Soares Feitosa
Da caixa postal aos |
corrós de açude: |
uma
visita ao poeta Ascendino Leite |
Também
sou velhote: sessenta, batidos neste janeiro recém. Jovenzinho,
dezessete, dava meus primeiros passos no jornal. Depois larguei
tudo, fiscal do consumo, de concurso, dos mais jovens entre os
jovens. Mas à época do jornal, quando me ligava, de obrigação,
aos jornais, acho que lia sobre um certo Ascendino, nos jornais, um
besouro doudo, muito doudo. Distante, pois, o meu primeiro contacto
com o seu distinto nome.
Bom,
meu primeiro contacto paraibano deu-se por via de um Wanderley.
Juracy Gomes Wanderley, sobrinho de um certo Verniaud, Verniô, um
nome assim, do
Tribunal de Contas da União, ministro. O sobrinho, Juracy, um “prinspo”,
o irmão que não tive, fizemos parelha aos estudos de fiscal
do consumo. Ele também passou, foi para São Paulo, morreu por lá,
de grande saudade. Ah, o nome do pai dele, Jair Wanderley, irmão do
ministro do TCU.
Ele,
o amigo, diria Ascendino, naturalmente “Aicendino”, de
“aicensão”, que é assim que os paraibanos reproduzem o
encontro “sc”, mesmo que não haja “i” algum.
Bem
depois, de ofício, virei paraibano: morei na Manaíra quase um ano,
transferido de contragosto. Em seguida o Recife, 14 anos morei lá.
E, por último, a Cidade da Bahia, onde fiquei quase cinco. Aposentei-me e
voltei — Fortaleza, mas sou dos matos, lá de dentro, daqui, Ceará.
Chegou-me
o plano de dar um pulo até aí, a conhecê-lo. Futucá-lo de vara
bem curta: conferir que existe (?!) esse meu poeta auroral. Abraçá-lo.
Larguei caminhos! Saí, saímos, eu, mais um casal de poetas daqui.
Pelo meio, lembrei-me dos endereços. Trago-os no computador portátil.
Em Aracati, beira do rio e ponte, abri a maquineta e lá estava: Ascendino
Leite, CP nº 3.065. Retrocedi, que já me acontecera igual, aliás,
muito pior. Conto-lhe.
Cidade
da Bahia, morava lá, me apareceu de correspondência, um convite
aos peixes pintados, nas barrancas do Velho Chico, um poeta, gente
finíssima, o Luiz Manoel Paes Siqueira. Disse-me ele: Petrolina,
beira do Rio, aqui, venha!
Botei
chãos de fome e léguas. Pois quando cheguei, de muito abafo e sol,
procurei o endereço. Tal qual o de sua distinta pessoa, uma caixa.
Bati lá. O moço do correio garantiu que ali, na caixa, não estava
ninguém. Eu disse que sim. Ele disse que não. Afirmei-lhe que, de
muito tempo, do primeiro rádio, na casa do coronel Honório Melo,
passara a ter a certeza que ali, rádio, só podia estar de gentes,
cheio, muitas, ainda que gente miúda, nos conformes do aparelho. É
tanto que cantavam, mangofavam, saltitavam, dançavam.
Não!
Não era nessas TVs de agora, que aí a certeza é total — estão
todos por detrás da parede! A gente é que não consegue falar com
eles, mas falam com a gente, mostram coisas que, de grandes
sem-vergonhices, nem sei com que coragem.
Era,
naquele tempo, um rádio, de botões de girar, a caçar outros
ajuntados de vozes. Sim, de voz bonita! Depois a gente via o retrato
deles na folhinha do almanaque. Inclusive a foto do Gonzaga, Luiz,
que cantava do pai, Januário, oito baixos; ele, oitenta. Mas o de
oito ganhava do de oitenta, coisa assim. Nem sei se isto é certo,
oitenta perder para oito, mas, na cantoria, perdia. Ou, o filho, de
bom, deixava o pai ganhar. Era bom o Gonzaga, um homem vasto e bom.
E,
para fazer aparelho igual, rádio, a gente botava besouros mangangás
dentro de uma caixa de fósforos, uma imprudência, no bolso, os
bichos roncando bonito, grosso e macio. Dizíamos que eram notícias
da guerra, do rádio da casa paroquial, em ondas-curtas, em espiquíngles,
que ninguém entendia, nem o padre. Mas para quê?! Era bonito!
—
Então, meu caro, como é que não tem gente aí dentro?!
Ele
disse que isto de procurar gentes dentro da caixa postal havia de
ser por conta do sol quente na cabeça do cristão — e se abanou.
Real, andava eu sem chapéu, como sempre andei, e ali, naquela
viagem, deixara longe o carro. Andei varas e varas de ruas até a
acertar na caixa
—
É esta aqui, meu senhor, de nº 317. Veja, não
me enganei não! É esta mesmo!
Ele falou que o número
da caixa postal estava correto; mas, gente, paciência!, não tinha ninguém lá dentro.
Pedi
para olhar na frincha como se fora um primo meu que, em frincha igual,
no cofre da igreja, em hora esquiva, fazendo-se de devoto, com um
palitinho de visgo, pescava dinheiros. Mas não levava eu palito
algum. Nem visgos. [Um dia ainda lhe conto da pega dos besouros, na
caixa de fósforos!]
De
tanto insistir, o senhor dos correios disse que iria telefonar, como
de fato, pouco tempo depois, em vez do peixe e respectivo anfitrião,
era o zumbido de sirenes. Não sei se a dos incêndios, da polícia
ou do asilo de doidos, ou as três, juntas.
Só
pode ter sido por conta das rezas de minha mãe, me acorreu sábia e
prudente a idéia de me escapulir ligeiro,
gesticulando que o meu
amigo, do outro lado da rua, já me chamava, com o caldeirão de
peixes. Não! Não era não. Claro que não, nem amigo, nem peixes.
Não
deu tempo ver que condução chegou por lá, de sirene aos berros.
Esquinas seguidas, virei para um lado, para o outro, por sorte o
carro estava no lugar, engatei marcha de força, dois, três,
quatro... quinta-marcha, tudo ligeiro! Varei sinais, barreiras,
desviei-me dos bêbados, do pajem de carros e, agora lá longe: a
estrada. Eu nela!
Respirando,
pude ver, num beira-de-estrada, na tabuleta, depois de um café
tomado como calmante, que apregoavam codorniz — assada, no sal
grosso, uma delícia. Protestei, aliás, apenas indaguei (era de
prosa) pelo Meio Ambiente. O estalajadeiro murchou, acho que
desconfiou da minha cara de fiscal, benzeu-se e me chamou discreto
ao quintal:
—
Veja, senhor, se eu disser que é pinto-de-um-dia, a clientela vai
embora! Codorniz?! Nem lembro mais como era! Agora é pinto, doutor!
E
abriu o chiqueiro, uma maloca deles, piu-piu, mas estavam cercados
de isopor, acústico, para que ninguém os escutasse, embaixo e
cima, piu-piu, adeus, codorniz! Piu-piu, adeus, freguesia.
—
É pinto, doutor! — disse-me
o da beira da estrada.
Sim,
meu caro poeta Ascendino Leite, era pinto. Castiguei
no sal. Estavam ótimos. Botei lonjura nos pés e sumi no poeirame.
Lá na frente, na tarde seca, a sede! De puro milagre, o melhor
refresco de maracujá da face da terra. Em jarra bojuda e copo, aliás,
taça e jarra de vidro fino, cristal. Gelo em pedras, miúdas,
estralando. Nos dentes. E no calor de dentro.
Eu
disse:
—
Não repetirei viagem de peixes à caixa postal! Vamos comer um corró
de açude!
—
Corró de açude?! —
Espantaram-se
os meus companheiros, um belo casal de poetas daqui, que os levava a
conhecer o poeta daí. Chamaram o proprietário. Ele garantiu que
ali, no rio Jaguaribe, no mar, nem em canto algum da bela e fidalga
Aracati, sequer em Canoa Quebrada, havia esse produto, corró de açude.
Torcemos
o itinerário. Lugarejo Monsenhor Tabosa, seu Jeremias, um velhote
bem encurvado e atencioso, tangia nas mãos muitos atilhos de corrós,
visguentos e cevados, alguns ainda abrindo o bico, do ar faltante,
água, aliás.
—
Corre, menino! Atalha seu Jeremias, que hoje vamos comer corró de açude
— disse-me a mãe.
Corrós,
ditos carás, ditos tilápias, com casca, aliás, escamas. A
madrinha, com uma tábua, e, na ponta da tábua
um parafuso-tarraxa
de cabeça bem grande, como se fosse um pino — rét-rét,
em poucos minutos os peixes eram limpos. Aos temperos de praxe, limão,
vinagre, farofas, cebola vermelha, uma longa travessa com eles
dentro. Um arroz ao branco, de solto.
E
os peixes pretos e seus escuros, nas partes mais fritas, mas nem
tanto. De sal e brilhos, os corrós de açude, no prato longo. Não
e não! Recusarei qualquer descrição que os descreva. Então, de
um lado, a mão e sua colher — a mão direita. Do outro, o peixe
à esquerda, mão, segurando-o, direto, com a mão, a mão esquerda.
—
É assim que se ocupam as duas mãos — disse-lhes.
O
casal de poetas confirmou que sim. Mas a mãe não deixava. Dizia
que eu não tinha idade de comer peixe com a mão. Havia de comê-lo,
sim, catado por ela, pelas mãos dela, formando um montinho em que
ia botando mais. A esquerda, mão, por enquanto, na frente dela,
mãe, desocupada. Foi assim, enquanto estive lá, inclusive a passeio.
Botei
pimenta pra cima do caldo do peixe, arrastei-o para dentro do
arroz-pirão e perguntei se chovia. O proprietário franziu-se ao
tempo e disse que sim. Um bom inverno, este 2004, confirmamos em
coro. O sol era seco, mas debaixo dos cajueiros, sombra.
Reparei
numa sombra longa, como se um despencamento no rumo do outeiro,
alias, manhã. Porque estas coisas, noite e dia, são de uma só, a
depender do olhar — o olhar de quem olha. Ascendino Leite, um poeta auroral.
De manhã bem cedo há quem diga que já anoitece; outros dirão, da
noite, em plena noite, que o amanhecer é questão de minutos. O
olhar de quem, só isto.
Ascendino
Leite, novent’anos, auroras, sabe delas.
Não
lembro quem me deu
o endereço dele; acho que foi o Lau Siqueira, poeta, amigo. Mandei uns “papés”.
Ele, de pura generosidade, me chama de mestre. Mandou livros. Um deles conta uma viagem. Da
porta de casa, com anotação dos quilômetros saídos, passeados,
proseados, até à porta de casa, de volta. De todos os gastos,
tim-tim por tim-tim, em moeda que nem existe mais. Uma viagem a
Argentina, com o leitor de dentro.
Lembranças
do vale
Não,
não é o vale de lágrimas. É ele, montado num carneiro, e a
figura do pai ali de perto. Uma estação chuvas, que isto aqui só
presta quando chove.
Vulgata
(livro misto)
Desnecessário
o sub-título, todos os livros de Ascendino Leite são mistos. A
noite, o dia, com a prevalência da aurora. Ainda que ele escreva
que não dormiu de noite, nem sabe se amanhece. É que ele incensa a
Beleza e diz:
Preciso
pintar.
Preciso
de um atelier.
Nele
desnudarei todas as mulheres do mundo.
Ah,
velho doido! Dá gosto viver novent’anos e muitos mais. Assim, só
assim.
Termino de receber das mãos
delem via correio:
Os
Pesares
É
livro para ter sempre por perto:
[...]
As árvores que se deslocam como se tivessem pés de gente. E alma
de pessoas. Carregando a verde coma ao sol a pino, andam. Milagre ou
ilusão, o céu profundo participa. Ah, os bosques, a mata...”
Ascendino
fala dos céus — ordinais, primeiro, segundo, terceiro — os céus
de Paulo, apóstolo. Mas não é um livro religioso, no sentido fanático,
digamos, um livro de crentes ou de sacristia. É religioso sim, na
buscada desse remédio quase impossível à existência em si
mesma: o pacto, o pacto permanente com os deuses, acreditados ou não.
Se não acreditados, tanto pior.
E
traz um ensaio sobre o olhar, em pouco mais de meia página:
[...]
Com todas as desculpas,
olhar é captar
e adotar circunstâncias.[...].
Mais
não falo. Digo apenas que o título está errado. Ali não há
pesares. Pelo contrário, bem leve me pareceu a canga sobre a cerviz de
Ascendino.
Melhor
que o leitor tenha o livro. Debaixo da rede, o meu; na cabeceira,
por perto, a abri-lo à toa, de plena delícia, o teu exemplar, meu
caro leitor.
É
um diário não-cronológico, todos os livros de Ascendino são
assim; basta abri-los em qualquer lance, de
poesia pura, no dizer de outro poeta, este aqui, numa vertigem ao
destempo (Salomão), inédito:
Desliguei
todos os relógios,
entortei-lhes
os ponteiros,
lancei-os
ao mar.
Poeta
Ascendino, Mestre!,
receba
o meu abraço.
Soares Feitosa.
Ceará,
26.4. 2004, de noite
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