Um
quadro
e
suas versões ao passado
Soares Feitosa
English
Quando Teófilo abriu o estabelecimento, lá estava, por baixo da
porta, uma gravura. Quem a botara ali? Recuou-se ele, desde a
infância, àquelas professorinhas a quem os meninos de então, ele
também, chamavam "fessora". Não. Não era.
— Apenas uma foto de currículo, senhor. O vento. Quem sabe, algum
retrato que vazou do cesto — disse a auxiliar das pastas.
O vento. Isto mesmo! O que fazem as empresas com os currículos que
lhes chegam aos montes? Afinal, não se sabe de alguém que tenha
tomado currículo de volta. As cartas, as fotos, sim. Mas não era uma
foto. Nem carta. Um quadro, com aparência de coisa fina: oil on
canvas — e, no verso, ilegíveis os nomes, do quadro e do autor.
— Não é fotografia! — disse Teófilo.
A secretária deu o dito pelo não dito. Bem que o assunto poderia ter
morrido ali mesmo. Contam que Teófilo pegou a gravura e,
cuidadosamente guardou-a. Contam que ele, todos os dias, colocava-a
sobre
uma mesa imensa, de tampo de vidro, e botava-lhe lupa.
Examinava-a repetidamente. Quando entendia que o tamanho estava bom,
retocava-a em vermelhos, tudo a partir de um lápis de cor, desses de
marcar CD's, que ele antes utilizava para
avivar os rótulos do estabelecimento. Pior, mal chegava um freguês,
lá estava ele a indagar se conhecia aquela jovem. Muitos, de tão
repetidos os interrogatórios, antecipavam-se e, antes mesmo de
regatear preços, esclareciam que não.
— Bem que o amigo poderia tê-la visto na quermesse... não?!
Na quermesse! Como se as jovens de hoje fossem à quermesse. Não; ninguém sabia. Não fora encontrada. Outros garantem que o retrato
nada teria de misterioso e muito menos a ver com um suposto
vendaval, mesmo porque o vento, ali, as janelas fechadas, seria
nenhum.
Teria sido assim, de uma outra versão: Teófilo, um dia restaurou um
sonho e rascunhou-o no ar. Aliás, “riscou-o” em cima da perna, mal
acordara. Correu com toda pressa para o estabelecimento, botou o
sonho em papel e remeteu-o, mediante
gorda retribuição, a uma sociedade de pintores. Até abriu concurso.
Deu instruções, assim e assado. Quando chegou o quadro, um amigo
objetou que não havia, naquela pintura, nenhuma referência sobre a
parte de baixo. Realmente, olhando-o, não dá para garantir que a
jovem tenha algo abaixo cintura.
«Claro que deve ter!», dizia ele ao amigo. Realmente, não existe
pessoa só do peito para cima. E o resto? Como haveria de ser o
resto?
Contam que Teófilo, do alto de suas muitas exigências, não teria
reclamado da equipe de pintores, mesmo porque as indicações
do
sonho a nada mais abrangiam que as partes superiores, tal como está.
Dizem que Teófilo padecia do medo pânico de exigir algo a mais,
digamos, um novo quadro, de corpo inteiro, pois lhe assaltava o
terror de jamais “encontrá-la” se acaso aparecesse
nesse novo formato, dos pés à cabeça. Afinal, no sonho, era-lhe
somente aquela parte, a de cima. Mostrava-se ela também de lado, mas
nem tanto. Sim, a outra manga da blusa, onde estaria a outra manga?
Não dá para ver — os cabelos são-lhe longos e espessos. Muito
estranho, não?!
Até que um belo dia, um caixeiro viajante deu notícia de um
pintor, um certo Allan R. Banks, norte-americano, nascido em 1948. O
quadro? Justo aquele da gravura: Hanna. Nada a ver,
portanto, com o sonho, aliás, com o pesadelo de Teófilo. O problema
é que ninguém acreditou.
Leitor, por obséquio, não me pergunte sobre desfecho. Isto pertence ao
passado,
algo totalmente inacessível até mesmo aos senhores
historiadores. De fato, se dois historiadores se encontram, igual
aos críticos de Literatura, desentendem-se imediatamente. O que,
pois, dizer dos muitos boateiros que balanceavam dia e noite a vida
de Teófilo e seu quadro misterioso?! Sobre o futuro, não! Isto é
assunto calmo, o futuro. Todos nós sabemo-lo. Experimente colocar
qualquer pergunta no modo “acontecerá”, e a resposta será imediata.
Por isto mesmo é que os feiticeiros e adivinhos estão todos
desempregados. Inclusive Teófilo.
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