Caro amigo e
incansável trabalhador cultural, Feitosa:
Primeiro: aqui
o bicho por detrás do ecrã do computador, não é poeta. Apenas mero
professor de História da Arte, simples
conferencista, algo escritor e forçado director de revista de
cultura, para além de destemido artífice de 1001 outras coisas. Mas
não poeta, apesar de uma ou outra vez poetar. E digo-o sem
auto-desdém ou outro tanto para os meus colegas destas coisas que
antes disse que sou. É que ser poeta é ser muito acima de mais. Como
muito bem disse a minha conterrânea (porque de Vila Viçosa),
Florbela Espanca, «Ser poeta é ser mais alto, é ser maior do que os
homens!» Daí que, estamos conversados, nunca mais me chame poeta,
coisa que nunca poderei ser, dado que sou simples e irrevogável
homem.
Segundo:
Envia-me uma short story que me deixa de água na boca. Acho
que isso é vingança do destino, dado que muitos me têm dito o mesmo
acerca de longo conto que escrevi, situado na ilha de S. Vicente,
Cabo Verde, em que a personagem principal, Fernando Desamparado da
Luz Spinelli, acaba esborrachada na parede do mercado municipal (ou
‘plurim de verdura’, como ali se diz) quando o leitor está à espera
de outras desgraças e não da morte do dito cujo. Mas deixemos isso,
que não se trata aqui de falecimento de gente mas de uma woman in
red, não da vulgar femme fatale, mas de um ser coberto de
fogo intenso que enche a tela de labaredas. Diabo, essa de fogo
persegue-me. Há dias, eu que ali acima disse que não sou poeta,
enviei versos sobre fogo ao poeta (esse sim!) Ruy Ventura, em
contexto de incêndios que estão a fazer desaparecer as últimas duas
ou três árvores que ainda existem em Portugal… Mas lá estou eu a
fugir da mulher de vermelho. O que se passa é que a partir de agora,
quem ler o seu texto há-de sempre ver essa misteriosa ‘Hanna’ de
meio corpo junto ao seu conto e vice-versa. Um ficou definitivamente
fundido no outro, como uma mesma e só entidade. O quadro, da Gandy
Gallery, em Creekwood Court, McDonough, Geórgia, não tem o
desgraçado veneno social do ‘Fado’, de José Malhoa, mas há aquele
ombro escondido na penumbra que me remete para a Adelaide da Facada,
figura feminina da tela malhoana, que o pintor quis retratar com a
alça da camisa descaída, coisa que ela não deixou (disso ficou aliás
um pequeno quadro de estudo). Miséria também tem os seus pruridos…
Terceiro: As
coisas no Brasil não vão bem, mas onde é que elas vão bem? Olha,
Feitosa, aqui te envio o (quase) poema e o conto, para aliviar um
pouco, que essa ‘Hanna’ e sobretudo o seu conto foram o melhor deste
dia.
Um forte
abraço aqui da Cova da Piedade (Almada) para si,
Do Joaquim
Saial
O fogo
o
fogo, o fogo,
o
silvo do carro dos bombeiros,
o
crepitar da madeira,
o
estalido da pernada da árvore que quebra
e o
assobio da água que se lança
e não
resolve e não resolve
e o
noticiário que não resolve
e a
Guarda que não resolve
e não
resolve
e o
incendário impune
e o
homem do churrasco
e o
homem da beata
e o
agricultor da queimada
e o
rátátá do helicóptero
e a
velha que chora
e a
criança que chora
e o
dono da casa nova que chora
e o
ministro que se repete, que se repete
e o
cheiro das cinzas, o cheiro das cinzas
e
sempre o silvo do carro dos bombeiros
e o
cheiro das cinzas
o
cheiro das cinzas
sempre o cheiro das cinzas, o cheiro das cinzas.