Simone Ribeiro
04/10/2003
A gênese árdua da
criação - Philippe Willemart
Espontaneidade e inspiração, mitos que cercam a invenção
literária, vêm sendo pacientemente derrubados pelo professor belga
Philippe Willemart, radicado no Brasil desde 1983. Na semana
passada, o especialista em crítica genética esteve em Salvador, a
convite do Colégio de Psicanálise da Bahia, falando a respeito de
criação, pesquisa e arte em Marcel Proust. Ele sustenta que o
valor de uma obra, um romance, um conto ou um poema, normalmente
esconde um trabalho braçal e intelectual, de noites a fio, revelado
através dos manuscritos. Rascunhos ou bilhetes, todo e qualquer
material que antecede o nascimento de frases, versos e capítulos
inteiros valem como indícios. Na entrevista a seguir, o diretor do
Laboratório do Manuscrito Literário, ligado ao Núcleo de Apoio à
Pesquisa em Crítica Genética (NAPCG) da USP, também explica como
a psicanálise se alia ao processo de decifrar e interpretar textos
e que a procura de um “grau zero” da escritura, como formulou o
teórico francês Roland Barthes, é uma obsessão dos gênios.
Willemart já publicou, entre outros, Escritura e Linhas Fantasmáticas
(1983), O Manuscrito em Gustave Flaubert (1984), Além da Psicanálise:
a Literatura e as Artes (1995), Proust, Poeta e Psicanalista (2000)
e Educação Sentimental em Proust (2002).
Simone Ribeiro
Simone Ribeiro - Professor, gostaria de começar perguntando o que
é a crítica genética e qual a sua relação com a psicanálise.
Philippe Willemart - A crítica genética tem como objeto o estudo
dos manuscritos dos escritores, dos artistas e de qualquer um que
comece uma coisa e deixe traços. Com os escritores, é bem mais fácil,
principalmente os do século XIX, como Flaubert e Proust, que
deixaram vários rascunhos. O problema é decifrar. Demorei um ano
para decifrar 100 folhas de um conto de Flaubert, “Heródias”,
que representam 10 páginas publicadas. Em seguida, é preciso
classificar, dar uma cronologia a esses manuscritos, porque muitas
vezes as bibliotecas recebem um pacote da família e deixam lá.
Depois, é preciso interpretar.
SR - E como objetivamente isso acontece?
PW - Estamos tentando através dos manuscritos detectar os processos
de criação dos escritores, como eles passavam de uma frase à
outra. Muitos copiam uma página e trabalham à margem, recopiam e
fazem um novo texto. E aí chegamos num momento-chave, que é a
rasura, para mim, a porta de entrada da criação. A partir dela,
alguém ou algo tocou o escritor, e ele rasurou. É lá que entra a
psicanálise. A rasura é o momento em que o escritor deixa a sua
intenção primitiva de escrever e escuta. Escuta o quê? A tradição
literária, cultural, uma música, a mulher dele passando na frente,
qualquer coisa. Quando rasura, o escritor se deixa levar tanto pelos
terceiros quanto pela linguagem, que é um fator importantíssimo na
construção de uma obra.
SR - A tarefa de decifrar manuscritos exige especialização?
PW - Exige dedicação e uma prática de memorização do texto
publicado, porque muitas vezes é repetição. Repetições que são
feitas nos rascunhos. É preciso, portanto, conhecer o texto de cor.
SR - Na palestra que veio fazer em Salvador, o Sr. falou sobre a
criação em Proust. É possível resumi-la?
PW - Chamei essa palestra de “A Lógica do inexistente na elaboração
proustiana”. O inexistente é uma categoria matemática encontrada
por Gotlob Frege (1848- 1925), um alemão, que é a base de toda a
matemática de hoje. Uso GF tentando encontrar uma fórmula matemática
que pode explicar melhor a criação artística. É difícil
resumir, mas o fato é que qualquer escritor tem em vista um ideal,
uma perfeição, como se fosse um deus. A rasura vem e ele volta à
estaca zero. Qualquer avanço significa eliminar o que era e voltar
a trabalhar numa outra coisa. É lá que está GF, que diz que o
zero passa por qualquer operação nossa (1, 2, 3, 4).
SR - Foi a matemática que o levou a a esse resultado?
PW - Não só a matemática. Eu também estudei uma Bíblia
transcrita do século XV, que encontrei na biblioteca de José
Mindlin, em São Paulo, onde se vê a construção do mundo, a mão
de deus, em dois, três, quatro ciclos, cada dia correspondendo a um
ciclo da criação. Deus começou a criar quando entrou na dimensão
do tempo. É só a partir daí que ele encontra a imperfeição,
quando se submete a uma certa anulação do que é. É lá que eu
vejo a semelhança entre escritor e deus.
SR - A união da psicanálise à crítica genética passa por que
teorias?
PW - Freud e Lacan, sobretudo, no sentido de que o escritor esquece
o seu eu imaginário, mas eu nunca, nunca, me atrevo a estudar a
vida do autor. Isso não faz parte. É impossível fazer psicanálise
em alguém que não está.
SR - Que descobertas mais importantes de Proust já fez?
PW - É difícil resumir, mas Proust diz coisas que nenhum
psicanalista falou. Os artistas, às vezes, dizem muito mais do que
os psicanalistas. Aliás, foi Freud quem falou isso. Só que muitos
esqueceram. Até os anos 70, 80, se tentava psicanalizar o autor
através de seus escritos. O que eu estou achando é que não se
precisa de manuscritos para estudar os processos de criação. Lendo
os textos de Proust você já os reconhece. Lá eu me oponho aos
estudiosos franceses.
SR - E a ditadura da informática? Não põe em risco o estudo de
manuscritos?
PW - Os escritores americanos, espertos, sabem que os manuscritos não
existem mais. Eles escrevem uma versão no computador, guardam as
versões diferentes e depois vendem. Não é a mesma coisa que um
manuscrito rasurado, é verdade, mas é uma possibilidade de se
manter...
SR - Que dificuldades enfrentou para rastrear textos tão
antigos?
PW - Em geral os escritores escondem os seus manuscritos. Victor
Hugo é um deles. Por quê? Porque é mostrar que ele estava
inspirado quando escrevia, não quer mostrar o trabalho que dá
(risos).
SR - É o caso da prosa, mas haveria algum exemplo a citar na
poesia?
PW - Eu não conheço muito... Salvo (Paul) Valéry, que deixou uns
cadernos. Mas ele, também, mostrou que a sua poesia era resultado
de um trabalho intenso, de construção. É possível medir o valor
de um escritor pelo número de manuscritos que deixou, e não pela
espontaneidade.
SR - Era comum, no passado, escritores cederem seus escritos aos
copistas. Que atenção o Sr. dá a essa figura intermediária?
PW - É, os copistas às vezes cometiam erros que eram passados à
posteridade. É lá que entra, mais uma vez, a presença do
terceiro. Prova que o escritor não é o único compositor na obra.
O editor também compõe, assim como o revisor, o copista, todos
colaboram na criação. (Jean-Paul) Sartre, por exemplo, tinha uma
novela, Le Mur (O Muro), que o editor publicou com um monte de
erros. Só que o público já havia aceito essa versão. Não tinha
jeito mais de corrigir.
SR - O Sr. começou com Flaubert. Poderia relatar esse início?
PW - O Flaubert foi o primeiro com quem eu tive contato. Eu estava
fazendo um pós-doutorado, em 82, em Paris, e o professor que me
convidou disse “olha, aí está um manuscrito que ninguém viu
ainda, fica à vontade, decifra e se vira”. E assim fiquei um ano
decifrando capítulo por capítulo, participei de várias
atividades, estive em contato com museus e entrei na crítica genética.
SR - O que pensa sobre essa tendência do mercado editorial de
publicar livros de correspondências? Não acha um excesso
comercial?
PW - Não, não. Mário de Andrade, por exemplo, se achava dono da
literatura, como se vê a partir da sua correspondência, ensinava
como escrever, a fazer poesia. Penso que é bom e serve muito a nós,
da crítica genética.
SR - Na crítica genética, tudo interessa? Desde um manuscrito a
um pedacinho de papel ou guardanapo? A propósito, teria algum fato
curioso a revelar?
PW - Tudo que antecede o texto. Nada é descartado. Nathalie Mauriac,
que é tetraneta do Proust, descobriu em suas gavetas uma coisa
totalmente nova do que fôra publicado, uma parte inteira do romance
A Fugitiva. Foi à editora, a Gallimard, e eles recusaram. Ela teve
que publicar por fora. Isso quer dizer que Proust trabalhou nessa
obra até o final da sua vida. Colocou a palavra FIM num certo
momento, mas continuou escrevendo-a. Obras Completas, para mim, não
existem.
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