Depois de R. Magalhães Júnior, os biógrafos de Machado de
Assis viram-se condenados a repeti-lo e a repetir-se, cabendo esperar que
, pelo menos, não cometam erros factuais nem se entreguem a ilações
despropositadas. No livro de Daniel Piza (Machado de Assis, um gênio
brasileiro. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005) o que é bom não é novo e o
que é novo não é bom, a começar pelas primeiras linhas, quando “Guiomar, a
fiel e alegre governanta da casa, perguntou (...)”. Nem era ela a
“governanta da casa”, nem era o momento mais apropriado para demonstrar
alegria, tratando-se, como se trata, de Machado de Assis em seus últimos
momentos. Em outra passagem, Daniel Piza imagina que, “depois do jantar,
provavelmente servido à mesa por um negro”, Machado de Assis conversava
com a esposa. É provável que o fizesse, não havendo, entretanto, o menor
indício de que jamais tivesse tido escravos, única hipótese, àquela
altura, para a hipótese de Daniel Piza. Ainda em outra passagem, ficamos
sabendo que o romancista tinha uma cadela chamada Graziela, “nome de uma
heroína de Lamartine”, deixando-a aos cuidados de Clara, “a empregada da
casa” quando foi veranear em Nova Friburgo.
O autor vê referências alusivas em praticamente todos os
nomes próprios, o que já foi moda universitária em outros tempos. A
propósito de Brás Cubas, por exemplo, explica minuciosamente o que é uma
cuba, acrescentando que “Brás” é diminutivo de brasileiro (?), mas, como
paulista, é estranho que haja esquecido o fundador da cidade de Santos. As
identificações são o seu calcanhar de Aquiles, como diria Prudhomme,
campeão das metáforas estapafúrdias. José Bonifácio é apresentado como
intelectual português, tão português quanto o poeta e diplomata Luiz
Guimarães Júnior, e quanto era francês o romancista suíço Victor
Cherbuliez. Segundo Daniel Piza, o Pe. Feijó teria sido tutor de Pedro II,
enquanto transfere de Floriano para Deodoro a alcunha de Marechal de
Ferro. O Barão do Rio Branco, diz ele, era um “ex-monarquista
profundamente envolvido com o governo republicano” – tão “ex monarquista”
que continuou a assinar os papéis de Estado com o seu título
nobiliárquico.
A crê-lo, “em Machado os nomes sempre (sic) têm sua
conotação. Eugênia rima com ingênua. Virgília soa virgem, embora não
seja”, mas é pretexto para eruditas digressões: “Então Brás se apaixona
por Virgília ... Virgília que é um ‘diabrete angélico’, como uma mistura
de Marcela e Eugênia... depois de ter escrito arma virumque cano ... o
primeiro verso da Eneida (...)”. Bentinho sonhava com a glória, “como diz
o nome de sua mãe”; o nome do “sujeito Palha” é quase “Pulha”; quanto ao
compositor das polcas, “como diz seu nome, Pestana dorme em face dessa
dicotomia que vê entre o popular e o erudito”. É delirante.
Pelo menos em um episódio o Império terminaria em beleza
e esplendor, conforme a narrativa de Daniel Piza: “a Corte queria dançar.
No dia 11 de novembro, um suntuoso baile – que ficaria conhecido como ‘o
último baile da Ilha Fiscal’, ficou conhecido, na verdade, como ‘o último
baile da monarquia’, e foi um ato de política continental, não apenas uma
frívola reunião dançante. Frívolos entre todos era os entrudos
tradicionais, descritos por Daniel Piza como “uma espécie de festa à
fantasia em salões”, ignorando a crônica machadiana de 1803 que ele mesmo
transcreve páginas adiante: o carnaval “nasceu um pouco por decreto, para
dar cabo do entrudo (...). Eram tinas d’água postas na rua ou nos
corredores, dentro das quais metiam à força um cidadão todo ... bacias
d’àgua despejadas à traição. Mais de uma tuberculoso caminhou em três dias
o espaço de três meses (...) ”.
Percebe-se que, sendo jornalista, Daniel Piza escreve ao
correr do computador, como José de Alencar escrevia ao correr da pena,
origem de erros materiais e contra-sensos de leitura. Assim, quando
Machado de Assis observa que a nova montagem de As asas de um anjo
restituiu-o aos seus 19 anos, a redação confusa parece atribuir-lhe a
autoria da peça. Ou então, contaminado pelas fantasias de Helen Caldwell,
segundo as quais Bentinho, chamando-se de Santiago, tinha dentro de si um
Santo e um Iago: “Desse modo, haveria uma charada característica de
folhetim (...). Mas o fato é que Otelo, como Bentinho (sic), morreu e
matou por ciúmes, que crescem à medida que a narrativa avança”. Ora,
Bentinho não matou nem morreu, felizes circunstâncias que lhe permitiram
recuperar a história do tempo perdido.
Ainda na cola de Helen Caldwell, Daniel Piza acha
“curioso” que os resenhistas (entre os quais, observo de passagem,
incluem-se alguns dos maiores críticos brasileiros) “assumem que Capitu
traiu”, afirmação que lhe parece sem fundamento (em frase igualmente
confusa). Ora, sem a traição de Capitu não existiria o romance escrito por
Machado de Assis, estruturado, precisamente, nesse pressuposto, sendo
absurdo pretender que haja uma “verdade” fora dele. O mesmo tipo de
tresleitura ocorre sistematicamente em duas passagens clássicas, as
batatas de Quincas Borba e a conclusão das Memórias póstumas. Quanto à
primeira, Daniel Piza refere-se aos “surtos napoleônicos” de Rubião que,
na verdade, ocorreram com outro Napoleão, “Napoléon le petit”, como dizia
o poeta. Por outro lado, qualificando-o de “perdedor com batatas”, Daniel
Piza comete um contra-senso, porque, no darwinismo social de Quincas
Borba, são justamente os vencedores que ficam com as batatas.
Quanto à frase final das Memórias póstumas, Daniel Piza
afirma que muita gente a interpreta “como um testemunho do próprio
Machado, que não teve filhos (...). Pode-se especular que o motivo foi o
medo de transmitir sua saúde ruim”. Transmitir a saúde? Que vá, mas, já
para o fim do volume, Daniel Piza escreve que “Machado não era tão avesso
assim à idéia de ter filhos”. Longe disso: nos capítulos 76 (“O
mistério”), 90 (“O velho colóquio de Adão e Eva”), 94 (“A causa secreta”)
e 95 (“Flores de antanho”), Brás Cubas não esconde a alegria ao saber da
gravidez de Virgília, entregando-se aos devaneios habituais dos pais em
circunstâncias semelhantes – tudo seguido pela amarga decepção ao saber
que tinha sido um alarma falso. Nesse contexto, as palavras finais do
romance devem ser lidas como reação de vingativo despeito contra a traição
do destino.
Tudo isso acrescenta mais desleituras às tantas de
supostos intérpretes machadianos, cada um deles criando um Machado de
Assis à sua imagem e semelhança. Se a confusão era geral, como se diz no
Dom Casmurro, maior ainda se tornou com o livro de Daniel Piza.