Túlio Monteiro
JOSÉ ALCIDES PINTO
OU
EU SOU AQUELE QUE COME AS
FLORES DO ANIVERSÁRIO
Refratário aos mistérios
e enigmas do encantado, em atração constante pelo mito, pela magia,
pelo difuso, pela penumbra da inconsciência, possui a grande ciência
do texto lírico, belo, inovador e ousado. Travestido de
compadre do diabo, é, entretanto, um romeiro devoto, capaz de fazer
promessas e vestir o balandrau do Pobrezinho de Assis. Finge regar
os caminhos de Satã para vencê-lo de tocaia e ganhar as graças de
Deus.
(Juarez
Leitão)
I
Sábado cedo!
Como de costume, levanta-se
esticando músculos e ossos já utilizados, amiúde, por mais oito
décadas. Passara a noite nu, porque o nu nunca lhe fora mais que
beleza, liberdade corpórea, utilização da carne em prol da
satisfação mútua dos corpos que, um dia, acolheram o seu em alcovas
muito ou nada corretas - o que definitivamente não lhe importava -
já que sexo nunca nada lhe mais fora que o prata emanado das
estrelas e luas do caleidoscópio estridente de gozos bramidos noites
adentro, pois todo homem que não presta e se preza faz sua mulher
perder a vergonha, gemer e voltar sempre aos seus braços e beijos.
Pois como a Lua excita a mente dos loucos, desperta o ciúme e a
paixão dos poetas, levanta o nomadismo dos ciganos e faz com que o
assassino vislumbre de longe a sua vítima, assim as mulheres e os
homens livres de dogmas puritanos conduzem seus pares à sublimação e
ao clímax... a Eros e Tanatos.
Não se queixava
mais da vida, apesar de já ter perdido todos os “bicos” que fazia
nos jornais, andando agora doente, os nervos escangalhados, o
coração dando arrancos, muitas vezes infligindo-lhe noites em
insônias rebeldes que o levavam a pensar em crimes, suicídios e
outras coisas absurdas, satânicas até.
Sim! A velhice
havia-lhe chegado qual grades intransponíveis. Olhos mirados nos
espelhos da escrita, enxergava-se agora espectro, um velho sem
família, sem parentes ou amigos. Um trapo, um bicho indefeso atirado
aos abutres amontoados em colinas pontiagudas e labirínticas que
certamente ocultam dragões, herdeiros, talvez, daquele que habitou -
e por lá ainda durma pesado sono - as profundezas do Alto dos
Angicos, pedaço do Ceará que o Coronel-garanhão Antônio José Nunes,
em século já ido, arrebatou das mãos dos Tremembés.
Trinca-se o
espelho da imagem envelhecida. Que se fossem, malditamente, para o
mais abissal dos Infernos de Dante as lembranças de tempos,
felicidades, sofrimentos e corpos passados. Valia-lhe mais o ali e o
presente.
Oito décadas e meia pelo
setembro que se aproximava, já tantas vezes havia sentido a morte
roçar-lhe sobre os ombros com seu carrilhão de plumas eriçadas como
a cauda de um réptil venenoso, que no mundo nada mais o assustava.
Preferia repetir Fernando Pessoa e “exigir de si mesmo o que sabe
que não poderia fazer. Pois não é outro o caminho da beleza”. Ou
Byron, “onde todas as coisas que nasceram, só nasceram para morrer.
E a carne é uma erva que a morte ceifará”.
II
A manhã daquele sábado já
deslizava para a tarde quando decidiu sair, deixando de lado o
passado remoto que sempre teimava em aborrecer-lhe com coisas que só
lhes serviam de entrave na vida. O dia estava quase pelo meio e
flanar pelas ruas com ou sem saída da velha Gentilândia seria o
remédio maior para o tédio que o invadia. Era o revelho dragão que
mais uma vez deixava a Vila Cordeiro para serpentear os ares da
cidade que escolhera para servi-lhe de caverna.
Vôos tranqüilos
rumo ao centro da cidade, quase nunca repetia percursos, algo assim
sem querer deixar pistas, rastros aéreos de seu Norte Verdadeiro: a
Literatura! E como escrevia furiosamente bem aquele sábio dragão,
riscando os céus da prosa e da poesia com a maestria pertinente
apenas aos guardiães da literariedade de primeira linha.
Entretanto, no
final daquela manhã de sábado, o monstro fabuloso resolveu parar seu
bater de asas e mergulhar em direção ao chão. Seguiria andando,
podendo, assim, ver e rever velhos conhecidos que lhe cumprimentavam
quase em reverência sempre que seus pés e braços alados tocavam o
solo infértil e relegado aos desprovidos de almas poéticas. Nessas
horas, transmutava-se em humano, disfarçando-se para não dar na
vista, nem ser perseguido pela legião de admiradores que arrebatara
desde seus primeiros anos de escrita.
Entretanto,
desistir de seu vôo e descer ao solo tornou-se erro fatal. Ao tentar
mudar de calçada, não percebeu que em sua direção um outro dragão se
aproximava impiedoso, alta velocidade, urrando em vôo rasante e
nefasto.
Foi pego com a
guarda baixa o maior dos dragões brasileiros.
A pancada sofrida por seu frágil disfarce humano lançou-lhe longe, o
asfalto como campo de batalha recebendo gotas de seu sangue real.
Sem lhe dar chances de defesa, seu algoz o atingira em cheio no
tórax e cabeça, incapacitando-o de ruflar asas e voltar a sua toca,
onde certamente curaria as feridas como tantas vezes já ocorrera em
combates passados.
Estava ferido de morte, o
monstro áleo de Santana do Acaraú.
Ainda transmudado em corpo
de homem, foi levado a hospitais onde bravamente agonizou por mais
quase um dia, sob os cuidados dos sinceros amigos que sabiam de sua
secreta identidade. Outros de sua estirpe? De uma casta linhagem que
atravessou os séculos misturando-se entre homens comuns para
acalmá-los nas horas de mais angústia e ânsia por poesias e um pouco
de paz? Nunca saberemos!
Foi sepultado, como era de
seu desejo, em solos da Fazenda do Dragão, encravada nas terras de
São Francisco do Estreito, onde, segundo narra certa lenda, ele
nascera em forma de gente.
Naquela mesma tarde, dizem
os que por lá estavam presentes, um vento Aracati insistentemente
soprava aos ouvidos dos iniciados um poema há muito escrito pelo
Dragão que se fora:
O menino jaz atropelado:
Nossa Senhora salve o
menino!
Deixe que eu morra em seu
lugar.
Deixe que eu morra por
ti, menino.
Deixe que eu morra
atropelado.
Nossa Senhora Salve o
menino!... *
*
“Desastre às 13h e 30 min”. In As Tágides, (2001), de José
Alcides Pinto.
|