Raphael Barbosa Lima Arruda
15.11.2006 - Caderno Cultura
MANOEL DE BARROS Aspectos ESTILÍSTICOS E
SEMÂNTICOS
Nos poemas de Manuel de Barros, há uma forte carga
semântica e estilística, pois o poeta brinca com as
palavras, mudando, muitas vezes, o significado real que
possuem. Como ilustração, cito o poema VI, integrante da
parte inicial de O livro das ignorãças (publicado em
1993), chamado ´Uma didática da invenção´, parte em que
o poeta define como é o seu fazer poético:
No
descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio
do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá,
Onde a criança diz: eu escuto a cor dos
passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar
não Funciona para cor, mas para som. Então se a
criança muda a função de um verbo, ele delira. E
pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a
voz De fazer nascimentos - O verbo tem que pegar
delírio.
Notamos, no poema acima, o relato
da origem, mostrando que é notório o valor soberano da
palavra. Sobretudo, o eu lírico faz lembrar das
expressões presentes no livro bíblico
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| de João 1:1, que
ora: ´No começo era o Verbo´ e, anterior ao
cristianismo, havia uma visão mítica de que Deus
empregou a palavra como forma de expressão e como
instrumento de criação de todos os seres.
Está
clara a soberania da palavra, pois o verbo no 1º verso é
uma metáfora para a linguagem, nos inferindo que o
verdadeiro autor de um poema não é nem o poeta nem o
escritor, mas sim a linguagem.
Nessa brincadeira
poética, o eu lírico manipula a linguagem, introjetando
neologismos na incorporação do prefixo des- na palavra
´começo´ , resultando ´descomeço´. Esse termo inaugura
um novo paradigma que constrói a transposição do
discurso sagrado ao profano. Até mesmo a maiúscula
alegorizante do verbo perde-se, por isso, através da
inversão estabelecida pela ordem, que há uma
transgressão da esfera divina para a
profana.
Têm-se dois momentos míticos, são eles:
´No descomeço (1º verso) e o ´começo´ (3º verso). O
primeiro nos remete ao tempo inicial marcado pelo
´verbo´;
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| já o segundo é o
posterior e formado pelo ´delírio do verbo´. Notamos a
personificação (prosopopéia) do verbo que se torna
exaltado, entusiasmado, assim como temos a informação de
que depois do ´descomeço´ é o ´começo´.
Os versos
nº 4 e 5: ´Onde a criança diz: eu escuto a cor dos
passarinhos´ nos remetem à fala sinestésica da criança,
fazendo-nos perceber a mistura de sentidos humanos:
audição e visão em ´escuto a cor dos
passarinhos´.
Em seguida, mostramos novamente nos
últimos versos, o processo de personificação do verbo em
´a criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som´. No entanto, ´caso a criança
mude a função do verbo, ele delira´.
Enfim, o
verbo é o ser supremo no poema ´Didática de uma
invenção´, mostrando-nos, o incrível processo de criação
literária do poeta.
O poema ´A arte de
infantilizar formigas´ consta no Livro sobre nada, obra
editada em 1996, que rendeu a Manoel de Barros o Prêmio
Nestlé de Literatura pelo alto
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| grau do jogo de
palavras instaurado para criar uma realidade
própria:
Depois de ter entrado para rã, para
árvore, para pedra - meu avô começou a dar
germínios Queria ter filhos com uma
árvore. Sonhava de pegar um casal de lobisomem para
ir vender na cidade. Meu avô ampliava a
solidão. No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos
fundos do quintal : Meus filhos, o dia já envelheceu,
entrem pra dentro. Um lagarto atravessou meu olho
e entrou para o mato. Se diz que o lagarto entrou nas
folhas, que folhou. Aí a nossa mãe deu entidade
pessoal ao dia. Ela deu ser ao dia, e Ele
envelheceu como um homem envelhece. Talvez fosse a
maneira Que a mãe encontrou para aumentar as
pessoas daquele lugar que era lacuna de
gente.
É notório no discurso a forte carga
emotiva que o ´avô´ possui em relação à natureza, pois
são incorporados aos elementos da mãe terra como a rã
(animal), a árvore (vegetal) e a pedra (mineral),
havendo uma ní
tida integração
com esses seres. Desta forma, o avô passa ´a dar
germínios´, mostrando a idéia de fertilidade. Tal idéia
sobre fertilidade é expressa através da anunciação de
seus extravagantes desejos como notamos nos versos nº 3,
4 e 5.
´Queria ter filhos com uma
árvore./Sonhava de pegar um casal de lobisomem para
ir/vender na cidade.´
Nota-se que além da
união mística do avô com a árvore (´queria ter filhos
com uma árvore), é empregado o verbo ´sonhava´ que pode
ser visto como uma seqüência de eventos psíquicos
ocorridos durante o sono, ou como um desejo e aspiração.
Essa é uma forma de mostrar os devaneios que perpassavam
a mente do avô, quando contemplava a imensurável
natureza presente em sua vida.
Quando o avô
menciona que ´sonhava de pegar um casal de
lobisomem´, nos dá uma idéia alógica, pois a
expressão ´lobisomem´ origina-se do latim lupus homo,
homem lobo, gênero masculino. Já o termo casal nos
remete a idéia da união entre o macho e a
fêmea. De fato, o
eu lírico desconstrói a lenda, a fim de que haja
procriação.
Na seqüência, quando é dita a
finalidade desta ação, ´para ir/ vender a cidade´,
nota-se embutida a noção de comércio que remete a toda e
qualquer cidade. Dessa forma, o poema estabelece uma
forte oposição entre o primitivo (´lobisomem´) e o não
primitivo (´cidade´) que o avô deseja romper.
No
verso nº 6, ´Meu avô ampliava a solidão´, o avô surge
isoladamente, em liberdade, fato em que explica todos os
delírios marcados pelo eu lírico. Dessa forma, o avô
apesar de ser um membro da família, apresenta-se
distinto de um personagem do cotidiano. O avô parece se
isolar da família pelas suas capacidades e qualidades,
as quais ele quer estender aos outros, por isso quer ter
filhos com uma árvore, vender um casal de lobisomem:
afinal, cultivar a inútil poesia.
No que
apresenta o verso nº 7, tem-se outra indicação temporal
´no fim da tarde´ que remete a uma rotina, conforme
expressa o verbo aparecer, núcleo (´aparecia´), núcleo
da oração. É interessante ressaltar o aparecimento de
´nossa mãe´ que, ao contrário de ´meu avô´, apresenta-se
antecedida pelo pronome possessivo em primeira pessoa do
plural. Daí pode-se inferir que o ´avô´ materializa a
liberdade do eu lírico, já a ´mãe´, os
limites.
No tocante aos versos nº 8 e 9:
´Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem para
dentro´, observa-se um processo de personificação
do dia (prosopopéia) que dá vida ao dia, além do
pleonasmos vicioso ´entrem para dentro´, típico da
linguagem coloquial. Nota-se a expressividade do eu
lírico por ser fiel em relação à linguagem da mãe,
refletindo grande autenticidade dessa situação
cotidiana.
Nos versos seguintes temos: ´Um
lagarto atravessou meu olho e entrou para o mato / Se
diz que o lagarto entrou nas folhas, que folhou.´
Primeiro, quando se diz ´atravessou o olho´ é uma
metáfora feita a percepção intelectual do eu lírico (a
imaginação poética). E o mato, por sua vez, representa o
terreno inculto (a escrita poética). Enfim, notasse no
verso nº 11 a ambigüidade no vocábulo ´folha´ , pois
tanto pode se referir a uma parte das plantas , como ao
papel que serve para à escrita.
O trecho do poema
´Canção do ver´, presente na obra ´Poemas Rupestres´, de
Manoel de Barros, relata-nos o forte poder criativo do
poeta em gerar uma realidade própria para os fatos
mundanos:
1. Por viver muitos anos dentro
do mato Moda ave O menino pegou um olhar de
pássaro - Contraiu visão fontana. Por forma que
ele enxergava as coisas Por igual como os
pássaros enxergam. As coisas todas
inominadas. Água não era ainda a palavra
água. Pedra não era ainda a palavra pedra. E
tal. As palavras eram livres de gramáticas
e Podiam ficar em qualquer posição. Por forma que
o menino podia inaugurar. Podia dar as pedras
costumes de flor. Podia dar ao canto formato de
sol. E, se quisesse caber em um abelha, era só abrir
a palavra abelha e entrar dentro dela. Como se
fosse infância da língua.
Nesse discurso, o
eu lírico vive integrado na natureza como se fosse um
pássaro. Enxerga como um pássaro, pois para ele as
coisas presentes na mãe terra eram iguais, ou seja,
viviam em harmonia plena. A arte de criação poética é um
recurso utilizado pelo autor para transgredir a esfera
da normalidade, ou seja, uma nova realidade é recriada.
Enfim, o cerne da poética barrosiana é o cultivo da
poesia experimental. Como ilustração, leiamos os versos:
´As palavras eram livres de gramáticas e/Podiam ficar em
qualquer posição./Por forma que o menino podia
inaugurar./Podia dar as pedras costumes de flor./Podia
dar ao canto formato de sol.
Tudo era inominado,
pois não havia a austeridade da gramática normativa para
nomear os seres como é o caso do substantivo. Notamos,
então, a total inversão da ordem natural dos seres,
também presente no trecho seguinte:
2. A de
muito que na Corruptela onde a gente Vivia Não
passava ninguém Nem mascate muleiro Nem anta
batizada Nem cachorro de bugre. O dia demorava de
uma lesma. Até uma lacraia ondeante atravessa o
dia Por primeiro do que o sol. E essa lacraia
ainda fazia estação de recreio no circo das
crianças a fim de pular corda. Lembrava a
tartaruga de Creonte Que quando chegava na outra
margem do rio As águas já tinham até criado
cabelo. Por isso a gente pensava sempre que o
dia de hoje ainda era o ontem. A gente se
acostumou de enxergar antigamentes.
Nos
versos nº 3, 4 e 5 temos a figura de repetição ´anáfora´
do advérbio de negação ´nem´, que é relevante para a
intensificação dos conteúdos e estruturação do ritmo na
poesia.
É notória a nostalgia predominante no
ambiente em que o eu lírico vive, pois tudo se reduz ao
nada. Há uma metáfora em relação ao tempo que passa
vagarosamente em ´O dia demorava de uma lesma´. Ainda
menciona as ações de uma lacraia que atravessava o dia,
fazendo estações de recreio no circo das crianças,
havendo uma relação harmônica desse inseto traiçoeiro
com as crianças.
Tamanha era a vagarosidade do
dia que o eu lírico fica preso às imagens pertencentes
às reminiscências de sua infância. Para mostrar
novamente a morbidez do dia e o rico processo criativo
do autor, citemos um outro trecho presente no poema
Canção do Ver:
3. Pela forma que o dia era
parado de poste Os homens passavam as horas sentados
na Porta da Venda De Seo Mané Quinhentos
Réis que tinha esse nome porque todas as coisas que
vendia custavam o seu preço e mais quinhentos
réis. Seria qualquer coisa como a Caixa Dois dos
Prefeitos. O mato era atrás da Venda e servia também
para a gente desocupar Nem as emas solteiras que
despejavam correndo. No arruado havia nove
ranchos. Araras cruzavam por cima dos
ranchos conversando em ararês. Ninguém de nós
sabia conversar em ararês. Os maridos que não ficavam
de prosa na porta da Venda Iam plantar
mandioca Ou fazer filhos nas patroas A vida era
bem largada.
Observa-se a ociosidade dos
homens que só freqüentavam a venda de ´Seu Mané
Quinhentos Réis´. Temos presente o desvio ortográfico em
´Seo Mane´, típicos da linguagem coloquial.
É bem
claro o comportamento do homem, dos cachorros e das emas
no momento de fazerem as necessidades, quando o eu
lírico utiliza os verbos ´desocupar´ e ´despejar´ que
remetem a um eufemismo para outros verbos que trazem uma
conotação mais pejorativa como ´obrar´ ou
´defecar´.
Como ultimo recurso, o autor utiliza o
neologismo ´ararês´ que era a língua falada pelas araras
que cruzavam por cima dos ranchos.
Por fim,
devido à falta de opção, os homens que não se
restringiam a freqüentar a venda, ou plantavam mandioca
ou faziam filhos nas patroas.
Assim, tem-se como
cerne na poética de Barros a completa transposição das
palavras, mudando o seu significado próprio, trazendo,
pois, a composição de um novo mundo que é habitado por
seres presentes da mãe natureza como o pássaro, a rã, a
árvore, o cachorro etc. De forma análoga, encontramos a
representação de pessoas que servem como elo na
desmistificação de seu fazer poético.
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