Uma pequena aula de música

 

O Profeta tomou-se de um ar mais grave e contou que, um dia, era uma vez um coronel, não aquele ali (desta cela), mas outro, lá das bandas dele, Nordestes, Ceará, trecho geral Monsenhor Tabosa—Nova Russas.

Disse que aquele outro coronel, Verolino Rodovalho, era muito brabo, como todo coronel, mas de família muito religiosa. E que, embora homem feito e poderoso, já no grau de prefeito e interventor, mantinha pela mãe, miudinha, valente e rezadeira, tal qual a mãe do nosso Coronel daqui, um respeito absoluto e total obediência.

E ele, tal e qual o senhor Coronel – e apontou para o comparsa –, muito gostava de um rabo-de-saia, tanto que se enrabichara por uma cabrocha nova, de uma das muitas fazendas, Canafístula, naquele tempo.

Contou que Verolino estava tão enxodozado para o lado da rapariga nova que estava a ponto de largar a casa, os filhos e a mulher legítima, assim como dizíamos no tempo antigo – legítima –, mas nem dizemos mais porque hoje todas as mulheres são legítimas.

A mãe, vendo o desembesto, chamou os outros filhos (irmãos de pai e mãe do coronel), três homens feitos e uma moça solteira, e lhes contou o desgosto. Eles disseram numa só voz, como se estivessem combinados, que ela não se preocupasse que, de noite, na hora da ceia, quando ele chegasse para tomar a “bença” à mãe como todos os dias ele chegava, exceto quando ficava na casa da rapariga, eles, os irmãos e a irmã se atracariam com ele, dominando-o, quando então ela, mãe, lhe aplicaria um corretivo.

— Uma surra no coronel? No prefeito-interventor? O senhor tem certeza?!

— Claro! Era a nossa lei!, lá no sertão de antigamente. Uma lei justa! – disse o Profeta.

De fato, mal o coronel Verolino chegou para a "bênça" da mãe, os irmãos saltaram-lhe no cangote, um grande siribolo; a irmã já lhe passava um laço pelos pés — ufa!, conseguiu. O coronel estrebuchou como se fosse um bicho-brabo, no que a mãe, uma anciã fraquinha e mirradinha, só na aparência, porque uma mulher tão terrível quanto a parteira aqui presente, disse ao filho poderoso:

— É porque seu finado pai foi chamado ao seio de Deus, seu cabra safado!, se não ele quem lhe daria este corretivo!

Ela subiu num banquinho, abriu a arca e retirou o cinturão da farda de gala do finado. E, vergastando-o com toda a força: «Tome! Para você aprender a honrar a casa dos seus filhos, cabra safado!»

Deu, no total, três boas lapingonchadas no coronel Verolino com o cinto do finado. Três! Disse que era o número dos anos sofridos de Cristo, mas da próxima (E não me haja uma próxima vez!) seria a idade completa do Crucificado, 33 lapadas com o mesmo cinturão do finado. «Pelo lado da fivela!» – gritou bem alto a anciã.

O assombroso é que o finado pai do coronel Verolino nunca bateu num filho. Ela quem batia e, quando batia, dizia que batia em nome do marido. Agora, bate em nome do morto! Ah mulher feroz!

Os irmãos desataram o coronel. A mãe, ainda trêmula, veio para perto e o beijou. Perguntou se ele estava bem. Os irmãos também. Ele disse que sim, apesar de que dera três grandes esturros a cada lapingonchada, justo porque se não berrasse convenientemente, o silêncio haveria de ser tomado como desrespeito à mãe, igual a esses moleques taludos quando a gente lhes dava (hoje? Pode mais não!) um piparote e eles saíam zombando: Nem doeu!

Os berros do coronel Verolino Rodovalho acordaram toda a cidade e reboaram de sertão afora, a ponto de serem ouvidos lá nas barrancas do Rio Macacos, ao sopé da Serra das Matas, onde o nosso Coronel, ainda menino-aprendiz, os escutou e respondeu no estilo. Dois lobos ganindo na planície gelada não teriam feito melhor! – Concluiu o Profeta. E se benzeu.

103 - O outro Coronel despacha a cabrocha e morre de morte matada

Camundo contou que o coronel Verolino no outro dia viajou para a Canafístula a fim de despedir a moleca. Em lá chegando, mandou chamar o pai dela e lhe entregou uma ordem ao capataz das fazendas de Castelo do Piauí a lhes dar todo o apoio, um pedaço de terra e umas cabeças de gado. E assim foi feito. Se o coronel despachou a amásia para bem longe a fim de visitá-la, a salvo do corretivo da mãe, isto ninguém nunca soube, mas é provável que sim.

O fato é que, no retorno, Verolino ainda padecendo de grande tristeza porque esses assuntos do coração não são fáceis de desatar de uma hora para outra, achou por bem passar na casa do compadre e seu antigo vaqueiro, Aurélio. O que o coronel não sabia é que o tal compadre também andava enrabichado para o lado da Valdinha – ah moleca perigosa, aquela Valda! E bonita.

Verolino cometeu a besteira de contar o ocorrido ao Aurélio que, tomando-se de ciúmes, quando os cavalos se emparelharam na descida de um barranco, com o de Verolino ligeiramente à frente, enfiou-lhe, sem uma palavra, o punhal até o talo nas costas, com tanta força que varou do espinhaço para os peitos, lá nele.

No ato em que Verolino tombava sobre a lua-da-sela, a ponta do punhal atingiu de leve a cernelha do alazão que, assustado, esquipou. Verolino caiu.

O cavalo ainda correu uma boa distância. Aurélio enfiou-se de mato adentro, rasgando-se todo no garranchal.

O cavalo do coronel (ah cavalão majestoso!) retornou para o dono e ficou ali, junto dele, por um bom tempo. Depois marchou até a casa próxima, quando os moradores entenderam que aquele cavalo, sozinho, sem o coronel em cima, estaria a indicar desgraça. Acompanharam-no, e lá estava, numa poça de sangue e terra, o dono dele, o coronel Verolino Rodovalho, o punhal ainda cravado, quente, aqui, lá nele, das costas ao peito, morto.

104 - Pendularam o matador de parede a parede

Rapidamente a cabroeira do morto, a mando da mãe, dos irmãos do morto e de toda a cidade, deu conta de achar o matador (Aurélio), lá dentro dos matos, todo rasgado. Uma surra atrás da outra; afinal, ele matara o compadre pelas costas.

— Aurélio aguentou tudo sem dar um pio! – Disse o Profeta.

Contou que levaram o matador para a delegacia, sempre debaixo de peia. Trespassaram uma corda bem grande, de couro cru, na cumeeira da delegacia, uma casa antiga, muito alta. As pontas da corda foram amarradas nos pés de Aurélio, ele assim dependurado, de cabeça para baixo, a uma boa altura do chão.

Os cabras revezavam-se em arremessá-lo contra a parede, com bem força, vá-aa-ápo! Só se ouvia o estrondo daquele cristão, indo e voltando, como um badalo, de uma parede a outra, o reboco a se desmilinguir com as pancadas, dele, o rosto. Contudo, debaixo de todo o sofrimento, Aurélio não reclamou palavra.

O silêncio de Aurélio era tomado como provocação para novos arremessos, cada vez mais fortes. Rodavam-no na corda, às tapas. Depois desfaziam o giro, e Aurélio, novamente às tapas, como se fosse um corrupio em grande velocidade, até ficar tonto. Não! Nenhum gemido. Ele nunca gemeu.

O problema é que Aurélio, tonto com o rodopio da corda, não enxergava a parede, a defender-se com os braços na hora de bater, e batia direto com o rosto, com os dentes, com os rins, com as orelhas, com as costas, com os ombros, novamente com a boca, com a testa e com o nariz. Sangues. Os cabras paravam o giro e esbofeteavam-no na face. Ele, como se fosse o Cordeiro de Deus, Aurélio não dava um pio.

Reclamei ao Profeta que o assassino, de um crime à traição, logo contra um compadre, não devia ser comparado com o Cordeiro de Deus. O Profeta não se perturbou e disse que os carrascos tiveram que soltar a vítima porque chegara um telegrama do promotor do Ipu, determinando que o levassem para lá. O delegado de lá mandou prendê-lo, mas garantiu que o mandaria para o hospital, de trem, em Sobral.

Antes porém, os cabras do coronel morto invadiram a delegacia e sequestraram o preso. Fizeram-no voltar de trolete e, no caminho, uma viagem longa, sob o sol quente, novas surras. Sede, muita sede, era uma seca braba e, para agravar, arrancaram-lhe a camisa para mais sol e sede.

Aurélio sempre calado, a não ser quando implorava por água, só por gestos. Então, um cabra aproximava-lhe a cuia, mas quando os lábios trêmulos estiravam-se para beber, o cabra derramava-a sobre si mesmo, encharcando-se da cabeça aos pés, ou refrescava os companheiros; no final, jogava os respingos da cuia na direção de Aurélio, sem atingi-lo todavia, porque naquela sede até mesmo alguns poucos chapiscos seriam refrigério. Ele, todo inquirido, mãos e pés atados com embiras de agave, em cima do trolete, como se fosse um porco de feira. Não! Ele não maldizia. Mas, em pouco, já balbuciava por água, e a cena da não-entrega da cuia e dos respingos jogados lá longe – tudo se repetia do mesmo jeito.

Já chegando em Nova-Russas, rebolaram-no, ainda arquejante, com todo o vigor, da ribanceira mais alta – pulfo!, o trolete ainda em movimento. Um cabra de boa pontaria, pei!, num clarão súbito, apagou aquele trapo de vida.

Os cabras descarregaram as armas contra o ar e emborcaram os copos de goela adentro. Quebraram as garrafas vazias contra os muros da cidade. E, em grande alarido, com novos tiros e grandes talagadas, ao estampido de mais garrafas e copos espatifados, desceram ao rio, ao banho.

105 - As salsas encarnadas a reverdejar em plena seca

Muitos vieram para ver, mas chegara primeiro uma ordem da cidade sobre aquele corpo:

— Apodreça!

Ninguém atrevia-se a chegar perto. Os urubus, os cachorros, as formigas e os pebas já rondavam aquela massa de calo e sangue.

— Então, senhores, eu vi! – assim contou o Profeta, com grande emoção. E, no mesmo tom:

— As putas do cabaré foram chegando e se benzendo. O povo gritando com elas que a ordem dos grandes era deixar o corpo de Aurélio ali, a apodrecer na beira da linha às feras de carniça.

As putas, com seus vestidos vistosos, algumas ainda com os trajes da noite, benziam-se e rezavam bem alto. A mais velha, Francisca, dona do cabaré, ajoelhou-se e sagrou-lhe a fronte com um pano seco. Outra puta, a mais jovem delas e de cabelos curtos, com uma toalha enxugou-lhe o peito e os braços.

Dizem que aquela toalha, uma toalha mouriscada, Dona Nelsa, a governanta da casa do padre Leitão, da mesma época em que o Coronel daqui, ainda adolescente, morava por lá e estudava de graça no colégio do tio-padre, ela é que a havia bordado, mas nunca explicaram como fora esbarrar nas mãos daquela mulher.

Os comerciantes da cidade vieram para espantá-las, gritavam com elas, ameaçavam-nas. Os moleques até atiravam pedras miúdas, mas as putas, como se fossem as feras do céu, gaviões e carcarás, apegaram-se com toda força àquela presa, o sofrido corpo de Aurélio.

Limpavam-no, oravam-no, regozijavam-no – uma epifania, que talvez fosse.

Um dos comerciantes chegou bem perto, o Tião da Sé, botou um lenço no nariz, e disse que Aurélio era o demônio porque havia atirado no compadre pelas costas.

A puta mais jovem, a dos cabelos curtos, respondeu-lhe que Aurélio errara, mas havia pago tudo no puro sofrimento, dia e noite sob tortura e, tal qual Nosso Senhor Jesus Cristo, nada dissera. Sim, Aurélio. agora de Deus, ela disse. E repetiu:

— Ele é de Deus, meu senhor!

E se benzeu, a puta mais jovem, belíssima, a dos cabelos curtos, Milena, ela.

Não se sabe como, Zezinho, garçom e mensageiro do cabaré, correra até o estabelecimento, e, ligeiro, já trazia na cabeça uma porta que conseguira arrancar do quarto de uma das mulheres.

José, garçom e mensageiro do cabaré, trouxe também, em cima da porta, cai não cai, os óleos e um lençol. Não, não era de linho o lençol. Era de algodãozinho, de saco de farinha de trigo, da padaria do Manoel Diogo. Afinal, aquelas mulheres eram pobres. De qualquer modo, naquelas brenhas ninguém usa lençol de linho; quando muito de bramante, os mais abastados, ou de fustão.

As putas desviraram o corpo do santo-mártir para limpá-lo inteiro. Por baixo do corpo, havia uma moita de salsas, mas as folhas estavam murchas. Era verão, um verão brabo, uma grande seca; também porque o peso do morto as amassara, afundando-as na terra, secas.

O comerciante, cheio de raiva, percebendo que as putas não paravam a devoção para com o morto, deu uma cusparada no chão, raspou a bota por cima e disse pelos cantos da boca:

— Ah, sua vagabunda, então o bandido agora é de Deus?!

E, com desdém, completou:

— Deus não existe!

As putas fingiram que nada escutaram. Mas toda a cidade viu que, na medida em que elas retiravam o morto de cima das salsas, três magros botões desenrolaram-se em pura flor vermelha. Três outros botões também brotaram. Mais outros e outros, muitos; e, súbito, aquele chão imundo, de suor e sangue pisado, exatamente onde antes estava o morto, ali, só ali, debaixo dele, cobriu-se de verde e flor.

Muitos pegaram pedras para cobrir o comerciante de pedras, mas, num instante, relampejou pesado. Um raio-corisco explodiu de estalos de uma ponta a outra da Serra Grande. O trovão respondeu da outra serra, a Serra das Matas, a morada do nosso Coronel, este aqui.

Foi assim que o Profeta contou. Olhei para o Coronel. Ele nem disse que sim, nem que não. Parecia um poste, teso. Alguém aproveitou um rápido silêncio e enfiou esta cantoria:

Escureceu e choveu!
A chuva,
hesitante e ventilado borrifo;
ternamente,
um pingo maior;
insistentemente,
um pingo menor;
a chuva...
apagou todos os rastros...!

Desmancharam-se nas poças turvas,
de uma vez e para sempre,
todos os panfletos!

Perguntaram de quem era a cantoria e o que ela teria a ver com a morte do matador, Aurélio. Disseram que a cantoria era do Coronel, o daqui, presente na Biblioteca, sobre uma raposa que ficara doida na seca do 93, mas ele teimava, na cantoria, em dizer que a raposa não era doida. Pelo contrário, seria um animal sábio e santificado, de Deus.

O monge cego, Jorge de Burgos, disse que era muito estranho alguém afirmar que a raposa, um bicho reconhecidamente maldito, pudesse ser de Deus. O engenheiro, doutor Menelau, recitou mais uma estrofe:

Quando parou de chover,
noite escura ainda,
Pico do Caga-Fogo,
urupemba finíssima...
peneirando pontinhos de luz,
verd'azulados,
infinitos pontinhos
apagavam e acendiam...
Infinitamente...
Pico do Caga-Fogo:
Iluminado!

— Isto mesmo, senhor monge Jorge! – disse o Profeta, e, ainda mais agitado: Eu estava lá! Quando reparei na Serra das Matas, os trovões troando entre os cumes da Cana-Brava e do Vidéu, milhares de vaga-lumes acendiam e apagavam a serra inteira! Apontei-os para o povo.

— Foi aí que o comerciante que, até bem pouco estivera a blasfemar, enfiou a cara no chão e batendo nos peitos berrou até para quem não quisesse ouvir, bem alto, que Aurélio era santo. Sim, ele é santo, eu vi!

O professor Pedro Paulo reclamou que os assuntos da Biblioteca nada podiam ter a ver com o fanatismo daquela gente ignorante.

— E, se fosse o caso de temas tão estranhos terem algo a ver com a Biblioteca, o santo deveria ser, se é que santo existe, o senhor Verolino, morto pelas costas, um homem bom, que tanto atendera a mãe, como confiara no amigo que o matou. E concluiu:

— Agora, pelo contrário, o senhor Camundo está a demonstrar que o santo é o traidor, um homem perverso, de nenhum remorso. Santo, por quê? Só porque não gemeu? Existe muita gente com grande resistência à dor física! Mas isto não é santidade coisa nenhuma! Santo, se é que existe algum, meu caro Profeta, é o outro, o coronel perversamente assassinado pelo tal Aurélio.

O estudante Salviano falou que a história que o Profeta acabara de contar era muito parecida com a história verdadeira do finado Cesário, lá de Nova-Russas, um vaqueiro que matara, por ciúmes, o patrão, o coronel Antônio Rodrigues Veras, pelas costas, e tinha fama de santo, o túmulo cheio de pernas quebradas, espinhelas caídas, barrigas d'água, mãos encarquilhadas de reumatismo, penicos imensos de grandes disenterias e outras doenças do sertão. Contudo, nunca ouvira falar de surra dada pela mãe num filho coronel; muito menos em flores de salsa desabrochando em plena seca, debaixo de um defunto.

106 - As duas versões de uma mesma história: qual a legítima?

Resolvi lançar esta pergunta: afinal, quem é o santo, Aurélio ou Verolino?

O Coronel, tão calado que estava, resolveu meter o bedelho para dizer que qualquer história sempre comporta duas versões.

— Elementar, senhor Coronel! Uma versão verdadeira, outra falsa, é claro. Elementar, meu caro! — zombou o professor Pedro Paulo.

O Coronel não se perturbou com a provocação e disse que a primeira versão é a forma linear, cartesiana e positivista, que pouco difere de uma bula de remédio ou de uma receita de bolo. A outra é a periférica, que consegue tanger, no seu desdobramento “noite”, uma série de outros valores que já foram ditos, porque nada haveria de novo sob o sol. Contudo, não se admiraria se aparecesse algum afoito a desmentir as Escrituras e dizer que há algo novo por ser dito. A forma, tão-só a forma de dizer aquilo que certamente já foi ou será dito é que torna verdadeira a narrativa. E prosseguiu o Coronel, com muito fervor no que dizia:

— Vejam, o estudante Salviano, contaram-lhe apenas a versão cartesiana de história: um vaqueiro mata o ex-patrão e morre debaixo de peia. Todos os dias morrem patrões (assaltos); todos os dias matam vaqueiros (operários), mas poucos “historiadores” sabem tanger uma história sob a moldura mítica e mística como o nosso Profeta Camundo acaba de demonstrar.

— ?

— Ele fugiu da banalidade quando introduziu a surra que a mãe aplicou no coronel. Se foi verdade ou não, isto não interessa, em absoluto. Interessa, sim, que ali o Profeta criou ou mostrou – tanto faz! – um ponto, a religiosidade da família do coronel, os laços cavaleirescos que os uniam, a irmandade forte, em suma, uma bondade intrajacente para, logo em seguida, colocar um pesadíssimo contraponto, a facada à traição. Realmente, um tiro à traição, quando dado numa pessoa de bem ou num inocente, é muito mais que um tiro à traição em qualquer outro.

— ?

— Depois, um novo ponto, o martírio do homem mau, um martírio tão pesado que, aliado à resignação de quem o suporta, santifica. Deveras, se o mau soube agir igual ao Cristo, muito justo ganhe a santidade. É de lei!

— ?

— Mais este: a ordem da cidade para deixarem o corpo apodrecer, e o contraponto de a ordem ter sido desobedecida não pelo vigário nem pela polícia ou pela justiça, mas exatamente por quem nunca se deveria esperar fosse descumpri-la, as pecadoras da beira do trem, as putas.

— ?

— E mais: a seca, as malvas secas, os matos secos, as salsas secas, ao contraponto de quando desviraram o morto, debaixo dele, a chuva de flores desabrochando.

— ?

— O detalhe de o comerciante cuspir no chão e rasgar com a bota o nome de Deus… O milagre da chuva, o trovejar do relâmpago-corisco explodindo os céus… Tudo isto é que impediu, em contraponto justo, que o comerciante fosse apedrejado pela multidão enfurecida.

— ?

— Vejam outro detalhe, ainda lá do início da narrativa: o vigor do alazão do coronel, assustando-se com a espetada do punhal, correndo em disparada para, depois mansamente retornar aos pés do dono e, finalmente buscar socorro na casa mais próxima – um bicho-bruto, como se fosse gente batizada! Pena que o patrão já estava morto.

— ?

— E o lance da cuia d'água, os lábios ressequidos, mas o cabra derramando a água lá longe, zombando. Sim, Lázaro, molha a ponta do teu dedo em tua língu...

— ?

— Depois, as garrafas atiradas contra os muros da cidade: um retrato tão denso, plástico e estéreo que a sensação que nos passa… milhões de cacos de vidro hão de rasgar os pés de todos os cristãos do trecho por todo o tempo. Mínimo vidrilho que se encontre lá, cem séculos depois, e vão dizer: Os cabras do Coronel!

— ?

— E, no final, a tropa toda suja de sangue e pólvora, mais o fedor (hedor, hediendo, hediondo) do suor e da aguardente, eles, os cabras, descendo ao rio, ao banho. E que contraste! O mal absoluto de par com o bem absoluto: a turba-malta em purificação às águas do rio.

— ?

— Cada palavra pronunciada há pouco pelo senhor Profeta contém dez outras não pronunciadas, cheias de recorrências, de ligações, de enlaces e desenlaces, tudo formando um corpo único, o Poema!

— ?

— O que mais impressiona no Poema verdadeiro, meu caro senhor Bibliotecário, é que sempre o conhecemos, embora jamais o tenhamos lido, sequer ouvido falar no título ou no nome do poeta.

— ?

— Em suma, em cima da história há pouco contada pelo senhor Profeta, se verdadeira, se falsa, nada a ver, mas dentro dela uma montanha de senhas a nos dar notícia de uma velha história, uma história muito bem conhecida por cada um de nós – embora a desconheçamos por completo – porque ela, a única legítima; logo, a verdadeira!

— ?

— Já na outra versão da mesma história, a linear, não há nada, porque ela é como um rol de roupas que, lavadas e engomadas, ninguém lembrará jamais quantas meias ou quantas camisas mandou lavar.

— ?

— Portanto, meu caro senhor professor Pedro Paulo, só existe a Arte. A Arte em estado puro! Por isto, senhor Bibliotecário Djalma, só a Arte! Vivemos em função do Poema e, só nele acredit…/

Percebi que o senhor Coronel estava exausto. Dei-lhe um respiro, melhor que fosse um chá de melissa ou de cidreira que, lamentável, não tenho nenhum em minha modesta cela. Sequer uma chaleira. Uns minutos a mais, em que trocamos o peso do corpo de uma perna para a outra, ele disse:

— Eis, meus senhores, a única história verdadeira, dois pontos, o Poema! E tem mais, veja, meu caro Bibliotecário Djalma, nosso Profeta atiçou a noite dentro da história: a tolha mouriscada! Que toalha é essa? Como foi parar nas mãos de uma mulher da zona se, ao que tudo indica, teria sido bordada por dona Nelsa, a governanta do padre?!

— Então o padre frequentava o cabaré? Ou, algo menos grave, dona Nelsa bordava e costurava para o meretrício?

— Não, meu caro Bibliotecário Djalma. Pelo menos nesta, o vigário esteve inocente. Aliás, em todo o resto. Inocente! A toalha mouriscada é o toque noite da narrativa, o lance ao futuro, ao amanhecer, que, de pura competência, o nosso Profeta introduziu sobre os bens do passado. Quem saberá dessa toalha? É um “graal”, meu caro Djalma, uma buscada infinita, um “a desvelar”, a chave-mestra, a pedra de cantaria...!

— De canto, cantoria, senhor?

— Sim, também! Canto de cantar, um; o canto de guardar, dois; ambos trazem a mesma raiz: os sons, cantos de cantar; os “volumes”, coisas de contar. Tudo isto, uma coisa só: a pedra e seu cantor; a pedra de cantaria… as mãos que assentam-na… rejeitam-na… amoldam-na… desfiam-na em som… e tom… E trom.

— Trom, senhor, o que é?

— Sim, o trom! O trom da palavra, que tanto faz em pedra, tinta, cimento, voz ou ferro. E gesto! Também em gesto! A Arte é a palavra, meu caro Bibliotecário Djalma. Isto é, a pré… a pré-palavra, anterior à palavra, antes da palavra… A Arte, meu caro Djalma, a pré…, a Arte…, só a ARTE, o gesto, a pré-palavra…!

— O gesto, senhor?

— Claro que sim, também o gesto. Veja, meu caro Bibliotecário Djalma, o golpe certeiro do cirurgião, dentro do quengo de um cristão, linhas minúsculas, ali, tudo engalfinhado em sangue e calo, sem errar uma linha sequer… claro que é Arte! Se não o cabra morre?

— Quem é que morre, senhor?

— Ambos! Aquele que erra, que nunca mais… e o outro, a vítima da não-Arte. — E, mais uma vez muito agitado, disse:

— A elipse da mão do Mestre, em sala, a explicação absoluta, a retórica perfeita, o conhecimento explodindo-lhe pelos dedos… Sim, isto também é Arte.

— ?

— Anote aí, por favor, a Arte Absoluta é o gesto. Sim! O gesto, porque ele vem antes da palavra, às vezes vem junto, mas, a rigor, nem precisa…! Desde que… em Arte!

O Capitão, de há muito calado, falou:

— Isto mesmo, Bibliotecário Djalma: só a Arte! É o que eu vivo dizendo há séculos neste Carandiru.

[Então, me veio à mente a imagem do Capitão, aquele ali mesmo, em pessoa, da época negreira, imponente e imperial na amurada do brigue imundo, a rebolar, de mar abaixo, aos peixes, os negros imprestáveis pela disenteria… Vai, negro! O mar é teu! Seria aquilo também uma forma de Arte?! Claro que vou perguntar isto ao patrão dele, o Coronel, tão explicadorzinho de coisas. É bem provável que me diga que o dinheiro do tráfico pagou templos e igrejas… Talvez seja melhor nem perguntar.]

— A prova provada, meu caro professor Pedro Paulo, de que a história sempre comporta, no mínimo, duas versões. Mas a única verdadeira, anote aí, por seu favor, é o Poema — disse o Coronel.

— O poema, senhor?

— Sim, o Poema. A palavra justa! Porque anterior à palavra.

— A palavra justa, como assim?

— É que, para ser justa, a palavra há de estar do lado de dentro; logo, anterior. E, fundamental, há de ser em prol.

— Em prol? De quem? Da vítima, do vencedor?

Antes que eu conseguisse uma explicação, o monge Jorge de Burgos interferiu que o Coronel estava a exagerar. Primeiro, porque o senhor Camundo não era nenhum poeta; logo, aquilo que ele contara, verdadeiro ou falso, não era poema. Segundo, porque o Coronel estava a negar a verdade fundamental, porque a verdade não é coisa de cantorias, mas aquilo que sai da boca de Sua Santidade, o Papa, por inspiração do divino Espírito Santo.

Deram uma vaia no monge, no que o professor Pedro Paulo ganhou fôlego:

— Por obséquio, senhor Coronel, que tipo de “aula” o senhor nos quis passar com essa história de que a verdade é apenas o poema? Deu-nos, acaso, uma “aula” de teoria literária? De poética? De estética? Com que credenciais? De que escola?

O Coronel respondeu que acabara de passar apenas uma pequena aula de música.

— De música, senhor?

Incrível, ninguém riu da resposta. Tive a sensação, ante o disparate do Coronel, que ele enlouquecera. Vejam, ele abriu a reunião com a ideia de que a Biblioteca será dirigida por um cego. Depois, não menos grave, o assecla dele, o Profeta Camundo, inventa uma história do arco da velha, uma história muito bonita, é certo; mas, instrumento musical, se ele e o Coronel são músicos, não trouxeram nenhum. Sequer alguém assoviou! Como é que esse Coronel vem nos dizer que deu uma aula de música? Ele é músico? Que instrumento toca? Está doido, é claro! Ah, meu Deus, vejo que a tarefa deste relato está escapando da minha modesta capacidade. Em prol?! Em prol de quem, de quê?!

 

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Este, o 17º capítulo de Poética, um livro vivo, aberto, gratuito, participado e participativo, cheio de comentários que, a rigor — esta, a proposta —, os comentários, mais importantes que o texto comentado: abrir o debate, uma multivisão.

— Livro vivo, como assim?

— Porque em permanente movimento, espaço aberto a quem chegar, tão amplo como o espaço àqueles que aqui estão desde os séculos, todos em absoluta ordem alfabética. Seja bem-vindo!

POÉTICA: Capa, prefácio e índice poemas e poetas comentaristas

 

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Comentários:

ADAIL SOBRAL: Guimarães Rosa iria gostar, acho eu. E o conto chega ao fim no exato momento. E mais não digo.

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CRISTINA BITTENCOURT: ... Aqui vem tudo junto: a pré-palavra - sendo poema e música, é claro como água - e tudo advém e revém daí... Por isso, pode inventar a toalha mouriscada. A pré-palavra, a coisa antes da ideia da coisa (foi um amigo que me ensinou o poema de Wallace Stevens) é um fruto filosófico, daqueles do alvorecer da filosofia, quando os elementos - o raio corisco - ainda é o Sentido, quando o Aedo ainda é o Sentido: um fruto que só aparece na segunda versão - a não-linear - o fruto de nossa rememoração das coisas; queremos as coisas, mas elas já viraram palavras e a coisa antes da ideia da coisa fica lá imóvel, um hieroglifo, uma pedra a nos educar, um canteiro florido a nos ensinar a fazer uma toalha mouriscada… E tudo isso sem falar de música e de forma, nem dá para falar nada.

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DÉCIO TORRES: Que maravilha de texto! Vivo, bravo, manso! Parabéns!

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ELIANE PANTOJA VAIDYA: SF, o que é isto, meu amigo?!
Uma jamais ouvida “aula de música”, sim, um conto perfeito, poético, belo de teatro de ver, ouvir, gestuar. Anterior à Palavra é o gesto. Todo o vivente é um mundo. Mas vc, SF, é muitos e muitos viventes.
Esta pobre “monja” cega aprecia e admira, ama todos os seus viventes. Impossível não afirmar aos que têm ouvidos de ouvir o meu deslumbramento absoluto pela escrita de Soares Feitosa a quem rendo sincera homenagem/ epv
Em 14/06/2023
Bem haja

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GERSON PEREIRA VALLE: Bem haja o narrador de feitos, as estórias bem feitosas, nas antigas bíblias explicativas dos sertões! Obrigadíssimo, poeta irmão.

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J. UDINE VASCONCELOS: Improviso Para o Poeta Soares Feitosa

Bardo Soares Feitosa,
Tanto em prosa como em verso,
Faz lúdico o seu universo...
Nascido em Monsenhor Tabosa,
Viveu entre espinhos e rosa,
Porque homem do sertão
Que pega serpente co' a mão!
Ao florir para a Poesia
(No tempo, que o avalia)
Eis o poeta bonachão!
É poeta da maturidade
Que traz, da vida, a Ciência,
Com alto grau de inteligência.
A sua poeticidade,
É sonho em eternidade,
Que o nosso sertão clareia
Em noite de lua cheia.
É o aedo do sertão
Que aboia na solidão
Sua poesia de mancheia!
 

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MARCANTONIO COSTA: Eu já havia lido. Onde? Talvez no Jornal de Poesia mesmo. Sei que é ótimo. Sinto como se estivesse lendo um conto de Sagarana, não fosse o belo artifício de se transformar num mini tratado sobre a Arte. Excelente!

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STELO QUEIROGA: Anote aí a Parahyba do Norte por endereço da manta, Profeta Soares Feitosa!
Eita, meu amigo, que maravilha de conto!!!!!!!!! Emociona e descortina este nosso Nordeste, meu caro!
Meu pai foi Cabo Armeiro do Exército Brasileiro na tua Fortaleza de 1943, Sargento na briosa PMCE, tempo em que foi Delegado inclusive em Novas Russas, pelos idos de 1950. Enfrentou, entre os perigos destes tempos, o temido Belquior(ou seria Belchior?), que cantava com parabellum e punhal. Antes de migrar como tenente para a não menos briosa(e haja brio) PMPB. Fez seis filhos no Ceará, na legítima minha mãezinha que testemunhou tudo e ainda me conta aos 96, mais quatro (eu no meio) aqui pela Parahyba (sem contar os contrabandos). E por último Coronel...
Um belo conteúdo, adorei ler!

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Waldemar Jose Solhar: Muito bom, muito forte, SF.
Principalmente a primeira parte, que termina no surgimento das flores sob o morto.
Muito bom.

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