Wilson Martins

Jornal do Brasil

27.2.2009


 

 

Quando os demônios descem o morro

 

 

Enquanto ainda preso pela polícia política, o protagonista-narrador escreveu o romance autobiográfico que agora podemos ler (Rui Mourão. Quando os demônios descem o morro. São Paulo: Casa&Palavra, 2008), tudo apresentado com um dramático “apelo à compreensão e generosidade dos leitores” em prefácio assinado “A família”: “Por óbvias razões, este livro foi impresso na Argentina e terá distribuição clandestina no Brasil. (...) Na situação de animosidade contra o autor, até sequestro de estoque poderia vir a ser tentado. (...) Apesar da comoção que tomou conta do país, levando a totalidade dos leitores do romancista, até os companheiros de geração literária e os amigos mais chegados, a entregar volumes para serem destruídos no verdadeiro auto-de-fé pagão realizado em Ouro Preto (...)”.

Criou-se, com isso, um romance frustrado dentro do romance, cuja verdadeira matéria não são as atividades supostamente subversivas do protagonista, afinal de contas incidentais com relação aos tumultuosos episódios administrativos em que se envolveu como diretor do Museu da Inconfidência, numa narrativa que inclui numerosas alusões a personalidades da vida real. É preciso dizer desde logo que, nos conflitos com os técnicos da Casa e nos planos delirantes que pôs em prática (notadamente a transformação da cidade inteira em museu histórico), o diretor revelou pouco realismo administrativo e inquietante megalomania.

O resultado é que, embora escrito na primeira pessoa (apresentada como vítima de conspirações do funcionalismo), o leitor não estabelece cumplicidade com o personagem: “O certo é que me encontrava em descompasso com o mundo. Encaradas as coisas em suas devidas proporções, o órgão de porte agigantado que estava sob minha responsabilidade continuava funcionando de maneira vegetativa, entregue apenas à rotina de abrir as portas para receber avultado número de brasileiros e estrangeiros (...)”. Exasperado por essa rotina, o diretor propõe várias reformas revolucionárias, nenhuma das quais obtém apoio dos colaboradores, entregue cada vez mais à hostilidade declarada. Ele mesmo passa por um processo mental contraditório: “Durante meses – na verdade anos – padeci o desconforto de julgar-me em descaminho no desempenho das funções exercidas na Casa de Câmara e Cadeia. (...) Até certo ponto fiz força para que o aprendizado de administrador daqueles tempos não resultasse em completa frustração”, transformando, entretanto, o romance na história dessa frustração – aspecto em que, tecnicamente encarado, é um excelente romance.

De fato, a frustração administrativa pode ser vista como metáfora da frustração revolucionária, por onde episódios políticos apenas aludidos encontrariam justificação na intriga: não se trata de uma tentativa gratuita e arbitrária de criar interesse e atualidade, mas de uma “ilustração” do irrealismo mental do personagem: “Não conseguia me libertar da acusação de estar na companhia daquela gente”, escreve ele na prisão, “ocupando espaço de maneira oportunista, mas a forte decisão de não transigir com meus objetivos pessoais acabava constituindo uma espécie de couraça a proteger-me. A tudo procurava superar, pensando no futuro, meu e do Museu, porque nada me tirava a esperança de melhores dias para uma instituição que, pousada açambarcadora, fechando um lado inteiro da Praça Tiradentes, apesar de todos os pesares, possuia presença dentro do país”.

Aí está o ponto de junção das duas intrigas, para nada dizer do proverbial “idealismo”, matéria-prima da mente doutrinária, doença infantil que, segundo respeitável autoridade, é o sarampão costumeiro das esquerdas. Enquanto escrevia, diz o prefácio-manifesto, o autor continuava encarcerado na Polícia Central de Belo Horizonte, “em cela privativa por ser bacharel em Direito, porém as suas regalias terminam por aí. Durante muito tempo esteve incomunicável, não lhe sendo permitido contato com a mulher, os filhos e demais parentes, que ficaram igualmente impossibilitados de com ele se corresponder, pois as cartas enviadas nunca chegaram ao destino”.

O leitor fica sem saber se se trata de um romance político (apenas aludido) ou de uma história burocrática. No prefácio-manifesto, a “família” apresenta-o, não como “um grito de revolta”, mas como uma queixa e extemporânea reivindicação do escritor como fanático praticante do seu ofício. Ora, ninguém jamais o acusou do contrário – pelo menos nas perspectivas desta história – de forma que o excesso polêmico, sem causa evidente, torna os acontecimentos, tanto quanto ele, ainda mais arbitrários.

  Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

Ana Guimarães

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tércia Montenegro

 

     
Culpa

 

Início

 

A menina afegã, de Steve McCurry