A metade
impronunciável da quietude
Mindscapes, de Laura
Riding. Seleção, tradução e introdução de Rodrigo Garcia
Lopes. Editora Iluminuras, 249 páginas. R$ 44,00 |
Há poetas que
escrevem com o sangue; outros, com o coração; há aqueles
que escrevem com o cérebro; alguns, que o fazem com os
nervos; há quem escreva com a visão, com os ouvidos, com
as pernas, com a respiração... Laura Riding escreve,
sobretudo, com o pensamento, admirando-se com o que
escapa dos olhos e dos sentidos. Seus poemas são a
ocasião de superação da instituição literatura por uma
linguagem que, imediatamente, toca a vida intensiva,
confundindo-se a ela ao mostrar uma compulsão suprema
pela força impositiva do movimento criador contra
qualquer possibilidade inercial que teime em querer se
fixar.
De tempos em tempos, ela recomeça com um
novo nome, que não é, primeiramente, um nome próprio da
autora, mas, a cada vez, um apelido, poético, direto de
vida: Laura Reichental, Laura Riding Gottschalk, Laura
Riding, Laura Jackson, Laura (Riding) Gottschalk... O
impessoal buscando se intrometer pelo pessoal,
inventando, neste, novos deslocamentos, rumos inaugurais
e passagens constantemente abertas. Como em um de seus
belos poemas: “O vento sofre de soprar,/ O mar de seu
aguar,/ E o fogo de arder,/ E eu de ter um nome.// Como
pedra sofre de pedrosidade/ Como luz de luzidade,/ Como
pássaros de asidade,/ Eu sofro de identidade”. Tal
sofrimento por saber que um nome identitário é a crença
em uma realidade individual (fingidamente estanque,
ainda que necessária) leva a poeta a realizar uma
“tragédia da simesmidade”. O sobrenome Riding,
inclusive, com o qual Laura ficou mais conhecida, é uma
pura invenção legalizada por ela em 1925.
“A
verdade começa onde a poesia termina”
Uma
luta, portanto, com a afirmatividade do pensamento,
contra a força reativa da fixidez, fazendo com que a
poeta não habite exatamente as palavras, mas percorra a
linguagem no movimento indizível de seus interstícios.
Para ela, “a verdade começa onde a poesia termina”. Se,
ao contrário do que, apressadamente, pode parecer, a
poesia, sendo “uma palavra mentirosa”, é a atitude mais
elevada do pensamento, aqui, a verdade, através da qual
“só lhe resta olhar bem”, seria a força indizível que,
no vazio atravessador de toda e qualquer experiência,
faz a “vívida realidade de palavras” proliferar. Deixar
a vida ser revivificada através da revivificação das
palavras mentirosas, ficcionais ou artificiosas,
transmitindo-a ao leitor, parece ser seu projeto:
“Respirar palavras vivas (...); endereçar vivacidade/
nos olhos que lêem”. Não é à toa que Auden a chamou de
“a única poeta-filósofa viva”.
O vínculo com
Platão é grande e dos mais saudáveis, manifestando-se
implicitamente ao longo de todo o percurso, como se ela
tivesse aprendido o que fazer para permanecer na cidade
filosófica. Enquanto, através de conceitos
paradigmáticos tais quais, entre outros, o mesmo, o uno,
o todo, o que atravessa, o ser e a idéia, a experiência
platônica ajuda a tornar pensável o impensável e
possibilita um sentido para o sem-sentido de onde
provém, a poeta americana, consonantemente, num
belíssimo poema, “Abrir de olhos”, escreve: “Mas
e quanto ao sigilo/ Pensamento individido, pensando/ Um
todo simples de ver?/ Essa mente morre sempre
instantaneamente/ Ao prever em si, de repente demais,/ A
visão evidente demais,/ Enquanto lábios sem boca se
abrem/ Mudamente atônitos para ensaiar/ O verso simples
e impronunciável”. Ou, em “Helena em chamas”: “Sua
beleza, de que falamos,/ É só metade de sua sina./ Nada
será revelado/ Até que as duas metades se cruzem (...)//
Mas só contamos a metade, temendo saber tudo”. Trata-se
de uma poesia filosófica, que, na metade dita,
intensifica a metade impronunciável da quietude.
Críticos e poetas americanos comentam
obra
É preciso saudar o poeta Rodrigo Garcia
Lopes tanto pela sua tradução quanto pela introdução que
acompanha o livro, muito bem pensada e situando,
privilegiadamente, o leitor na respectiva poética.
Somando-se a isto, ampliando a visão da americana que
atravessou o século XX (1901-1991), bem menos divulgada
do que muitos de seus pares e que, algumas vezes, parece
se irmanar a S. Beckett e G. Stein, o tradutor organizou
um fórum com críticos e poetas atuais americanos.
Uma das características dos poetas brasileiros
que começaram a publicar nos anos 90 é a capacidade de
atuarem em diversos níveis dos entornos interventivos da
poesia: tradução, ensaios, resenhas, entrevistas,
editoração. Traduzindo Rimbaud e Silvia Plath,
publicando um excelente livro de entrevistas com
pensadores contemporâneos da cultura americana, editando
a revista de literatura “Coyote”, Rodrigo Garcia Lopes
vem cumprindo, com mérito, este papel interventivo.
ALBERTO PUCHEU é poeta e professor de Teoria
Literária da UFRJ |