ceifeira, inesperado o telefonema do poeta Artur Eduardo Benevides, eu, lá na Bahia, a notícia, o engasgo de que ele, César...! Pois se as letras não me garantirem prazer algum — digo-o apenas por dizer, que os prazeres têm-me sido intensos —, guardarei este: o reencontro com o meu velho amigo César Coelho. E mais este outro: conhecer, através do meu amigo César, este novo amigo, José Alcides Pinto, poeta. — Poeta César, onde é o poeta Alcides? César falou-me de uma certa Vila Cordeiro, nº 8, muito admirado não conhecesse eu o outro, Alcides, o poeta. Arrastamos para lá. Leitor, sabe você o que é ser bem recebido, à altura daquela palavra sertaneja e bíblica, chamada hospitalidade? Mais que festa! As coisas mínimas, mas o coração pendido, fendido. Um coração fêmeo, como fêmea há de ser a hospitalidade. Uma braçada de livros, os livros dele, deu-mos; e, ali mesmo, um a um, em cima da perna, a dedicatória, cada qual diferente da anterior. Para mais! Leu um "papé", dos meus, que os levei, nem lembro quais, que nem vem ao caso, porque o falado aqui é o Alcides, não eu. Contudo, a lhe desdobrar a generosidade, Alcides pegou poema meu, leu bem rápido, juntou com os outros, chutou-os para cima, batendo-os na luz-lâmpada, pra lá e pra cá o abajur, apaga não apaga. Depois os catamos, papéis, poemas, o chão nos olhos à luz que não apagara. Ele pediu para reler. Fez questão de reler. Pediu-os para ficar. Eu disse que sim. E a despedida. De dentro de casa até do lado de fora. Do lado de fora, calçadinha da Vila Cordeiro, nº 8, no fundo da vila, até à calçada da rua. Até o carro, o sorriso amplo. Até sumirem de vista carro, pessoas, coisas. Vivo dizendo-me pessoa de sorte. A estranha sorte de abrir livro dentre livros. A fabulosa sorte de abrir página dentre páginas. O livro, dentre os muitos, João Pinto de Maria, Biografia de um Louco, de Alcides Pinto. A página, por entre páginas, Projeto Rural, um poema, também de Alcides. Li-os, no mesmo trom, assim que cheguei em casa. Liguei, ainda na mesma noite, para o César Coelho. Ele cobrou-me tão-só do proverbial «Eu não lhe disse?!». Sim, dissera-o, a caminho. Na ida e na volta. Repito-o agora, por ele, que já não diz mais; di-lo-ei eu enquanto for servido, Ele. I – PROJETO RURAL Tomo-me de absoluta ternura pelo poema de que me consigo chamar para dentro. Como se fosse o poeta, o ator, o autor, eu, sei lá quem; tal se aquelas coisas ditas pelo outro, eu as dissesse, que, quanto mais me for impossível dizê-las, mais bonitas me dizem. De pura inveja, talvez! Projeto Rural, poema de Alcides, é destes: leio-me, lendo-me nele, sem o talento porém. Cuida o Projeto Rural de uma hipotética viagem do poeta Artur Eduardo Benevides à fazenda Equinócio, à época de propriedade do José Alcides Pinto. Sim, o poeta não há de viajar sozinho. Mas em que transporte? De trem, de ônibus, de automóvel? Segundo Alcides, tão amoroso empreendimento há de ser realizado em carruagem — cavalos, cocheiro, noite, pernoite, portinholas, seio arfante, harpias, Orfeu, cantos e canções da noite. Alcides adverte: Sob hipótese alguma poderá o cocheiro esquadrinhar o interior da viatura. A amada do poeta, nem poderia ser diferente, de elegância plena. Há uma cena de embriaguez, não de álcoois, mas de amor, Ela. Descrever-lhe a beleza? Uma perda de tempo! Trata-se da amada; isto basta! Viajam. Enquanto a viagem prossegue, mais nos céus que nas estradas do sertão seco e luminoso de Irauçuba, o proprietário rural (Alcides) aguarda os viajantes. Ele e seus criados enlouquecidos de velhice, Aprígio e Quitéria, ainda do tempo de Sinhá, morta há quase século, a falarem de novenas, quermesses, santas missões, trens e procissões. Como seria possível concluir, em ponto de partida e de chegada? De pura magia, é claro: “O que mais o preocupa é a data da chegada do amigo, pois está de todo esquecido. Mal acaba de pensar, vê a diligência entrar nos limites das terras da fazenda. A carruagem vem solta, sem comando, trazida apenas pelos animais. O cocheiro está morto ou está dormindo. E não há ninguém no interior do coche. As portinholas batem. O vento as atravessa como um gemido”. Mas quem disse?! Serei eu louco para tentar contar como foi?! Cumpre-me aqui apenas o silêncio — selah! Porei minha mão sobre a boca, disse Jó (40, 4). Vá você, meu caro leitor: está o Projeto Rural intacto no seu Jornal de Poesia! O resto é de sua conta. Por seu favor, leia-o, diga-nos.
II – João Pinto de Maria, É um livro quase magro, pouco mais de cem páginas, se tanto, bom de abrir, melhor de ler. João Pinto de Maria, proprietário rural, o armazém de cera de carnaúba, a usina de algodão, a máquina a vapor, da fábrica, polmando fumaça, apitos, correias e transmissões, vide Ode Triunfal, de Fernando Pessoa. Inclusive o acidente (falta de rezas, disseram na cidade) o braço do operário. Tudo superlativo. João Pinto é o progresso em pessoa, mas, ao mesmo tempo, a sovinice em grau absoluto. De louco, assim me parece, João Pinto não tinha nada. De tão sábio, isto sim, todos tinham-no por louco. Não me atrevo a dizer que João Pinto fosse sovina. Andava maltrapilho apesar de rico? Qual é o problema? Vá ver, não gostava de vaidades, roupas, carros, grifes, França e Bahia. Ainda que maltrapilho e comendo pobremente seu feijão com toicinho, João Pinto de Maria, em suas fazendas os bodes apodreciam os chifres de tão velhos. Em vez de vendê-los e, argentário, entesoirar ouro e prata, preferia-os velhos, caducos, esquecidos das cabras e do aprisco. Assim os bois, assim os homens de João Pinto, assim as coisas de João Pinto, assim o próprio João Pinto... envelhecendo... imperturbável e calmamente. Se assim é que bom? Duvido não! Um destaque à cena de João Pinto ainda menino, a compra na feira de meio cento de laranjas e, a partir dela, a construção de um interior inabalável. Alcides conta que João Pinto conseguira surrupiar seis laranjas enquanto o feirante distraía-se. Em casa, ao contá-las, constatou que, em vez de 56 laranjas, continha o cesto apenas 50. Bom, fecho e desfecho, por favor, meu caro leitor, desta e de muitas outras, tenha-os você, de puro encanto. João Pinto de Maria, Biografia de um Louco, em edição primorosa (Topbooks), faz parte da Trilogia da Maldição, nas melhores casas do ramo.
III – José Alcides Pinto, Contaram-me as histórias de Alcides Pinto. Mais pelo prosaico, o anedótico, do que pelo criativo de sua poesia altíssima. A tal maldição, a maldita ênfase a uma suposta maldição, que nunca vi em Alcides. O poeta escreveu um livro de demônios? Sim, mas nada a ver com demônios! Pelo contrário, o demônio ali é só moldura, vide Jornal de Poesia, entrevista a três poetas goianos em que comento tema semelhante, o mal como ornato do bem, em Eça de Queiroz, em O Crime do Padre Amaro. Em Cantos de Lúcifer, Alcides Pinto dá uma surra que não tem tamanho no demônio: Pobre satanás! Pertenço ao reino de Cristo. Perdeste uma grande alma, apesar de toda a tua prudência. Poeta maldito? Tenho, com todo respeito, que isto de ver maldição em Alcides é não estar à altura da escritura de Alcides Pinto. Pelo contrário, Alcides é místico, mítico, sertanejo. Em João Pinto de Maria perpassam nossas lendas (Ibéria, África e pré-Brasil) intactas. Também as pragas do clero, as temidas Santas Missões, contra os amancebados. Ah, poeta Alcides, uma mancebia...! Nada contra, por seu favor. Dia destes, fui à casa do poeta. Jamaica, a filha, me disse: «Foi ao São Benedito». Perguntei quando voltava, imaginando a cidade de São Benedito, mais de cinquenta léguas, na Serra Grande, fronteira com o Piauí. Ela disse: «Não! É aqui, na outra rua, a igreja de São Benedito». Alcides, maldito? Pois estava ele, de pleno fervor, na adoração perpétua do Santíssimo Sacramento que até poucos dias, 24 horas do dia, noite e dia, chuva e sol, todos os dias, naquela igreja. Era a farra dos assaltantes... os fiéis orando... Não resistais ao perverso. Fechou. Há o lance de uma fase frade, o hábito marrom, de frei franciscano, do Canindé. Durante bem uns três anos, Alcides trajou-se de frade, cordão e alpercatas. Ninguém acreditou em devoção. Primo meu, poeta e também amigo dele, Juarez Leitão, conta histórias safadíssimas daquele monge, o Alcides. Mas isto é assunto para outra cerveja. Contaram-me da demissão do poeta do cargo de professor universitário. Indaguei se por conta de alguma subversão. Não! Nada a ver. Melhor que fosse. Tal como o Cony, estaria milionário, agora. Pois o poeta, um belo dia, compareceu ao Senhor Chefe e disse: — Pronto, chefe. Vim-me demitir. Vou criar bodes! — Criar bodes? — Sim, bodes! A poesia. Lá no sertão. — Ah, bom. Assine aqui. Assinou. Era de brincadeira, aliás, um desvario. Os poetas têm o coração frouxo, ainda mais frouxa a separação do dia para a noite, da noite para o dia. Do contrário não seriam poetas. O chefe, "chefe". Racional. Chefe! Chefoso. Demonioso. Assine aqui! Era amigo. Amigo?! Um filho da p*. Perdi o nome. Não gastarei minha tinta com gente ruim. Deveria ter recebido o papel assinado. Para dentro da gaveta. Hoje seria só relíquia, guardado. Mas é pesadelo. Mínimos. Demitido. E ausência. Mínguas. O olho da rua. Professor universitário. Concursado. Fiz, em 4.4.1996, poema engolido a seco. Rasguei. Guardei este pedaço. No original, o nome do peste, que apaguei; morreu. Morto:
Ilmo. Sr. Diretor:
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Este, o 11º capítulo de Poética, um livro vivo, aberto, gratuito,
participado e participativo, cheio de comentários que, a rigor — esta,
a proposta —, os comentários, mais importantes que o texto comentado:
abrir o debate, uma multivisão.
— Livro vivo, como assim? — Porque em permanente movimento, espaço aberto a quem chegar, tão amplo como o espaço àqueles que aqui estão desde os séculos, todos em absoluta ordem alfabética. Seja bem-vindo! POÉTICA: Capa, prefácio e índice poemas e poetas comentaristas
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Comentários:
JUAREZ LEITÃO:
Chico, primo: .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
MARCIO CATUNDA:
Querido Poeta, .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
MARIO CEZAR COIVARA:soares feitosa .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
RONALDO COSTA FERNANDES:Meu caro Feitosa, .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-. |