The Gates of Dawn, Herbert Draper, UK, 1863-1920

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Paulo de Tarso Pardal

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

5.10.2007

 


Angela Gutiérrez: o mundo de Flora

 


 

O romance ´O mundo de Flora´, de Ângela Gutiérrez, faz parte da lista de obras indicadas para o próximo vestibular da Universidade Federal do Ceará. Trata, sobretudo, de uma obra inventiva, desafiadora, uma vez que foge ao processo da fabulação tradicional. Percorrer os caminhos dessa construção é um dos motivos centrais dessa edição.



O aspecto estrutural é que faz de O Mundo de Flora um romance singular, de muitas influências da vanguarda européia do início do século, como o Cubismo, em que é valorizada a superposição de planos e a colagem. Esses elementos, porém, aparecem no texto de Ângela Gutiérrez com outras perspectivas, dada a feição original dos vários narradores, da perspectiva memorialística e autobiográfica, do regionalismo, dos vários tipos de linguagem que o texto encerra, da fragmentação do enredo e do tempo da narrativa.

Diante disso, veremos como a não-linearidade do enredo tanto é

Ângela Gutierrez é a autora de O Mundo de Flora, livro indicado para o vestibular da Universidade Federal do Ceará 2008 (Foto: José Leomar)

proporcionada pelos vários narradores do romance, como pelos vários planos temporais que nele existem. Tais narradores alternam-se, ora cabendo a um personagem o direcionamento da narrativa, ora aparecendo outro que conduz a narração, que tanto pode ser contemporâneo do primeiro, como pertencer a um outro tempo bem distanciado, como bem observou Sânzio de Azevedo, e ora um narrador ausente, em terceira pessoa, distanciado da narrativa, o que faz do tempo do romance um verdadeiro caleidoscópio de imagens e fatos, daí a superposição de planos temporais e espaciais.

O enredo, que à primeira vista parece confuso e desordenado, adquire unidade ao longo do texto, pela simplicidade e naturalidade com que os planos se superpõem. Tais planos, na maioria das vezes, têm individualidade própria, e aparecem sob várias formas, como pequenos contos, crônicas, letras de músicas que marcaram época, poemas populares, etc. Essa independência formal, no entanto, não prejudica o entendimento, haja vista os fragmentos se amalgamarem num todo narrativo, assegurando a sua unidade, e marcando a originalidade da composição do romance em questão.

Ao lado dessa estrutura fragmentária, aparecem vários elementos que enriquecem o texto, como os hábitos e costumes de Fortaleza antiga, o que caracteriza um regionalista bem original, dado os efeitos que a autora emprega para mostrar ao leitor tais costumes.

Da perspectiva do memorialismo e da autobiografia, perceberemos que são mostrados tanto a formação do clã da protagonista, como a sua formação individual, que tanto é contada por ela mesma, como por um outro narrador, possibilitando, desta maneira, várias visões ao leitor, abrindo-lhe várias perspectivas não só de interpretação do mundo da personagem, como de visão abrangente de um período, interpretado sob vários ângulos.

Apesar de o termo Pós-Modernismo ser ainda empregado com certas reservas, queremos propor essa classificação para servir de identificação da estética do romance de Angela Gutiérrez. Domício Proença Filho, em seu livro Pós-Modernismo e Literatura, identifica vários traços que caracterizam textos sob esta denominação, como a ´intensificação do ludismo´, a ´utilização deliberada da intertextualidade´, o ´exercício da metalinguagem´, a fragmentação, etc. Tais traços são característicos do romance de Angela Gutiérrez.

É isto que vamos analisar: os elementos que identificam o romance O Mundo de Flora como romance contemporâneo, pós-moderno.
 


A estrutura

Haroldo de Campos, ao analisar a estrutura do livro Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, disse que a forma romanesca tradicional radicalizou com a publicação em 1933, deste livro: ´O romance-invenção Serafim Ponte Grande (...) é uma dessas obras que põem em xeque a idéia tradicional de gênero e obra literária, para nos propor um novo conceito de livro e de leitura. (...) o Serafim é um grande não-livro de fragmentos de livro.´

Comparando com Memórias Sentimentais de João Miramar, Haroldo de Campos diz que Serafim Ponte Grande inova pela macroestrutura, ou seja, pela ´arquitetura geral da obra´. Diante da macroestrutura do livro, ele prefere chamar de ´grandes unidades de superfície´ as partes que equivaleriam aos capítulos dos livros tradicionais. Ele faz essa distinção para marcar a ´relativa´ autonomia dessas partes. Essas unidades são elaboradas através da técnica de colagem, daí a desestruturação da linha narrativa da história.

No romance O Mundo de Flora, não há a divisão macroestrurural, de que falaram os dois críticos acima citados. Ressaltamos que no ´índice´ e nos ´indículos´ deste livro (MF, p. 180 e 187) há uma divisão em grandes partes. Essa divisão em partes maiores, no entanto, é apenas um indicativo de leitura para o leitor, que poderá lê-lo da maneira que lhe for conveniente, como a própria autora observa - ´... o leitor poderá conhecê-lo de um corrido só... ou folheá-lo ao acaso...´ (p. 180).

Essas grandes unidades de divisão também não têm nenhuma função dentro da estrutura narrativa, dada a independência que cada fragmento assume, como veremos adiante. Uma outra diferença do texto de Ângela Gutiérrez para o texto de Oswald de Andrade é que todo o texto romanesco da autora cearense é formado por microestruturas narrativas, que proporcionam, também, uma visão fragmentária para o leitor. Cada microestrutura guarda a sua independência textual, visto que o discurso, em algumas delas, tem característica bastante diferenciadas e possibilitam panoramas bem distintos, tanto em relação à cosmovisão como em relação à vida da personagem. Desta maneira, as microestruturas só se completam quando da recriação do leitor, que recompõe todos os desenhos que lhe são apresentados.

Se em Serafim Ponte Grande há a paródia dirigida à sociedade brasileira, em O Mundo de Flora há a interpretação da realidade - e conseqüentemente a sua crítica -, apresentada sob diversos ângulos, demonstrando a relatividade desta interpretação, que sempre está sujeita a várias leituras, dependendo do ponto de vista em que é observada. Desta maneira, se no primeiro romance há um personagem e um narrador que conduzem a história, e que são identificáveis dentro das suas estruturas bem delimitadas, no segundo romance, há vários narradores que direcionam a narrativa - que entram e que desaparecem do contexto narrativo -, e vários personagens que se alternam, assumindo, ora uns, ora outros, a função de protagonista do enredo do romance.

Se o espírito destruidor/paródico predomina no texto oswaldiano, o que vai predominar no texto de Ângela Gutiérrez é a relatividade da cosmovisão. O questionamento do mundo, neste romance, aparece mais enriquecido, visto a percepção localizar-se em muitos pontos, o que possibilita tantas visões quanto o número de referentes existente, daí a relatividade. O romance de Ângela Gutiérrez é uma tentativa de refazer esse mundo estilhaçado, que a modernidade proporcionou, e que a pós-modernidade tenta reconstruir, unindo esses vários fragmentos; não mostra somente o mundo partido e fragmentário dos personagens, mas mostra como esse mundo pode ser reconstruído a partir desses fragmentos. O procedimento para a estruturação do livro - a fragmentação, a colagem, a montagem, fazendo dele uma escrita caleidoscópica - tem uma relação profunda com um dos objetivos de toda narração: a história da vida das personagens, que, neste caso, se elabora através de lembranças que chegam, em muitas ocasiões, sem um nexo temporal ou espacial de contigüidade, dada a independência que as estruturas assumem.

 

 

A polifonia: múltiplas vozes narradoras

 

O narrador do romance O Mundo de Flora assume várias identidades. O início da narrativa é marcado pela presença de um narrador em primeira pessoa, que abre o cenário para o leitor através do monólogo interior:: ´ São três horas da tarde. (...)Trancada em meu quarto, vejo a luz do sol filtrada pelas persianas e ouço, vindos de longe, sons que me parecem do Carinhoso. (...) Para quem escrevo? Para mim mesma? Alguém lerá estas páginas? (p. 13)

Em seguida, na segunda microestrutura. um outro narrador assume o comando da narrativa, desta feita em terceira pessoa, atuando num tempo não determinado, em relação à primeira microestrutura. Essa técnica de construção da narrativa vai, desde já, excitar a curiosidade daquele leitor acostumado a uma leitura linear de um texto. O tempo desse fragmento tanto pode ser o da primeira microestrutura, como um outro anterior ou posterior a ela. Tal narrador, assim, assume essa ambigüidade temporal, que vai ser a chave para o deslindamento da estrutura singular desse romance. Em qualquer dos casos, porém, temos a mesma cena vista sob dois pontos de vista: o do personagem, visto por ele mesmo, e esse personagem visto sob o ângulo de um outro narrador: ´O espelho de cabo de marfim devolveu-lhe a imagem de uma mulher de trinta e três anos, bonita ainda, apesar das duas vincas que nasciam nas asas do nariz e se amorteciam nos cantos da boca. Boca de lábios cheios e sensuais, dizia Diego.´ (p. 13)

Todo o cenário do romance é construído por fragmentos. Desta maneira, o romance O Mundo de Flora torna-se polifônico, em que as muitas vozes encarregadas de comporem tal cenário possibilitam a visão relativa do mundo ficcional apresentado. Com essa construção polifônica de narradores, não há uma voz que se imponha às demais, pois cada uma tem sua visão, que é tão verdadeira quanto às outras; visão essa que abre uma abrangente paisagem para o leitor, que as interpreta tendo por suporte os múltiplos planos que lhe são apresentados.

Em alguns momentos, a ambigüidade do discurso não permite que identifiquemos o narrador como sendo em primeira ou terceira pessoa: ´Ao chegar à sala de almoço, respirava aliviada. Ali, o telefone, o rádio, a sariema e a arara se encarregavam de afastar os maus espíritos. Era o único lugar claro e alegre daquela casa.´(p. 16)

O verbo desse fragmento tanto pode ter como sujeito oracional ´eu´, como ´ela´. Em qualquer dos casos, não saberemos se o referente diz respeito à personagem ´Flora´ - mãe, ou ´Flora´- filha. Tal indeterminação, proporcionada pela desinência do verbo, ganha relevância na medida em que as microestruturas têm autonomia narrativa, ou seja, na grande maioria desses fragmentos, não há nenhum sinal de contigüidade que permita assegurar a linearidade da narrativa.

Dissemos isso para dar ênfase a mais uma das características do narrador desse romance: o narrador híbrido - aquele que pode assumir várias identidades ao mesmo tempo; podendo ser um narrador-personagem, ou um narrador em terceira pessoa.

A história, às vezes narrada através de monólogo interior, também permite a presença desse narrador híbrido. É o caso do fragmento ´sentado em pé´, em que a incoerência semântica tanto pode lembrar o pensamento lúdico da infância - neste caso identificaríamos a personagem ´Flora´-criança -, como possibilitar a presença de um outro narrador que não guarda nenhuma semelhança com os demais, haja vista que em nenhum momento do livro, além desse, essa construção frasal se repete: ´Era meia-noite, o sol despontava no horizonte. Sentado em pé, numa pedra de pau, nu com a mão no bolso, o homem calado, assim me dizia, enquanto caminhava parado...( p. 57)

Apesar do verbo em primeira pessoa - ´me dizia´ -, não conseguiremos identificar com precisão o referente dessa microestrutura. Se levarmos em consideração que a oposição entre os sintagmas - a incoerência semântica - é o que norteia a construção desse fragmento, a primeira pessoa deixa de existir como referente, passando a se referir à própria estrutura do discurso. Neste caso, o ´eu´ somente se relaciona com ele mesmo, dentro da construção da frase. Desta maneira, esse narrador, como numa colagem, nada guarda de semelhança com aquele que direciona a narrativa quando está se referindo às personagens do romance. É, portanto, um narrador isolado, que faz parte do texto somente neste excerto e que desaparece do texto, depois dessa intromissão.

Esse outro exemplo - do fragmento ´torvelinho da memória´- também demonstra a presença desse narrador híbrido: ´No louco torvelinho da memória, lembranças vêm e vão, consentidas umas, indesejáveis outras.´ (p. 150) Essa microestrutura contém um importante elemento para a elaboração do conceito de memória: a memória voluntária - aquela que passa pelo filtro consciente do narrador (´consentidas´) -, e a memória involuntária, proustiana, do inconsciente - aquela que necessita de estímulos subjetivos que transportam o narrador para uma outra dimensão temporal e espacial e da qual esse narrador não pode fugir (´indesejadas´).

Do que até agora analisamos, percebemos que o narrador de O Mundo de Flora se comporta de várias maneiras, assumindo várias identidades que, em alguns casos, nada tem de comum com os demais. Ele entra e sai da narrativa sem nenhum compromisso com a história da personagem ´Flora´ (mãe e/ou filha), o que faz dele, além do hibridismo que assume, também um emissor de uma mensagem aparentemente sem nenhuma relação com a fabulação, como foi o caso desses dois últimos excertos.

Se pensarmos em termos de memorialismo, ou autobiografia romanceada, podemos pensar que o último exemplo (´No louco torvelinho da memória...´) pode assumir a feição de um texto metalingüístico, em que a autora, através desse narrador híbrido, elabora sua concepção de memória. Esse narrador híbrido é também responsável pelos momentos de epifania do texto, que tem a função tanto de iluminar pontos obscuros, que aparentemente não têm nexo com a fabulação e com o tempo da narrativa - como foi o caso, também, do último exemplo (se entendermos que se trata de um texto metalingüístico, como dissemos no parágrafo anterior) -, como não ter nenhuma função, e aparecer somente como uma colagem, uma iluminação instantânea desse narrador híbrido, o que seria coerente com a estrutura singular desse romance.

A polifonia de vozes, assim, é uma característica do romance moderno. O que vai diferenciar o texto de Ângela Gutiérrez é o hibridismo que o narrador assume. Desta maneira, alguns narradores aparecem camuflados, com identidades desconhecidas, para tentar decifrar, para o leitor, o que há por traz do mundo da personagem.

A técnica da montagem, da colagem, da visão cinematográfica, tudo isso, naturalmente, muita influência teve dos movimentos vanguardistas europeus do início do século, como o Cubismo, o Surrealismo, o Dadaísmo, etc. Há um aproveitamento das técnicas utilizadas pelas vanguardas, que aparecem com novos elementos estruturantes do discurso, como é o caso do refazimento da vida da personagem ´Flora´, no romance analisado.

Ainda em relação ao narrador: ´O narrador distancia-se ainda mais da matéria narrada e converte-se num observador, quase um repórter.´ No romance o Mundo de Flora, pela diversidade de narradores, há aqueles que se comportam como o narrador tradicional, onisciente, mas há aqueles que se distanciam da matéria narrada, como foi o caso dos dois últimos excertos. É o caso também do fragmento ´dentro da gaveta´, em que um deles, em primeira pessoa, assume, em determinado ponto da narrativa, um comportamento distanciado, que quer somente resumir um enredo: ´A estória do conto é simples. Uma menina de cinco anos tenta chamar a atenção da mãe que parece alheia a tudo. Finalmente a mãe nota sua presença e lhe diz coisas que só uma criancinha pode entender. Que vai fazer a mesma viagem que o papai fez um dia, que não pode levá-la. Pede que a menina a deixa só porque vai tomar um pó que a levará para esse lugar tão longe e de onde não voltará. (p.167)

Ou o caso de ´certidão de nascimento´, nítida colagem, em que o narrador somente informa os dados de nascimento de um personagem, utilizando-se, como é comum nestes casos, de uma linguagem completamente referencial: ´Certifico que no livro 165 do Registro de Nascimento, às fls. 385, sob o no. de ordem 226.685, consta que, no dia 30 de outubro de 1970, nasceu uma criança do sexo masculino de nome Diego Fernández Filho...´ ( p. 151)

O narrador desse fragmento assume, naturalmente, uma outra identidade - a de um tabelião -, que somente aparece neste momento da narrativa. Aparece como simples emissor de uma mensagem para, logo a seguir, desaparecer. Neste caso, ele tem a função precípua de um narrador aparentemente descompromissado com o enredo, haja vista esse fragmento não ter, à primeira vista, nenhuma conexão com a história, a não ser a de informar - referencialmente - um nascimento. É um caso típico de transcontextualidade: o discurso de um outro contexto - o do universo cartorário - atuando no contexto do universo literário.

O importante a observar, neste caso, é que a autora, com esse procedimento, vem não só reafirmar que a linguagem não é mais exclusiva de um gênero como categoria impositiva, como também se referir à questão da dissolução dos gêneros, cuja pureza começou a ser abalada quando da intromissão de termos prosaicos à poesia, como disse Haroldo de Campos, em seu livro Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana. A linguagem, assim, qualquer que seja o campo semiótico utilizado, não pertence a nenhum deles com exclusividade.

 

Da estrutura narrativa

 

Por conta do narrador híbrido, que se desloca a cada fragmento, assumindo, como já dissemos, várias identidades, o tempo do romance O Mundo de Flora torna-se, também, fragmentário, não-linear. A vida da personagem é contada sob vários planos temporais, em que cada fragmento assume, na maioria das vezes, uma feição completamente independente do tempo do fragmento anterior, ou do que se lhe segue. Desta maneira, em um determinado fragmento mostra a personagem em uma fase da sua vida.

No fragmento seguinte, esse personagem pode estar vivendo em uma época completamente diferente do anterior; ou o narrador pode se referir a outros episódios que não guardam nenhuma continuidade, nem de tempo nem de enredo, com os fragmentos anterior ou posterior. Por conta dessa estrutura, é que tais microestruturas são montadas cinematograficamente na mente do leitor, que fica encarregado de uni-las e, com isso, dar nexo à narrativa: ´Feriado. Fomos para a casa de praia do meu tio. E o que eu gostava mais na praia era de brincar nas dunas. A subida era difícil. Os pés afundavam na areia fofa e tinha de fazer muita força nas pernas magras para ir subindo. (p. 95)

Como podemos perceber pelos trechos acima, além de o narrador assumir duas identidades -no trecho (I), ele está em primeira pessoa; no (II), está em terceira pessoa -, o tempo dos dois excertos são bem distintos, e não guardam nenhuma continuidade linear.

Todo o texto de O Mundo de Flora é montado desta maneira, por isso, raras são as vezes em que há uma linearidade temporal. Para a autora, através desse narrador - seja ele em primeira ou terceira pessoa -, o que interessa é o momento da lembrança, do episódio vivido pelo personagem. Assim, o tempo e/ou episódio podem ser contínuos ou não. O que observamos é que a descontinuidade prevalece no texto.

O mundo da personagem é reconstituído através de vários planos temporais e episódicos. Por esse motivo é que dissemos, no item anterior, que há a tentativa de reconstrução da história do personagem através dos vários fragmentos que se achavam perdidos na lembrança.

O valor atual, no romance analisado, é o valor da memória, dos episódios da personagem que são revividos como presente, daí a constante mudança de planos temporais. O narrador, neste caso, não conta tais episódios somente como passado, como numa narrativa de tempo cronológico; o tempo, no caso, é presentificado a cada faceta vivida pelo personagem. As fronteiras entre passado e presente, assim, não existem, pois elas se atualizam a cada fragmento.

Cada fragmento do romance analisado pode assumir várias formas: de um poema, de um convite, de um telegrama, de uma certidão de nascimento, etc. O tempo, por isso, é independente em cada fragmento, cuja atualização se processa em cada um deles, daí a subjetividade e a relativização desse tempo. O Mundo de Flora é um romance de muitos tempos, por isso há o indicativo da autora: ´O mundo de Flora, onde tantos mortos moram e alguns vivos, o leitor poderá conhecê-lo de um corrido só, de cabo a rabo, como se diz, ou folheá-lo ao acaso, buscando costurar os retalhos a seu gosto, ou, ainda, poderá guiar-se pelo índice que se segue e pelos indículos que o seguem. (p. 180)

O leitor, portanto, é o encarregado de recompor o mundo da personagem a partir dos vários momentos por ela vivido, que é contado por um narrador descompromissado com a lógica linear. O compromisso desse narrador é o de tentar refazer o mundo de ´Flora´, através dos vários retalhos da memória. O tempo, por conta disso, se desenha pelas lentes múltiplas de vários narradores, em que cada fragmento tem sua independência.

O discurso

O Mundo de Flora é um romance composto de muitos fragmentos, como já dissemos. Essas microestruturas adquirem, por isso, várias feições, assumem várias formas como a de um poema, de uma carta, de um telegrama, etc, como frisamos no item anterior. O discurso, neste caso, também se diferencia a cada nova forma. Utilizamos o termo discurso no sentido que lhe dá Tzvetan Todorov, no ensaio intitulado ´As Categorias da Narrativa Literária´.

A estrutura epistolar não é novidade na literatura. Vários autores a utilizaram como recurso e argumento da fabulação. Tal recurso foi utilizado pelos autores que dele se valeram para dar continuidade à história, à fabulação, num procedimento coerente e explicativo com o restante do enredo.

O narrador, em muitos casos, dá uma explicação para a introdução da estrutura epistolar no enredo. No caso do romance de Ângela Gutiérrez, essa estrutura vem, como as demais, independentes da fabulação; não guarda nenhuma contigüidade com as que se lhe avizinham, como é comum em todo o livro. A epístola, no caso, é uma lente a mais que desvenda o mundo da personagem; assume a função de um narrador a mais:(I) Meu bem, Viajei preocupada. Deixar os meninos assim... Mas é o jeito. Tia Branca não pode ficar só. E a nossa caçula Florzinha? Está tão magrinha! (p. 15); (II) Mamãe, Estou dizendo essa carta para o Papai escrever Quando a senhora viajou, chorou olhando para mim dormindo no berço? (p. 21)

Os dois fragmentos acima, apesar de perfazerem um tipo de comunicação entre os personagens, não guardam nenhuma contigüidade no romance, uma vez que estão separados por vários outros fragmentos descontínuos, daí a necessidade de o leitor estar sempre recompondo o mundo da personagem, através dos vários e descontínuos retalhos que lhe são apresentados. No caso acima, o discurso, como é comum nesse tipo de texto, é referencial, denotativo.

A intertextualidade

A intertextualidade é um procedimento que Domício Proença Filho considera como pós-moderno: ´presentifica-se uma tendência à utilização deliberada da intertextualidade´. Isso ocorre com muita freqüência no romance analisado. Esse procedimento estilístico aparece sob a forma de poemas, de letras de músicas que marcaram uma época, de frases de outros autores: há um diálogo constante entre esses textos; há inclusive a identificação da personagem ´Flora´ com as personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato: ´Narizinho ria de mãos dadas com a Emília. Vamos, Flô. Toma o pó, Flô. O pó de Pirlimpimpim.´ (p.85)

Outros exemplos:(I)O homem da vassoura vem aí / Não sei pra onde vou com a família / Eu só queria, eu só queria / Ver o homem da vassoura em Brasília (p. 141) ; (II) - Pra ver a banda passar / cantando coisas de amor. (MF, p. 149) ; (III) Diga trinta e três. Diga trinta e três. Era dançar o tango argentino Y todo a media luz, crepúsculo... (MF, p. 158) ; (IV) Me solte, doutor, que eu não tenho paciência de ser preso. (MF, p.177); (V)Me encontrará tremendo de medo da mão descarnada, conversando com filósofo do Humanitismo, vivendo amores de perdição e de salvação. (MF, p.177); (VI) Que saudades que eu não tenho da aurora da minha vida. (MF, p.178); (VII) Uma cova rasa, nem larga nem funda, é a parte que me cabe. (p. 178); (VIII)Saio da vida sem entrar na história. (p.178) ; (IX) Viver, todo o mundo sabe, é muito perigoso. (p.179).

Pelos exemplos acima, podemos perceber a deliberada inserção de termos, frases, orações, versos de outros autores, de outros textos, como é o caso, respectivamente, da modinha dos anos 1960 que empolgou o país quando da candidatura de Jânio Quadros à presidência da República; de Chico Buarque de Holanda; de Manuel Bandeira; de Moreira Campos; de Camilo Castelo Branco; de Casimiro de Abreu; de João Cabral de Melo Neto; de Getúlio Vargas; de Guimarães Rosa.

Definindo a intertextualidade como ´a interação semiótica de um texto com outro(s) texto(s)´, Vítor Manuel de Aguiar e Silva vale-se do conceito de palimpsesto para falar das camadas textuais que existem, quando dos diálogos entre tais textos.

No caso dos excertos acima, temos o exemplo de intertextualidade ´hetero-autoral´ - segundo terminologia desse mesmo teórico - que é a interação de textos de autores distintos. Ângela Gutiérrez não se utiliza somente de textos literários para revelar a intertextualidade, mas de fragmentos de textos de outros contextos semióticos, como é o caso acima, de uma frase - modificada, como podemos notar - da carta escrita por Getúlio Vargas antes de suicidar-se; ou o caso da famosa frase do guerrilheiro Che Guevara: ´Hay que tener dignidad hasta el fin, hasta la muerte´ (p. 178). Ao final do livro, a autora se vale do final de algumas histórias infantis para elaborar o ´segundo´ final do seu romance: ´Entrou pela perna do pato, saiu pela perna do pinto e o senhor-rei mandou dizer que contasse mais cinco. Quem quiser que conte as outras; eu, por aqui, paro. Não quero criar rabo de cutia contando estória de dia. (p.179)

A pós-modernidade na literatura, como pudemos perceber pelos elementos que analisamos neste trabalho, é ainda muito complexa.

Muitos princípios ainda estão sendo propostos, muitos textos ainda precisam de análise, e somente a partir do trabalho incansável dos estudiosos é que poderemos chegar a uma conceituação e uma delimitação precisa dessa nossa época tão cheia de contradições.

 



*O autor é professor, contista, ensaísta e poeta.

 

Direto para a página de Angela Gutiérrez

Direto para a página de Paulo de Tarso Pardal

   
 
 

 

 

 

 

7.4.2007