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Wilson Martins

Jornal do Brasil
11.2.2006


Daniel Piza,

tropeções biográficos

 


Depois de R. Magalhães Júnior, os biógrafos de Machado de Assis viram-se condenados a repeti-lo e a repetir-se, cabendo esperar que , pelo menos, não cometam erros factuais nem se entreguem a ilações despropositadas. No livro de Daniel Piza (Machado de Assis, um gênio brasileiro. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005) o que é bom não é novo e o que é novo não é bom, a começar pelas primeirasDaniel Piza linhas, quando “Guiomar, a fiel e alegre governanta da casa, perguntou (...)”. Nem era ela a “governanta da casa”, nem era o momento mais apropriado para demonstrar alegria, tratando-se, como se trata, de Machado de Assis em seus últimos momentos. Em outra passagem, Daniel Piza imagina que, “depois do jantar, provavelmente servido à mesa por um negro”, Machado de Assis conversava com a esposa. É provável que o fizesse, não havendo, entretanto, o menor indício de que jamais tivesse tido escravos, única hipótese, àquela altura, para a hipótese de Daniel Piza. Ainda em outra passagem, ficamos sabendo que o romancista tinha uma cadela chamada Graziela, “nome de uma heroína de Lamartine”, deixando-a aos cuidados de Clara, “a empregada da casa” quando foi veranear em Nova Friburgo.

O autor vê referências alusivas em praticamente todos os nomes próprios, o que já foi moda universitária em outros tempos. A propósito de Brás Cubas, por exemplo, explica minuciosamente o que é uma cuba, acrescentando que “Brás” é diminutivo de brasileiro (?), mas, como paulista, é estranho que haja esquecido o fundador da cidade de Santos. As identificações são o seu calcanhar de Aquiles, como diria Prudhomme, campeão das metáforas estapafúrdias. José Bonifácio é apresentado como intelectual português, tão português quanto o poeta e diplomata Luiz Guimarães Júnior, e quanto era francês o romancista suíço Victor Cherbuliez. Segundo Daniel Piza, o Pe. Feijó teria sido tutor de Pedro II, enquanto transfere de Floriano para Deodoro a alcunha de Marechal de Ferro. O Barão do Rio Branco, diz ele, era um “ex-monarquista profundamente envolvido com o governo republicano” – tão “ex monarquista” que continuou a assinar os papéis de Estado com o seu título nobiliárquico.

A crê-lo, “em Machado os nomes sempre (sic) têm sua conotação. Eugênia rima com ingênua. Virgília soa virgem, embora não seja”, mas é pretexto para eruditas digressões: “Então Brás se apaixona por Virgília ... Virgília que é um ‘diabrete angélico’, como uma mistura de Marcela e Eugênia... depois de ter escrito arma virumque cano ... o primeiro verso da Eneida (...)”. Bentinho sonhava com a glória, “como diz o nome de sua mãe”; o nome do “sujeito Palha” é quase “Pulha”; quanto ao compositor das polcas, “como diz seu nome, Pestana dorme em face dessa dicotomia que vê entre o popular e o erudito”. É delirante.

Pelo menos em um episódio o Império terminaria em beleza e esplendor, conforme a narrativa de Daniel Piza: “a Corte queria dançar. No dia 11 de novembro, um suntuoso baile – que ficaria conhecido como ‘o último baile da Ilha Fiscal’, ficou conhecido, na verdade, como ‘o último baile da monarquia’, e foi um ato de política continental, não apenas uma frívola reunião dançante. Frívolos entre todos era os entrudos tradicionais, descritos por Daniel Piza como “uma espécie de festa à fantasia em salões”, ignorando a crônica machadiana de 1803 que ele mesmo transcreve páginas adiante: o carnaval “nasceu um pouco por decreto, para dar cabo do entrudo (...). Eram tinas d’água postas na rua ou nos corredores, dentro das quais metiam à força um cidadão todo ... bacias d’àgua despejadas à traição. Mais de uma tuberculoso caminhou em três dias o espaço de três meses (...) ”.

Percebe-se que, sendo jornalista, Daniel Piza escreve ao correr do computador, como José de Alencar escrevia ao correr da pena, origem de erros materiais e contra-sensos de leitura. Assim, quando Machado de Assis observa que a nova montagem de As asas de um anjo restituiu-o aos seus 19 anos, a redação confusa parece atribuir-lhe a autoria da peça. Ou então, contaminado pelas fantasias de Helen Caldwell, segundo as quais Bentinho, chamando-se de Santiago, tinha dentro de si um Santo e um Iago: “Desse modo, haveria uma charada característica de folhetim (...). Mas o fato é que Otelo, como Bentinho (sic), morreu e matou por ciúmes, que crescem à medida que a narrativa avança”. Ora, Bentinho não matou nem morreu, felizes circunstâncias que lhe permitiram recuperar a história do tempo perdido.

Ainda na cola de Helen Caldwell, Daniel Piza acha “curioso” que os resenhistas (entre os quais, observo de passagem, incluem-se alguns dos maiores críticos brasileiros) “assumem que Capitu traiu”, afirmação que lhe parece sem fundamento (em frase igualmente confusa). Ora, sem a traição de Capitu não existiria o romance escrito por Machado de Assis, estruturado, precisamente, nesse pressuposto, sendo absurdo pretender que haja uma “verdade” fora dele. O mesmo tipo de tresleitura ocorre sistematicamente em duas passagens clássicas, as batatas de Quincas Borba e a conclusão das Memórias póstumas. Quanto à primeira, Daniel Piza refere-se aos “surtos napoleônicos” de Rubião que, na verdade, ocorreram com outro Napoleão, “Napoléon le petit”, como dizia o poeta. Por outro lado, qualificando-o de “perdedor com batatas”, Daniel Piza comete um contra-senso, porque, no darwinismo social de Quincas Borba, são justamente os vencedores que ficam com as batatas.

Quanto à frase final das Memórias póstumas, Daniel Piza afirma que muita gente a interpreta “como um testemunho do próprio Machado, que não teve filhos (...). Pode-se especular que o motivo foi o medo de transmitir sua saúde ruim”. Transmitir a saúde? Que vá, mas, já para o fim do volume, Daniel Piza escreve que “Machado não era tão avesso assim à idéia de ter filhos”. Longe disso: nos capítulos 76 (“O mistério”), 90 (“O velho colóquio de Adão e Eva”), 94 (“A causa secreta”) e 95 (“Flores de antanho”), Brás Cubas não esconde a alegria ao saber da gravidez de Virgília, entregando-se aos devaneios habituais dos pais em circunstâncias semelhantes – tudo seguido pela amarga decepção ao saber que tinha sido um alarma falso. Nesse contexto, as palavras finais do romance devem ser lidas como reação de vingativo despeito contra a traição do destino.

Tudo isso acrescenta mais desleituras às tantas de supostos intérpretes machadianos, cada um deles criando um Machado de Assis à sua imagem e semelhança. Se a confusão era geral, como se diz no Dom Casmurro, maior ainda se tornou com o livro de Daniel Piza.

 

 

Link para Machado de Assis


 

Resposta de Daniel Piza

Jornal do Brasil

25.2.2006

 

 

Wilson Martins leu com pressa ou má vontade a biografia que escrevi, Machado de Assis: um gênio brasileiro (Imprensa Oficial).

Na edição de 11 de fevereiro, neste caderno, apontou alguns erros de revisão, já emendados na segunda edição, mas não discutiu nenhuma questão de fundo. Não que se pudesse esperar algo diferente de um crítico que considera Josué Montello o maior romancista brasileiro, que nunca soube admirar o talento de João Cabral de Melo Neto e queWilson Martins tampouco deixou marca nos estudos machadianos. Mas a função do rodapé literário não é debater idéias? Martins opta por observações impertinentes: acha que ter um empregado negro é o mesmo que ter um escravo; não vê significado nenhum nos nomes que Machado dava a seus personagens; não sabe a importância do baile da Ilha Fiscal, presente por isso mesmo em Esaú e Jacó; e diz que a traição de Capitu é um ''pressuposto'' (sic), não uma ''hipótese''. Pior, confunde autor e narrador quando comenta minha observação de que Machado - e não Brás Cubas - não era avesso à idéia de ter filhos, embora a tenha recusado provavelmente por causa de suas doenças. E desde quando Rubião termina como um vencedor na vida? Martins não diz nada, por exemplo, sobre a crítica machadiana à religião, aspecto fundamental do meu livro. Está tão cansado que só viu o que lhe convinha ver.

 


 

Nota do editor do Jornal de Poesia:

A coisa não parou por aí. A revista VEJA também desferiu uma lapingonchada no livro de Piza. Piza respondeu. VEJA rebateu. Entre mortos e feridos, pelo menos por enquanto (25.2.2005), todos incólumes. Clique para ler o escrito de Veja.

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

 

Revista VEJA, Brasil


Edição 1.944

Machado não merecia.

Os muitos erros na biografia do escritor.

 

 

Lançado no fim do ano passado pela Imprensa Oficial de São Paulo, Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro, do jornalista paulista Daniel Piza, deveria ser uma novidade auspiciosa nas livrarias. Afinal, a obra de Machado de Assis (1839-1908), o maior dos escritores brasileiros, tem sido objeto de muitos estudos críticos recentes, mas a última biografia do autor foi publicada em 1981 por Raimundo Magalhães Júnior. A leitura dos especialistas, contudo, demonstra que o livro está repleto de erros. Ele falha no requisito primordial de uma obra de referência: a informação confiável.

"Tudo o que há de bom na biografia de Piza já se encontrava em Magalhães Júnior. O resto são erros factuais e ilações indevidas", disse o crítico Wilson Martins a VEJA. Em sua coluna no Jornal do Brasil, Martins fez um breve inventário de equívocos do livro, que inclui aberrações históricas (por exemplo, a informação de que o brasileiro José Bonifácio era português, ou de que o padre Feijó foi tutor de dom Pedro II) e análises delirantes dos nomes próprios de personagens machadianos (Piza diz, por exemplo, que o Palha, de Quincas Borba, é "quase Pulha"). Antes do artigo de Martins, o escritor e professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Luís Augusto Fischer já havia apontado problemas semelhantes no jornal Zero Hora. O entrudo é transformado em festa de salão, e não de rua, enredos como o do conto O Alienista são resumidos de maneira equivocada e um personagem de Dom Casmurro, José Dias, o agregado que adora usar superlativos, é rebatizado como João.

Piza parece ter acreditado sobretudo nos próprios dotes críticos para compor Um Gênio Brasileiro – a narrativa da vida do escritor é entremeada com análises de suas principais obras. Um livro como esse, porém, não é somente um veículo para o biógrafo ventilar opiniões sobre o biografado. Ele deve ser uma fonte de dados confiáveis. O desprezo pela precisão – ou pela simples revisão de nomes, conceitos e datas – torna o livro imprestável. Como poderia dizer José (e jamais João) Dias, é um pecado gravíssimo.


 

 

Na seção de cartas de VEJA

Edição 1.945

 

MACHADO MALTRATADO

 

Daniel Piza, o autor da biografia Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro, escreveu para comentar a matéria "Machado não merecia" (22 de fevereiro): "Os sete erros de revisão apontados entre as 400 páginas de meu livro já foram corrigidos na segunda edição, que está chegando às livrarias. Observo também que eles não tornam o livro 'imprestável', como diz o autor da matéria. Tanto é que mereceu belo comentário de Roberto Pompeu de Toledo nessa mesma revista".

Um autor como Piza só tem a ganhar se ao talento unir o rigor na apuração de dados. Seu renome como crítico cultural foi estabelecido num texto de 1994, no qual dizia que Jesus Cristo morreu enforcado – o mesmo texto desinformava ainda que a frase "No princípio era o Verbo", do Evangelho de São João, pertencia ao Antigo Testamento. Ao tratar de John Falstaff, personagem fictício de peças de William Shakespeare, Piza demonstra o mesmo descaso com a causa mortis e relatou seu enforcamento. No drama shakespeariano Henrique V, o bardo finalmente mata Falstaff. Mas ele morre na cama. Tais erros, que não são apenas de revisão, denotam falta de intimidade com as obras que o autor se propõe a comentar – e desprezo para com os documentos e os fatos históricos.

Enquanto Piza não unir seu talento ao rigor, suas obras continuarão a exigir reparos. A segunda edição de seu livro, já livre dos sete erros apontados, virá tisnada por outro. Ele está na página 116. O autor diz que o Rio de Janeiro de 1865 era a "capital federal". Em 1865 o Brasil era um império, e não uma federação.