Roberto Pontes
Poesia é Fala
Insubmissa
Entrevista de Roberto Pontes a Márcia Pesavento
1) Desde quando vive
no Rio e como uma cidade pode influenciá-lo?
RP – Moro no Rio há
três anos. Vim para cursar o doutorado em Literaturas de Língua
Portuguesa na PUC-Rio. Mas sempre estive ligado ao Rio. Muitas
pessoas da minha família moram aqui desde l930 e a partir da década
de sessenta passei a vir com freqüência a essa querida terra. O Rio
de Janeiro influencia qualquer um que por aqui passe, brasileiro,
estrangeiro, extra-terrestre... A mim, particularmente, tem-me
oferecido inúmeros temas para poemas, crônicas, e até mesmo música
popular. Já escrevi um sonetilho motivado pela rua da Passagem, uma
crônica para o Manolo do famoso Antonio’s, e um samba intitulado
Cariocando. Como vêem, esse é o modo pelo qual a cidade influencia
quem a ama.
2) Seu penúltimo
livro, Memória corporal, continha poemas eróticos e o que está
lançando, Verbo encarnado, poemas políticos. Como compararia suas
abordagens de diferentes temáticas?
RP – Bem, após
publicado meu primeiro livro, em 1968, um belo dia me dei conta de
que nele havia três vertentes distintas: experimentalismo verbal,
erotismo e política. Como os originais guardados consolidavam e
ofereciam material para um livro de cada vertente, passsei a
acalentar a idéia de publicar livros bem distintos tematicamente. A
idéia evoluiu e acho que se robusteceu, pois Lições de espaço é o
livro experimental, Memória corporal é o erótico, e Verbo encarnado
é o político, de um primeiro ciclo criativo. Isso agora parece ser
um programa de obra. A seguir virão Tempo único & Os movimentos de
Chronos, texto experimental; Quarto solo, texto erótico; e
Inventário gris, texto político. Essas variações têem por finalidade
renovar minha poesia para não cansar o leitor. Mas tomo também
outros cuidados ao propor meu programa criativo: a) escrever para
acrescer qualquer coisa (palavra, uso, modo, etc) ao idioma em que
escrevo; b) escrever para enriquecer um pouco mais a sensibilidade
alheia; c) escrever para elevar o grau de consciência que já tem o
leitor. Penso que se não conseguir através de um poema ou de um
livro atingir estes três objetivos, melhor seria não ter escrito nem
publicado. Eis minha bússola criativa.
3) Quanto de memória
pessoal existe em cada trabalho seu?
RP – Mnemosyne é o
anjo tutelar de todos os poetas. Sem a memória não pode haver
elaboração poética. Tudo o que se transforma em verso provém de uma
espécie de memória: arquetípica e/ou épica (Lições de espaço);
afetiva/involuntária (Memória corporal); histórica/política (Verbo
encarnado). A memória voluntária e a memória involuntária são
mecanismos importantes da mente humana, hoje muito estudadas. A
primeira diz respeito à inteligência e mais serve ao senso prático.
A segunda é aquela que consegue captar as dimensões mais profundas
do passado. É essa a que foi habilmente exercitada por Proust e que
muito tem servido aos poetas. É sempre produto de um choque, é
memória pessoal , intransferível. Em cada verso que escrevo há um
pouco de colaboração da mãe das Musas.
4) Como é escrever
poesia erótica? Memória corporal foi inspirado em experiências
próprias?
RP – Sim. Foi Camões
quem disse que sua poesia era "de experiência feita". Na verdade me
parece impossível que um verso, um poema, um livro, que não se faça
dela possa transmitir alguma experiência. O amor é matéria de
difícil realização poética, talvez porque seja na vida real
semelhante a uma chama que luta contra o vento. A poesia erótica não
se escreve com o corpo recém-saciado. Essa espécie de
transbordamento – termo que prefiro em lugar de inspiração – deve
ser macerado e o seu filtro ideal para tanto é a memória de que há
pouco falamos. Para não irmos muito longe, no último poema do livro
citado em sua pergunta, escrevi: "Quem esta morte de bom grado
aceita/ quer deixar escrito na memória,/ na verdade indestrutível de
um poema,/ o seu perdão, o seu adeus,/ o seu soturno desamparo
ausente." Nesses versos há uma referência clara à memória como
registro da experiência humana , e outra à verdade que deve ser e
conter um poema.
5) Comente o
sugestivo título Verbo encarnado.
RP – O título foi
escolhido porque o sintagma contém peso bíblico, político,
folclórico e lingüístico em si. Todos já ouvimos na vida, alguma
vez, a sentença: "E o verbo se fez carne e habitou entre nós." Todos
sabemos qual a simbologia política do encarnado ou do vermelho.
Todos sabemos que nas festas populares do interior do Brasil há
disputas tradicionais entre os partidos azul e encarnado. Todos
sabemos que o termo encarnado é preferido pelos brasileiros para
designar o vermelho. Ora, penso que os títulos, assim como a própria
poesia, devem ter o máximo de ambigüidade que puderem portar. Essa
foi a razão da escolha do título e eu espero que o livro habite
entre vós.
6) Você disse que
poesia é fala insubmissa nas notas posteriores de Verbo encarnado.
Como articula esta insubmissão em seus poemas?
RP – Hugo Friedrich
em seu precioso livro Estrutura da lírica moderna, afirma que esta é
uma oposição que canta contra um mundo dos hábitos, no qual os
homens poéticos não podem mais viver. Por isso mesmo, porque sou um
homem a viver numa modernidade que muitos teimam em chamar de
pós-modernidade; porque também minha lírica é moderna, concebo que
cumpre ao poeta manifestar sua fala insubmissa ante um mundo que lhe
é adverso, tanto quanto o é para qualquer ser humano que tenha a
simples aspiração de ser feliz. Mas como pode um homem, sobretudo um
poeta, lograr a felicidade individual, se a desigualdade social é
cada dia mais gritante? Se a fome e a miséria dormem nas calçadas
das ruas em que moramos e nos batentes dos edifícios que habitamos?
Se a insegurança social continua uivando em nossos ouvidos? A
insubmissão poética está articulada em meus poemas quando relembra
coisas assim, inclusive a recente ditadura brasileira, sem cair no
panfletarismo.
7) "Quando Veneno" é
dedicado ao poeta Moacyr Félix e vários outros poemas de Verbo
encarnado são ofertados a alguém. Fale sobre esta constante do
livro.
RP – Dedicar poema a
uma pessoa é reconhecer que esta é merecedora da homenagem. Um homem
não deve passar pela vida sem deixar marcas. E quando se trata de um
poeta, seus olhos devem sempre pousar nos de seus semelhantes de
modo a deixar marcas indeléveis. Os amigos a quem dediquei poemas em
meu livro são como pedaços de mim. Creio que um pouco do que sou se
infiltrou neles e um pouco deles em mim. Afinal, pode haver coisa
mais cálida do que a amizade? E a amizade não vem a ser uma das
formas válidas de amar? Uma constante na minha vida é querer bem. Um
rosto que vejo uma única vez jamais esqueço. Posso não vê-lo nunca
mais, mas para sempre estará comigo. E há pessoas que tomam mais
espaço em nosso sentir, até mesmo por uma questão de proximidade. A
essas dediquei alguns poemas, mas os que ofereço a um ou outro são
uma homenagem aos que estão numa relação de mais distância.
8) Qual é o seu
melhor livro?
RP – A pergunta mais
parece um xeque-mate... Livro é como filho ou filha. Temos que fazer
uma política meio marota. Dizer que nenhum presta ou que todos são
bons... Na verdade, prefiro confessar que a mesma dose de memória,
verdade, amor e transpiração foi posta em cada verso, cada poema,
cada livro. Que pai se sentiria à vontade para apontar seu melhor
filho? Prefiro dizer que amo a todos, pois deram e dão muito
trabalho.
9) Você tocou numa
questão interessante que é o problema das editoras. Diga o porquê da
dificuldade de editar um livro de poesias.
RP – A meu ver não é
tão difícil editar apenas livro de poesia. A edição de qualquer
gênero é muito difícil. Só não o é para o best-seller, pois o que se
vende sob esse rótulo é imposto por um sistema perverso e centrado,
de origem externa, que lança seus tentáculos em todas as áreas de
produção textual e em todas as partes do mundo. O best-seller é
promovido publicitariamente por mútiplos meios. Ora, veja só o que
aconteceu com o canto gregoriano. Há três anos essa espécie de
manifestação artística era inviável para o consumo massivo. Bastou a
publicidade popularizá-lo para cair no goto do povo. Você há de
convir comigo que a poesia tem público, aliás muito seleto, que os
editores e livreiros não sabem localizar nem trabalhar. A poesia bem
editada – veja por exemplo as obras em papel-bíblia da Nova Aguillar
– vende e se esgota. A de má qualidade, a pessimamente impressa e a
não- promovida, essas sim é que são difíceis de vender.
10) São tantas as
dificuldades... Que conselhos você dá a um jovem poeta?
RP – Dificuldades
editoriais, é verdade, que não se confundem com as da própria
criação poética. Conselhos não devem ser dados, mas eu sugiro que os
fascinados pela poesia leiam as insuperáveis Cartas a um jovem poeta
de Rainer Maria Rilke. A leitura dessas cartas nos dá duas
alternativas: compromete integralmente ou afasta de uma vez por
todas quem as lê, da poesia. Mas, costumo dizer sempre que o poeta
novo só pode vir a ter sua própria autonomia de linguagem por
intermédio da leitura de toda a poesia que lhe for anterior –
brasileira ou não. Afinal, escrever poesia requer haver assimilado,
antes de tudo, linguagens anteriores.
11) Para quando se
pode esperar seu próximo livro?
RP – Meu quinto e
próximo livro, cujo título é Tempo único & Os movimentos de Chronos,
deverá sair até o fim do ano. A questão editorial é grande
complicação, por isso pode até ser que passe para o início de 1997.
Mas isso é outra história, fica para outra ocasião. Muito obrigado a
vocês e parabéns pelo trabalho desenvolvido no Diretório Acadêmico.
In: jornal Contexto do Diretório Acadêmico Lima Barreto dos alunos
de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro ano I, nº 2,
out. 96.
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