O Prisioneiro

Trouxeram-me a prisioneira ao interrogatório.

Recusei-me às perguntas porque as respostas
estavam ao passado. Sequer o futuro
se lhe indagou; que também recusou
perguntar, quando os carrascos lhe disseram:

           — Pergunte o que quiser.

Ela apenas balbuciou:

           — Eu sei.

Mentíamo-nos,
porque jamais nos víramos.

Decretei a prisão imediata de todos os carrascos.

Mantive a prisioneira sob algemas,
que ninguém é louco de manter
tesoiro tão rico ao léu;

mas, prudência maior,
soltei-lhe os braços e mudei as algemas
aos meus próprios pulsos.

Ela —
os gestos diziam que me seriam
sob afagos.

Deixei:
apenas que os olhos, os cabelos úmidos

— Os meus? Os dela?

           Era o chamamento.

 

Fortaleza, noite, 11.12.1999

 

Der Häftling

Man brachte mir die Gefangene zum Verhör.

Ich verweigerte mich den Fragen, denn die Antworten
richteten sich an die Vergangenheit. Auch nach der Zukunft
fragte man sie nicht; die sich ebenfalls weigerte
zu fragen, als die Henker ihr sagten:

           — Frag, was du willst.

Sie stammelte nur:

           — Ich weiß.

Wir belogen uns,
denn wir hatten uns nie gesehen.

Ich befahl die umgehende Inhaftierung aller Henker.
Ich liess die Gefangene in Handschellen,
denn niemand ist so verrückt, und lässt
einen so wertvollen Schatz frei ziehen;

doch, mit noch größerer Umsicht,
befreite ich ihre Arme und legte
die Handschellen um meine eigenen Handgelenke.

Sie —
die Gesten sagten mir, dass sie
Zärtlichkeiten für mich sein würden.

Ich liess zu:
dass nur die Augen, die nassen Haare

— Meine? Ihre?

           Das war der Ruf.

 

Fortaleza, nachts, 11.12.1999

 

Marcel Vejmelka
marcel@vejmelka.de

 

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Este, o 16º capítulo de Poética, um livro vivo, aberto, gratuito, participado e participativo, cheio de comentários que, a rigor — esta, a proposta —, os comentários, mais importantes que o texto comentado: abrir o debate, uma multivisão.

— Livro vivo, como assim?

— Porque em permanente movimento, espaço aberto a quem chegar, tão amplo como o espaço àqueles que aqui estão desde os séculos, todos em absoluta ordem alfabética. Seja bem-vindo!

POÉTICA: Capa, prefácio e índice poemas e poetas comentaristas

 

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Comentários:

ADAIL SOBRAL:Este livro, a caminho da gráfica, mandei voltar. Simplesmente fundador este comentário, desaparecido em maio aos “esquecimentos” porque passou o “Jornal de Poesia”. Desculpem-me. Vejam:
Caríssimos listeiros (1),
Acabo de receber, envio do Soares, a Iracema facsimilar, primeira edição de 1865, belamente ilustrada pela Côca! (2)
Trata-se de uma ira-sema, posto que facsimilar, e porque cheia de semas, cenas, ira santa, santa iracema alencariana, termo que lembra “alavanca”. A disposição da obra na página é um ícone como os bizantinos, sem a conotação ideologicamente marcada, e muito injusta, de bizantino como coisa ruim! Esses ícones são uma manifestação da presença real da divindade, daquilo que a católica ocidental substituiu pela celebração epidérmica, claro que com exceções.
A figura feminina que encima a capa, a disposição na página, que ocupa uma pequena mancha, reforçam isso: a obra vem “contida” em seu suporte físico. “Sustentam” a capa as inscrições “Oficina...” e “imprensa...”. A figura da contracapa me sugeriu um movimento intenso, ação que, por não ter fim, nem por isso é menos completa em seus estágios, alçando-se ao infinito (aliás, será que a pertinência intensa, aceita, visceral, ao plano local facilita paradoxalmente o alçar-se ao infinito, ao global, trazendo-o por assim dizer para dentro de nós?). Vi ali o Ceará, que não conheço no físico, mas no emocional e intelectual que me trazem o Soares, o Virgílio, a Côca, o Diatahy etc. e, no genético, meu pai cearense filho de coroné que quase me deu ao irmão major pra criar, para aumentar as chances, pai que, junto com a mãe, me pôs Adail no nome “pra ele ficar na frente”, esquecendo-se, em seu zelo, de que adail, adalides, é o navio de guerra que recebe os primeiros blasts, balaços.
Mas que minha vida tem sido, no sentido chinês, interessante, não resta dúvida. I have had more than my deserved share!
Tenho sido agraciado para além do merecido! Aliás, lembro sempre que graça vem de gratia, de graça, dado, e não comprado com chantagens à divindade, ou com a lisonja, mais própria de quem quer fazer as vezes de Deus.
A ilustração da contracapa tem cara de intrusão, de algo que “não tem nada a ver”, de inconcebível no contexto. No entanto, situa o livro facsimilado no Ceará, seara, semeion, semente, sêmen de tanta coisa bela. A figura é uma rede, e a mulher da capa é o contrário de uma lenda do Ceará, e me lembrou da Frô e das outras mulheres lendárias daqui da lista.
A intertextualidade: a figura que é escultura comentada em poema do Virgílio, que desvela seu intenso lado feminino, andrógino, e é retomada pelas figuras falsamente ingênuas da Côca, que mostram o masculino da mulher, sua força de eterno feminino ao lado de inferno feminino, sine qua non do encanto!
Intertexto retomado desde a uroboros do começo ao infinito da contracapa (e não é a uroboros o infinito mesmo, nossa condição humana de morder a própria cauda, coda?).
Isso me fez ver também nas figuras da Côca, que nada têm de coke, choke, as figuras mexicanas de anjos católicos com rosto de inca, a presentificação tomando o lugar da representação do colonizador, uma antropofagia sem Bispo Sardinha (o que ele queria, com todo esse nosso litoral, se se chamava Sardinha?)
Vi totens, Levy-Strauss e o mapa das histórias de lince, as figuras grotescas, isto é, anti-ordem ditatorial de não me toques, figuras de que falou com admiração Baquitim, o Baquitão no dizer do Soares.
Para completar a emoção lítero-gráfico-musical-pessoal, o curumim sem nome, eu mesmo, confesso: era assim que meu pai me chamava! E o símbolo do Giordano, o “médico de livros”, arqueólogo da palavra, que vi um dia em missa de sétimo dia de um padre que confessava: a Cia de Jesus veio para cá cumprir as ordens da Coroa portuguesa! Esse Giordano arqueólogo da memória literária do país, imperador Cláudio do livro.
E se tudo isso não bastasse, a Edições Cururu (sapo que não é sapo, e lembra curu-mim, mim curumim), “ataca” outra vez: “Dos Sapos e dos Livros – Três Pequenos Enigmas” (e que enigmáticos!) (3) O rosto, o rosto, da menina afegã, da acuada condição humana, do terror e da força. Os recortes que o Soares faz na foto são tomografia visual expressiva: destaque de muitos ângulos presentes naquele olhar.
O prisioneiro (4) da uroboros que é a mulher, o Soares admirador (sem crítica genética) do feminino, poema curto e profundo, narrativo, cuja real história/estória não está nas marcas, mas nos sulcos que deixa. O “recusei-me”, ao lado do título, tira o suspense, mas cria uma atmosfera fantástica.
Lembrei o Paraíso perdido do João Milton, que quando li a primeira vez não tinha como entender, mas que criou emoções de que a leitura “entendida” posterior se beneficiou e muito, como ocorreu com o Ser e o Tempo do Heidegger, poema puro, jogo etimológico (e mesmo ilógico e em outro sentido, dado por seguidores, perigoso: parece dizer que haveria um sentido originário a ser descoberto).
Oficina do livro lembra o sapateiro do exemplo do Heidegger sobre o que está só presente e o que está inserido como presença na copresença de todas as coisas que formam um sistema), joão mil-tons, o joão da queda ao inferno, única a permitir entender o céu e recusar sua apropriação: o que seria de Deus sem seu outro, que lhe mostra a parte obnubilada dele? Faz sentido um Deus sem o adversário? Que na África é antes o embusteiro, o brincalhão, sem esse mal que lhe atribuíram e que não se assemelha em nada ao mal que causam hoje a 25 milhões de africanos portadores de AIDS! Lembrei-me do Jung, que disse “o que seria de Deus sem nós para o reconhecermos?”. Lembrei-me de mim ao dizer à mãe que tinha direito de errar, na época sem saber que errar tinha duplo sentido, que era vago, vagar, mas eu só via o antiacerto.
E esses comentários fecham, abrindo, o círculo de meu comentário que vem no papé 2 das Cururu, “Dos Sapos...”, em que eu defendia uma subjetivo-objetividade, um “objeito”, fusão objeto-sujeito da impossibilidade de realizar o sentido (tema de um texto que vou mandar pra minha página no Soares, junto com “Pássaro Provisório”, “Poemas Esparsos” e “Poemas da Maturidade”, com alguns outros ensaios, como o sobre o sujeito, sobre o autor, sobre a polêmica em Bakhtin, textos que meio que se repetem, mas sempre de outro ponto de vista, e quem sabe um sobre o “parasitarismo” como mecanismo de solapamento, sapocururuamento de discursos consolidados, sem entrar em polêmica aberta pra não ser calado antes mesmo de falar, tantos planos, ímpetos de fazer coisas, mas com textos sobre globalização para traduzir!).
Tenho de parar, pois não conheço domingo nem feriado há meses! O livro vai ser devidamente entronizado entre as coisas que desejo que queimem junto com meus restos para que a cremação seja gloriosa. Lançado no mundo, gemi, e será que dele sairei aos gritos ou na calma que o Soares aspira a ter antes mesmo de ir? As coisas a ser queimadas parecem matéria, mas são mesmo matéria no sentido de “a matéria de que são feitos os nossos sonhos” (Chico Pires na cabeça, ô mermão!). (5)
Abração a todas e a todos.
Adail

1. Listeiros: à época, 2000, por aí, a lista LITTERATURA, assim mesmo, com dois “ts”, tinha igual não. Maria Frô, era a “dona da lista”, fantástica.

2. Côca, escultora, esposa do poeta Virgilio Maia, vide “Estudos & Catálogos – Mãos”, comentado por Adail, pág. 63.

3. Dos sapos e dos livros – três pequenos enigmas, neste livro, página 205, também comentado por Adail.

4. O Prisioneiro, também neste livro.

5. A menina afegã, este ensaio de Adail, acima.

6. Chico Pires: Poema PSI, A PENÚLTIMA, em livro do mesmo nome. Uma raposa enlouquecida da sede e da fome, Seca do 93 (1993), pergunta ao seu salvador se o nome dele seria Chico Pires. Sim, Chico, de Francisco, do nome do santo do Canindé; e Pires, onde se coloca o lume, a luz, o fogo para queimá-la (?!), um diálogo muito tenso. Sim, a raposa ganha a parada.

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ANGELO BRUNO:Poeta Soares Feitosa, recebi há já um tempo os seus “papé”, algumas obrigações, porém, retardaram-me o envio deste comentário. Fantásticos os seus poemas, criam uma espécie de imagem, feita, tecida palavra por palavra, e que, ao menor toque, parece desfazer-se. Aquele “O Prisioneiro”, principalmente, chamou-me a atenção. A simples frase, “era o chamamento”, cria um espaço escuro e criativo, do qual cada leitor tira a sua conclusão, ou “desconclusão”.
Maravilhoso. Ângelo Bruno

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DAVID S. ALMEIDA: Caro editor, antes gostaria de parabenizá-lo pelo excelente trabalho que produz. Tenho 24 anos e não me canso de “viajar” nele prazerosamente. O fato é que “me apaixonei pela culpa”. Calma, vou explicar melhor. Na verdade sensibilizei-me com “O Prisioneiro”. Belíssimo poema! Foi escrito na noite de 11/12/1999 em Fortaleza – quisera eu estar lá agora. Tempo e lugar. Mas, já que não me atreveria a questioná-lo sobre sua musa inspiradora naquela noite daquela praia… Apenas peço que me informe o nome do autor do quadro que ilustra o link que, no site, leva ao “O Prisioneiro”. Perdoe-me se sou inconveniente quando persisto. O fato é que estou “prisioneiro” da arte e preciso de um advogado poeta! “A culpa”, aquela ilustração iluminada pelo texto de “O Prisioneiro” – no “Jornal de Poesia”, louvado seja!! – realmente me fascina. A combinação do texto e da figura provocam em mim rara sinestesia.
Por isso gostaria de potencializar tal sentimento atribuindo-lhe significado ainda maior com uma “tattoo”.
O termo “tattoo” é uma prosopopeia, isto é, representa o som – “tau-tau-tau…” – produzido pelas pequenas varinhas de bambu usadas por tribais para marcar definitivamente o corpo dos seus. Estranho ritual!
Será apenas mais uma tatuagem para os outros, mas, pra mim, terá profundo significado. Com isso carregarei comigo a culpa, consciente de sua existência e profundidade; na memória levarei comigo, pela eternidade, o significado de “ser prisioneiro” e, assim, terei elementos para valorizar suficientemente a liberdade a ponto de poder cumprir o meu mister. Serei – com a graça de Deus – representante do Ministério Público, uma instituição humana que traz ínsitas virtudes que sei, posso cultivar. Mas não sem arte! Meu problema é o Direito, mais uma vez (ingrata ciência!).
Não me sentiria bem em reproduzir em meu corpo arte alheia sem a aquiescência do legítimo autor, salvo se se tratasse de obra de domínio publico, ou seja, “mors ultima linea rerum est”. Espero que tenha me feito compreender!
Aliás, conheço o “Jornal de Poesia” há mais ou menos dois anos e nunca havia atentado para a sua profissão, advogado tributarista. Sempre lhe imaginei poeta! Mas saiba que além de toda minha admiração você goza, agora, de todo o meu respeito. Tenho perfeita consciência de quão difícil é perlustrar com êxito tais mares. O leviatã (ou Estado) é um poderoso guerreiro, um astuto inimigo. Rezo para que sejas vitorioso em suas batalhas!!!
Assim me sinto muito mais à vontade lhe escrevendo. No primeiro e-mail não lhe revelei minha grande paixão, meu eterno desafio, o Direito e seus consectários: a ética, a moral, as virtudes, a religião… Grandioso conhecimento! Peço a Deus diuturnamente para que me faça capaz de alcançar-lhe… Apenas peço, amigo poeta, isso é verdadeiramente importante pra mim, que você me responda e dê notícias do autor do quadro, se está vivo ou morto, diga-me, caso esteja vivo, com base no conhecimento que tens de teu amigo, se este se importaria com o fim que darei a seu trabalho… E, se isto tudo não for possível, escreva-me e diga-me um pouco mais sobre a culpa.
Com imenso prazer, David

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FERNANDO ALVES SALES: Caro Soares: É uma grande satisfação encontrar, a esta altura da História, um otimista. E muito mais, um homem-de-ação. Parabéns, meu caro. Concedo-lhe minha admiração e meu respeito.
Doutro modo, falando já da sua própria arte, destaco especialmente “Convite à Flor”: som e sentido em fusão única. Não nego um primeiro estranhamento e preconceito pelo que chamo muito ousadamente de: “facilidade dos versos”. Passado e lido, chamo isto agora de sutileza. Sutileza é essência da poesia, poeta*.
Um cronômetro para piscinas, o mesmo. Agora “O que o tempo há de querer” é espantoso. Você fez o suco, triturou a casca depois, não sobrou mais nada! E deu da graça aos amigos. Primor. “O Prisioneiro”, romantismo, amor, além dos olhos, da lei, da sociedade: o recôndito, inefável. Desculpe se sou breve, estes dias não têm sido bons.
Abraço, prazer,
Fernando Alves Sales
* Linguagem, estilo completamente próprios.

JOSÉ ALCIDES PINTO: Ao gosto da verdadeira poesia, ou da arte poética, Soares Feitosa, inventor solitário e consciente de sua missão na literatura, recria seu universo poético do nada, como Deus criou o mundo, onde nada falta – da alegria da vida à tristeza da morte – extremos onde flore a felicidade e o amor.
Com o conhecimento prévio de todas as coisas, do que existe e do que inexiste, imprime ao texto poético uma dinâmica singular. Seu trabalho em constante mutação enriquece sua poesia e a distancia dos poetas de sua geração. A palavra necessária, em seu emprego adequado, corrige as distorções e os ledos enganos daqueles que pensam que fazer poesia é arrumar colunas de palavras como quem faz uma construção para nela se proteger da intempérie. Não é esta a segurança que SF procura, ante a certeza e a dúvida de que tudo que nos corre o perigo de desabamento e da destruição, menos o amor.
Do amor premonitório. No inabitável, no inacessível, no incomensurável onde as matérias da alma humana se perpetuam para cantar esse imenso amor, pediu o nosso poeta uma inspiração divina, e de joelhos, sim, e iluminado, profeta de fronte erguida para o céu, contemplou a estrela mais brilhante, ou cá na terra, de ouvido atento, o chilrear dos pássaros, a buscar o trino mais sonoro e mais doce para aproximar-se do regato de sua deusa-amante.
Poeta marcadamente cristão, mas também com as nódoas do pecado impressas na pele, ei-lo dele cativo e escravo a inspirar penas e cuidados, próprios dos amantes apaixonados, como dizem Camões e Pessoa. Mas SF precisa da forma clássica do verso livre, moderno, para alcançar o objetivo desejado – decantar o amor que lhe fere o peito. E assim armado de metáforas audaciosas, símbolos e signos significantes, senta-se à sua escrivaninha e escreve os versos mais belos que possa imaginar.
Esse descobridor de imagens e de ritmos estranhos, na musicalidade dos sons e das cores, levanta o simbolismo de sua escrita e reconstrói nossa poemática, dando à mesma um sentido mitológico universal, tal Dante e Virgílio, Camões e Pessoa.
Soares mergulha na essência da história e descobre o sentido do verdadeiro e inatingível amor –amor eterno dos mitos que cria de sua fecunda imaginação e que a nada é comparado, posto que é do encanto de sua mente prodigiosa que se origina e o toma por inteiro, corpo e alma, floresce, vive, cresce, se expande ao vento, abarca o mundo e o alanceia.
Este amor está nas páginas dos dois últimos poemas que escreveu, recentíssimos, e que trazem os títulos NUNCA DIREI QUE TE AMO e O PRISIONEIRO, obras primas da literatura da língua portuguesa. Falar é fácil, inscrever esses poemas na mente do leitor é que é difícil, porque o inefável jamais se apreende pelos sentidos, mas pelos sonhos.
Para que o paciente leitor não saia desta resenha de mãos vazias, tentaremos mostrar o que não se mostra, dizer o que não se diz, porque as composições de Soares Feitosa, as composições de Soares Feitosa de que já falamos acima são para senti-las. Sugestões de leitura que cobram do leitor toda atenção e sensibilidade ao melhor entendimento de seus versos. Veja no NUNCA DIREI QUE TE AMO: Sem nenhum aviso,/as sardas de um rosto, vieram as sardas/ e eram notícia de uma navegação morena;/ uma voz rouquenha, como se abafasse/ o grito súbito sobre este porto/ de nenhum aviso.
Ficamos só nesta primeira mostra, pois já nos assalta o desejo de transcrever o poema por inteiro, tal o fascínio, o sortilégio e a magia de que estamos possuídos. Por que o dilema? O que nosso poeta esconder ou querer evitar seu idílio amoroso? Talvez seja escusável dizer do secreto ciúme que permeia a beleza de sua amada, já que essa traz sem nenhum aviso as sardas de um rosto, que eram notícia de “uma navegação morena”. Veja bem o leitor a originalidade da metáfora. E o poeta continua em seu mistério e em sua secreta confissão. Deixemos o intérprete em suspense, perdido nesse labirinto de emoções, mesmo porque não podemos desvendar o mistério da transcendência de seus versos. Abandonemos o poeta que não nos abandona e passemos ao outro — talvez o mais belo dos dois ou quando já escreveu Soares Feitosa desde o seu livro de estreia, “Psi, a penúltima”.
Não sei nem ninguém saberá como ele escreveu “O Prisioneiro”, poema do que nos ocupamos agora, não parece obra do ser humano, tamanha a inefável beleza que porta, o que nos faz lembrar Rainer Maria Rilke, quando diz que alguns versos dos seus “foram ditados por um anjo”: Vamos a um trecho de “O Prisioneiro”: Trouxeram-me a prisioneira ao interrogatório./ [...] Decretei a prisão imediata de todos os carrascos./ Mantive a prisioneira sob algemas,/ que ninguém é louco de manter/ tesoiro tão rico ao léu;/ mas, prudência maior,/ soltei-lhe os braços e mudei/ as algemas aos meus próprios pulsos.
Pressupõe-se que esta peça a que nenhuma outra iguala em nossa literatura, tenha sido mesmo “ditada”, o que nos leva a crer, verdadeiramente, que algum sopro divino conduziu o pensamento no poeta em estado de graça. O poema acontece num clima sobrenatural, num diálogo consigo mesmo, num prisma de encanto.
Não revelaremos o epílogo, nem saberíamos como fazê-lo. Cabe ao leitor inteligente e sensível imaginar, somente imaginar, o desfecho de tamanho enigma. JAP

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