Paulo de Tarso Pardal
5.10.2007
Angela Gutiérrez: o mundo de
Flora
O
romance ´O
mundo de
Flora´, de
Ângela
Gutiérrez,
faz parte da
lista de
obras
indicadas
para o
próximo
vestibular
da
Universidade
Federal do
Ceará.
Trata,
sobretudo,
de uma obra
inventiva,
desafiadora,
uma vez que
foge ao
processo da
fabulação
tradicional.
Percorrer os
caminhos
dessa
construção é
um dos
motivos
centrais
dessa
edição.
O aspecto
estrutural é
que faz de O
Mundo de
Flora um
romance
singular, de
muitas
influências
da vanguarda
européia do
início do
século, como
o Cubismo,
em que é
valorizada a
superposição
de planos e
a colagem.
Esses
elementos,
porém,
aparecem no
texto de
Ângela
Gutiérrez
com outras
perspectivas,
dada a
feição
original dos
vários
narradores,
da
perspectiva
memorialística
e
autobiográfica,
do
regionalismo,
dos vários
tipos de
linguagem
que o texto
encerra, da
fragmentação
do enredo e
do tempo da
narrativa.
Diante
disso,
veremos como
a
não-linearidade
do enredo
tanto é
proporcionada
pelos vários
narradores
do romance,
como pelos
vários
planos
temporais
que nele
existem.
Tais
narradores
alternam-se,
ora cabendo
a um
personagem o
direcionamento
da
narrativa,
ora
aparecendo
outro que
conduz a
narração,
que tanto
pode ser
contemporâneo
do primeiro,
como
pertencer a
um outro
tempo bem
distanciado,
como bem
observou Sânzio de
Azevedo, e
ora um
narrador
ausente, em
terceira
pessoa,
distanciado
da
narrativa, o
que faz do
tempo do
romance um
verdadeiro
caleidoscópio
de imagens e
fatos, daí a
superposição
de planos
temporais e
espaciais.
O enredo,
que à
primeira
vista parece
confuso e
desordenado,
adquire
unidade ao
longo do
texto, pela
simplicidade
e
naturalidade
com que os
planos se
superpõem.
Tais planos,
na maioria
das vezes,
têm
individualidade
própria, e
aparecem sob
várias
formas, como
pequenos
contos,
crônicas,
letras de
músicas que
marcaram
época,
poemas
populares,
etc. Essa
independência
formal, no
entanto, não
prejudica o
entendimento,
haja vista
os
fragmentos
se
amalgamarem
num todo
narrativo,
assegurando
a sua
unidade, e
marcando a
originalidade
da
composição
do romance
em questão.
Ao lado
dessa
estrutura
fragmentária,
aparecem
vários
elementos
que
enriquecem o
texto, como
os hábitos e
costumes de
Fortaleza
antiga, o
que
caracteriza
um
regionalista
bem
original,
dado os
efeitos que
a autora
emprega para
mostrar ao
leitor tais
costumes.
Da
perspectiva
do
memorialismo
e da
autobiografia,
perceberemos
que são
mostrados
tanto a
formação do
clã da
protagonista,
como a sua
formação
individual,
que tanto é
contada por
ela mesma,
como por um
outro
narrador,
possibilitando,
desta
maneira,
várias
visões ao
leitor,
abrindo-lhe
várias
perspectivas
não só de
interpretação
do mundo da
personagem,
como de
visão
abrangente
de um
período,
interpretado
sob vários
ângulos.
Apesar de o
termo
Pós-Modernismo
ser ainda
empregado
com certas
reservas,
queremos
propor essa
classificação
para servir
de
identificação
da estética
do romance
de Angela
Gutiérrez.
Domício
Proença
Filho, em
seu livro
Pós-Modernismo
e
Literatura,
identifica
vários
traços que
caracterizam
textos sob
esta
denominação,
como a ´intensificação
do ludismo´,
a
´utilização
deliberada
da
intertextualidade´,
o ´exercício
da
metalinguagem´,
a
fragmentação,
etc. Tais
traços são
característicos
do romance
de Angela
Gutiérrez.
É isto que
vamos
analisar: os
elementos
que
identificam
o romance O
Mundo de
Flora como
romance
contemporâneo,
pós-moderno.
A estrutura
Haroldo de
Campos, ao
analisar a
estrutura do
livro
Serafim
Ponte
Grande, de
Oswald de
Andrade,
disse que a
forma
romanesca
tradicional
radicalizou
com a
publicação
em 1933,
deste livro:
´O
romance-invenção
Serafim
Ponte Grande
(...) é uma
dessas obras
que põem em
xeque a
idéia
tradicional
de gênero e
obra
literária,
para nos
propor um
novo
conceito de
livro e de
leitura.
(...) o
Serafim é um
grande
não-livro de
fragmentos
de livro.´
Comparando
com Memórias
Sentimentais
de João
Miramar,
Haroldo de
Campos diz
que Serafim
Ponte Grande
inova pela
macroestrutura,
ou seja,
pela
´arquitetura
geral da
obra´.
Diante da
macroestrutura
do livro,
ele prefere
chamar de
´grandes
unidades de
superfície´
as partes
que
equivaleriam
aos
capítulos
dos livros
tradicionais.
Ele faz essa
distinção
para marcar
a ´relativa´
autonomia
dessas
partes.
Essas
unidades são
elaboradas
através da
técnica de
colagem, daí
a
desestruturação
da linha
narrativa da
história.
No romance O
Mundo de
Flora, não
há a divisão
macroestrurural,
de que
falaram os
dois
críticos
acima
citados.
Ressaltamos
que no
´índice´ e
nos ´indículos´
deste livro
(MF, p. 180
e 187) há
uma divisão
em grandes
partes. Essa
divisão em
partes
maiores, no
entanto, é
apenas um
indicativo
de leitura
para o
leitor, que
poderá lê-lo
da maneira
que lhe for
conveniente,
como a
própria
autora
observa -
´... o
leitor
poderá
conhecê-lo
de um
corrido
só... ou
folheá-lo ao
acaso...´
(p. 180).
Essas
grandes
unidades de
divisão
também não
têm nenhuma
função
dentro da
estrutura
narrativa,
dada a
independência
que cada
fragmento
assume, como
veremos
adiante. Uma
outra
diferença do
texto de
Ângela
Gutiérrez
para o texto
de Oswald de
Andrade é
que todo o
texto
romanesco da
autora
cearense é
formado por
microestruturas
narrativas,
que
proporcionam,
também, uma
visão
fragmentária
para o
leitor. Cada
microestrutura
guarda a sua
independência
textual,
visto que o
discurso, em
algumas
delas, tem
característica
bastante
diferenciadas
e
possibilitam
panoramas
bem
distintos,
tanto em
relação à
cosmovisão
como em
relação à
vida da
personagem.
Desta
maneira, as
microestruturas
só se
completam
quando da
recriação do
leitor, que
recompõe
todos os
desenhos que
lhe são
apresentados.
Se em
Serafim
Ponte Grande
há a paródia
dirigida à
sociedade
brasileira,
em O Mundo
de Flora há
a
interpretação
da realidade
- e
conseqüentemente
a sua
crítica -,
apresentada
sob diversos
ângulos,
demonstrando
a
relatividade
desta
interpretação,
que sempre
está sujeita
a várias
leituras,
dependendo
do ponto de
vista em que
é observada.
Desta
maneira, se
no primeiro
romance há
um
personagem e
um narrador
que conduzem
a história,
e que são
identificáveis
dentro das
suas
estruturas
bem
delimitadas,
no segundo
romance, há
vários
narradores
que
direcionam a
narrativa -
que entram e
que
desaparecem
do contexto
narrativo -,
e vários
personagens
que se
alternam,
assumindo,
ora uns, ora
outros, a
função de
protagonista
do enredo do
romance.
Se o
espírito
destruidor/paródico
predomina no
texto
oswaldiano,
o que vai
predominar
no texto de
Ângela
Gutiérrez é
a
relatividade
da
cosmovisão.
O
questionamento
do mundo,
neste
romance,
aparece mais
enriquecido,
visto a
percepção
localizar-se
em muitos
pontos, o
que
possibilita
tantas
visões
quanto o
número de
referentes
existente,
daí a
relatividade.
O romance de
Ângela
Gutiérrez é
uma
tentativa de
refazer esse
mundo
estilhaçado,
que a
modernidade
proporcionou,
e que a
pós-modernidade
tenta
reconstruir,
unindo esses
vários
fragmentos;
não mostra
somente o
mundo
partido e
fragmentário
dos
personagens,
mas mostra
como esse
mundo pode
ser
reconstruído
a partir
desses
fragmentos.
O
procedimento
para a
estruturação
do livro - a
fragmentação,
a colagem, a
montagem,
fazendo dele
uma escrita
caleidoscópica
- tem uma
relação
profunda com
um dos
objetivos de
toda
narração: a
história da
vida das
personagens,
que, neste
caso, se
elabora
através de
lembranças
que chegam,
em muitas
ocasiões,
sem um nexo
temporal ou
espacial de
contigüidade,
dada a
independência
que as
estruturas
assumem.
A polifonia:
múltiplas
vozes
narradoras
O narrador do romance O Mundo de Flora assume várias identidades. O início da narrativa é marcado pela presença de um narrador em primeira pessoa, que abre o cenário para o leitor através do monólogo interior:: ´ São três horas da tarde. (...)Trancada em meu quarto, vejo a luz do sol filtrada pelas persianas e ouço, vindos de longe, sons que me parecem do Carinhoso. (...) Para quem escrevo? Para mim mesma? Alguém lerá estas páginas? (p. 13)
Em seguida, na segunda microestrutura. um outro narrador assume o comando da narrativa, desta feita em terceira pessoa, atuando num tempo não determinado, em relação à primeira microestrutura. Essa técnica de construção da narrativa vai, desde já, excitar a curiosidade daquele leitor acostumado a uma leitura linear de um texto. O tempo desse fragmento tanto pode ser o da primeira microestrutura, como um outro anterior ou posterior a ela. Tal narrador, assim, assume essa ambigüidade temporal, que vai ser a chave para o deslindamento da estrutura singular desse romance. Em qualquer dos casos, porém, temos a mesma cena vista sob dois pontos de vista: o do personagem, visto por ele mesmo, e esse personagem visto sob o ângulo de um outro narrador: ´O espelho de cabo de marfim devolveu-lhe a imagem de uma mulher de trinta e três anos, bonita ainda, apesar das duas vincas que nasciam nas asas do nariz e se amorteciam nos cantos da boca. Boca de lábios cheios e sensuais, dizia Diego.´ (p. 13)
Todo o cenário do romance é construído por fragmentos. Desta maneira, o romance O Mundo de Flora torna-se polifônico, em que as muitas vozes encarregadas de comporem tal cenário possibilitam a visão relativa do mundo ficcional apresentado. Com essa construção polifônica de narradores, não há uma voz que se imponha às demais, pois cada uma tem sua visão, que é tão verdadeira quanto às outras; visão essa que abre uma abrangente paisagem para o leitor, que as interpreta tendo por suporte os múltiplos planos que lhe são apresentados.
Em alguns momentos, a ambigüidade do discurso não permite que identifiquemos o narrador como sendo em primeira ou terceira pessoa: ´Ao chegar à sala de almoço, respirava aliviada. Ali, o telefone, o rádio, a sariema e a arara se encarregavam de afastar os maus espíritos. Era o único lugar claro e alegre daquela casa.´(p. 16)
O verbo desse fragmento tanto pode ter como sujeito oracional ´eu´, como ´ela´. Em qualquer dos casos, não saberemos se o referente diz respeito à personagem ´Flora´ - mãe, ou ´Flora´- filha. Tal indeterminação, proporcionada pela desinência do verbo, ganha relevância na medida em que as microestruturas têm autonomia narrativa, ou seja, na grande maioria desses fragmentos, não há nenhum sinal de contigüidade que permita assegurar a linearidade da narrativa.
Dissemos isso para dar ênfase a mais uma das características do narrador desse romance: o narrador híbrido - aquele que pode assumir várias identidades ao mesmo tempo; podendo ser um narrador-personagem, ou um narrador em terceira pessoa.
A história, às vezes narrada através de monólogo interior, também permite a presença desse narrador híbrido. É o caso do fragmento ´sentado em pé´, em que a incoerência semântica tanto pode lembrar o pensamento lúdico da infância - neste caso identificaríamos a personagem ´Flora´-criança -, como possibilitar a presença de um outro narrador que não guarda nenhuma semelhança com os demais, haja vista que em nenhum momento do livro, além desse, essa construção frasal se repete: ´Era meia-noite, o sol despontava no horizonte. Sentado em pé, numa pedra de pau, nu com a mão no bolso, o homem calado, assim me dizia, enquanto caminhava parado...( p. 57)
Apesar do verbo em primeira pessoa - ´me dizia´ -, não conseguiremos identificar com precisão o referente dessa microestrutura. Se levarmos em consideração que a oposição entre os sintagmas - a incoerência semântica - é o que norteia a construção desse fragmento, a primeira pessoa deixa de existir como referente, passando a se referir à própria estrutura do discurso. Neste caso, o ´eu´ somente se relaciona com ele mesmo, dentro da construção da frase. Desta maneira, esse narrador, como numa colagem, nada guarda de semelhança com aquele que direciona a narrativa quando está se referindo às personagens do romance. É, portanto, um narrador isolado, que faz parte do texto somente neste excerto e que desaparece do texto, depois dessa intromissão.
Esse outro exemplo - do fragmento ´torvelinho da memória´- também demonstra a presença desse narrador híbrido: ´No louco torvelinho da memória, lembranças vêm e vão, consentidas umas, indesejáveis outras.´ (p. 150) Essa microestrutura contém um importante elemento para a elaboração do conceito de memória: a memória voluntária - aquela que passa pelo filtro consciente do narrador (´consentidas´) -, e a memória involuntária, proustiana, do inconsciente - aquela que necessita de estímulos subjetivos que transportam o narrador para uma outra dimensão temporal e espacial e da qual esse narrador não pode fugir (´indesejadas´).
Do que até agora analisamos, percebemos que o narrador de O Mundo de Flora se comporta de várias maneiras, assumindo várias identidades que, em alguns casos, nada tem de comum com os demais. Ele entra e sai da narrativa sem nenhum compromisso com a história da personagem ´Flora´ (mãe e/ou filha), o que faz dele, além do hibridismo que assume, também um emissor de uma mensagem aparentemente sem nenhuma relação com a fabulação, como foi o caso desses dois últimos excertos.
Se pensarmos em termos de memorialismo, ou autobiografia romanceada, podemos pensar que o último exemplo (´No louco torvelinho da memória...´) pode assumir a feição de um texto metalingüístico, em que a autora, através desse narrador híbrido, elabora sua concepção de memória. Esse narrador híbrido é também responsável pelos momentos de epifania do texto, que tem a função tanto de iluminar pontos obscuros, que aparentemente não têm nexo com a fabulação e com o tempo da narrativa - como foi o caso, também, do último exemplo (se entendermos que se trata de um texto metalingüístico, como dissemos no parágrafo anterior) -, como não ter nenhuma função, e aparecer somente como uma colagem, uma iluminação instantânea desse narrador híbrido, o que seria coerente com a estrutura singular desse romance.
A polifonia de vozes, assim, é uma característica do romance moderno. O que vai diferenciar o texto de Ângela Gutiérrez é o hibridismo que o narrador assume. Desta maneira, alguns narradores aparecem camuflados, com identidades desconhecidas, para tentar decifrar, para o leitor, o que há por traz do mundo da personagem.
A técnica da montagem, da colagem, da visão cinematográfica, tudo isso, naturalmente, muita influência teve dos movimentos vanguardistas europeus do início do século, como o Cubismo, o Surrealismo, o Dadaísmo, etc. Há um aproveitamento das técnicas utilizadas pelas vanguardas, que aparecem com novos elementos estruturantes do discurso, como é o caso do refazimento da vida da personagem ´Flora´, no romance analisado.
Ainda em relação ao narrador: ´O narrador distancia-se ainda mais da matéria narrada e converte-se num observador, quase um repórter.´ No romance o Mundo de Flora, pela diversidade de narradores, há aqueles que se comportam como o narrador tradicional, onisciente, mas há aqueles que se distanciam da matéria narrada, como foi o caso dos dois últimos excertos. É o caso também do fragmento ´dentro da gaveta´, em que um deles, em primeira pessoa, assume, em determinado ponto da narrativa, um comportamento distanciado, que quer somente resumir um enredo: ´A estória do conto é simples. Uma menina de cinco anos tenta chamar a atenção da mãe que parece alheia a tudo. Finalmente a mãe nota sua presença e lhe diz coisas que só uma criancinha pode entender. Que vai fazer a mesma viagem que o papai fez um dia, que não pode levá-la. Pede que a menina a deixa só porque vai tomar um pó que a levará para esse lugar tão longe e de onde não voltará. (p.167)
Ou o caso de ´certidão de nascimento´, nítida colagem, em que o narrador somente informa os dados de nascimento de um personagem, utilizando-se, como é comum nestes casos, de uma linguagem completamente referencial: ´Certifico que no livro 165 do Registro de Nascimento, às fls. 385, sob o no. de ordem 226.685, consta que, no dia 30 de outubro de 1970, nasceu uma criança do sexo masculino de nome Diego Fernández Filho...´ ( p. 151)
O narrador desse fragmento assume, naturalmente, uma outra identidade - a de um tabelião -, que somente aparece neste momento da narrativa. Aparece como simples emissor de uma mensagem para, logo a seguir, desaparecer. Neste caso, ele tem a função precípua de um narrador aparentemente descompromissado com o enredo, haja vista esse fragmento não ter, à primeira vista, nenhuma conexão com a história, a não ser a de informar - referencialmente - um nascimento. É um caso típico de transcontextualidade: o discurso de um outro contexto - o do universo cartorário - atuando no contexto do universo literário.
O importante a observar, neste caso, é que a autora, com esse procedimento, vem não só reafirmar que a linguagem não é mais exclusiva de um gênero como categoria impositiva, como também se referir à questão da dissolução dos gêneros, cuja pureza começou a ser abalada quando da intromissão de termos prosaicos à poesia, como disse Haroldo de Campos, em seu livro Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana. A linguagem, assim, qualquer que seja o campo semiótico utilizado, não pertence a nenhum deles com exclusividade.
Da estrutura
narrativa
Por conta do narrador híbrido, que se desloca a cada fragmento, assumindo, como já dissemos, várias identidades, o tempo do romance O Mundo de Flora torna-se, também, fragmentário, não-linear. A vida da personagem é contada sob vários planos temporais, em que cada fragmento assume, na maioria das vezes, uma feição completamente independente do tempo do fragmento anterior, ou do que se lhe segue. Desta maneira, em um determinado fragmento mostra a personagem em uma fase da sua vida.
No fragmento seguinte, esse personagem pode estar vivendo em uma época completamente diferente do anterior; ou o narrador pode se referir a outros episódios que não guardam nenhuma continuidade, nem de tempo nem de enredo, com os fragmentos anterior ou posterior. Por conta dessa estrutura, é que tais microestruturas são montadas cinematograficamente na mente do leitor, que fica encarregado de uni-las e, com isso, dar nexo à narrativa: ´Feriado. Fomos para a casa de praia do meu tio. E o que eu gostava mais na praia era de brincar nas dunas. A subida era difícil. Os pés afundavam na areia fofa e tinha de fazer muita força nas pernas magras para ir subindo. (p. 95)
Como podemos perceber pelos trechos acima, além de o narrador assumir duas identidades -no trecho (I), ele está em primeira pessoa; no (II), está em terceira pessoa -, o tempo dos dois excertos são bem distintos, e não guardam nenhuma continuidade linear.
Todo o texto de O Mundo de Flora é montado desta maneira, por isso, raras são as vezes em que há uma linearidade temporal. Para a autora, através desse narrador - seja ele em primeira ou terceira pessoa -, o que interessa é o momento da lembrança, do episódio vivido pelo personagem. Assim, o tempo e/ou episódio podem ser contínuos ou não. O que observamos é que a descontinuidade prevalece no texto.
O mundo da personagem é reconstituído através de vários planos temporais e episódicos. Por esse motivo é que dissemos, no item anterior, que há a tentativa de reconstrução da história do personagem através dos vários fragmentos que se achavam perdidos na lembrança.
O valor atual, no romance analisado, é o valor da memória, dos episódios da personagem que são revividos como presente, daí a constante mudança de planos temporais. O narrador, neste caso, não conta tais episódios somente como passado, como numa narrativa de tempo cronológico; o tempo, no caso, é presentificado a cada faceta vivida pelo personagem. As fronteiras entre passado e presente, assim, não existem, pois elas se atualizam a cada fragmento.
Cada fragmento do romance analisado pode assumir várias formas: de um poema, de um convite, de um telegrama, de uma certidão de nascimento, etc. O tempo, por isso, é independente em cada fragmento, cuja atualização se processa em cada um deles, daí a subjetividade e a relativização desse tempo. O Mundo de Flora é um romance de muitos tempos, por isso há o indicativo da autora: ´O mundo de Flora, onde tantos mortos moram e alguns vivos, o leitor poderá conhecê-lo de um corrido só, de cabo a rabo, como se diz, ou folheá-lo ao acaso, buscando costurar os retalhos a seu gosto, ou, ainda, poderá guiar-se pelo índice que se segue e pelos indículos que o seguem. (p. 180)
O leitor, portanto, é o encarregado de recompor o mundo da personagem a partir dos vários momentos por ela vivido, que é contado por um narrador descompromissado com a lógica linear. O compromisso desse narrador é o de tentar refazer o mundo de ´Flora´, através dos vários retalhos da memória. O tempo, por conta disso, se desenha pelas lentes múltiplas de vários narradores, em que cada fragmento tem sua independência.
O discurso
O Mundo de Flora é um romance composto de muitos fragmentos, como já dissemos. Essas microestruturas adquirem, por isso, várias feições, assumem várias formas como a de um poema, de uma carta, de um telegrama, etc, como frisamos no item anterior. O discurso, neste caso, também se diferencia a cada nova forma. Utilizamos o termo discurso no sentido que lhe dá Tzvetan Todorov, no ensaio intitulado ´As Categorias da Narrativa Literária´.
A estrutura epistolar não é novidade na literatura. Vários autores a utilizaram como recurso e argumento da fabulação. Tal recurso foi utilizado pelos autores que dele se valeram para dar continuidade à história, à fabulação, num procedimento coerente e explicativo com o restante do enredo.
O narrador, em muitos casos, dá uma explicação para a introdução da estrutura epistolar no enredo. No caso do romance de Ângela Gutiérrez, essa estrutura vem, como as demais, independentes da fabulação; não guarda nenhuma contigüidade com as que se lhe avizinham, como é comum em todo o livro. A epístola, no caso, é uma lente a mais que desvenda o mundo da personagem; assume a função de um narrador a mais:(I) Meu bem, Viajei preocupada. Deixar os meninos assim... Mas é o jeito. Tia Branca não pode ficar só. E a nossa caçula Florzinha? Está tão magrinha! (p. 15); (II) Mamãe, Estou dizendo essa carta para o Papai escrever Quando a senhora viajou, chorou olhando para mim dormindo no berço? (p. 21)
Os dois fragmentos acima, apesar de perfazerem um tipo de comunicação entre os personagens, não guardam nenhuma contigüidade no romance, uma vez que estão separados por vários outros fragmentos descontínuos, daí a necessidade de o leitor estar sempre recompondo o mundo da personagem, através dos vários e descontínuos retalhos que lhe são apresentados. No caso acima, o discurso, como é comum nesse tipo de texto, é referencial, denotativo.
A intertextualidade
A intertextualidade é um procedimento que Domício Proença Filho considera como pós-moderno: ´presentifica-se uma tendência à utilização deliberada da intertextualidade´. Isso ocorre com muita freqüência no romance analisado. Esse procedimento estilístico aparece sob a forma de poemas, de letras de músicas que marcaram uma época, de frases de outros autores: há um diálogo constante entre esses textos; há inclusive a identificação da personagem ´Flora´ com as personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato: ´Narizinho ria de mãos dadas com a Emília. Vamos, Flô. Toma o pó, Flô. O pó de Pirlimpimpim.´ (p.85)
Outros exemplos:(I)O homem da vassoura vem aí / Não sei pra onde vou com a família / Eu só queria, eu só queria / Ver o homem da vassoura em Brasília (p. 141) ; (II) - Pra ver a banda passar / cantando coisas de amor. (MF, p. 149) ; (III) Diga trinta e três. Diga trinta e três. Era dançar o tango argentino Y todo a media luz, crepúsculo... (MF, p. 158) ; (IV) Me solte, doutor, que eu não tenho paciência de ser preso. (MF, p.177); (V)Me encontrará tremendo de medo da mão descarnada, conversando com filósofo do Humanitismo, vivendo amores de perdição e de salvação. (MF, p.177); (VI) Que saudades que eu não tenho da aurora da minha vida. (MF, p.178); (VII) Uma cova rasa, nem larga nem funda, é a parte que me cabe. (p. 178); (VIII)Saio da vida sem entrar na história. (p.178) ; (IX) Viver, todo o mundo sabe, é muito perigoso. (p.179).
Pelos exemplos acima, podemos perceber a deliberada inserção de termos, frases, orações, versos de outros autores, de outros textos, como é o caso, respectivamente, da modinha dos anos 1960 que empolgou o país quando da candidatura de Jânio Quadros à presidência da República; de Chico Buarque de Holanda; de Manuel Bandeira; de Moreira Campos; de Camilo Castelo Branco; de Casimiro de Abreu; de João Cabral de Melo Neto; de Getúlio Vargas; de Guimarães Rosa.
Definindo a intertextualidade como ´a interação semiótica de um texto com outro(s) texto(s)´, Vítor Manuel de Aguiar e Silva vale-se do conceito de palimpsesto para falar das camadas textuais que existem, quando dos diálogos entre tais textos.
No caso dos excertos acima, temos o exemplo de intertextualidade ´hetero-autoral´ - segundo terminologia desse mesmo teórico - que é a interação de textos de autores distintos. Ângela Gutiérrez não se utiliza somente de textos literários para revelar a intertextualidade, mas de fragmentos de textos de outros contextos semióticos, como é o caso acima, de uma frase - modificada, como podemos notar - da carta escrita por Getúlio Vargas antes de suicidar-se; ou o caso da famosa frase do guerrilheiro Che Guevara: ´Hay que tener dignidad hasta el fin, hasta la muerte´ (p. 178). Ao final do livro, a autora se vale do final de algumas histórias infantis para elaborar o ´segundo´ final do seu romance: ´Entrou pela perna do pato, saiu pela perna do pinto e o senhor-rei mandou dizer que contasse mais cinco. Quem quiser que conte as outras; eu, por aqui, paro. Não quero criar rabo de cutia contando estória de dia. (p.179)
A pós-modernidade na literatura, como pudemos perceber pelos elementos que analisamos neste trabalho, é ainda muito complexa.
Muitos princípios ainda estão sendo propostos, muitos textos ainda precisam de análise, e somente a partir do trabalho incansável dos estudiosos é que poderemos chegar a uma conceituação e uma delimitação precisa dessa nossa época tão cheia de contradições.
*O
autor
é professor,
contista,
ensaísta e
poeta.
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