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Alberto Pucheu 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:


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Ticiano, Salomé

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Alberto Pucheu

Prosa & Verso, 26.2.2005


A metade impronunciável da quietude

Mindscapes, de Laura Riding. Seleção, tradução e introdução de Rodrigo Garcia Lopes. Editora Iluminuras, 249 páginas. R$ 44,00

 

Há poetas que escrevem com o sangue; outros, com o coração; há aqueles que escrevem com o cérebro; alguns, que o fazem com os nervos; há quem escreva com a visão, com os ouvidos, com as pernas, com a respiração... Laura Riding escreve, sobretudo, com o pensamento, admirando-se com o que escapa dos olhos e dos sentidos. Seus poemas são a ocasião de superação da instituição literatura por uma linguagem que, imediatamente, toca a vida intensiva, confundindo-se a ela ao mostrar uma compulsão suprema pela força impositiva do movimento criador contra qualquer possibilidade inercial que teime em querer se fixar.

De tempos em tempos, ela recomeça com um novo nome, que não é, primeiramente, um nome próprio da autora, mas, a cada vez, um apelido, poético, direto de vida: Laura Reichental, Laura Riding Gottschalk, Laura Riding, Laura Jackson, Laura (Riding) Gottschalk... O impessoal buscando se intrometer pelo pessoal, inventando, neste, novos deslocamentos, rumos inaugurais e passagens constantemente abertas. Como em um de seus belos poemas: “O vento sofre de soprar,/ O mar de seu aguar,/ E o fogo de arder,/ E eu de ter um nome.// Como pedra sofre de pedrosidade/ Como luz de luzidade,/ Como pássaros de asidade,/ Eu sofro de identidade”. Tal sofrimento por saber que um nome identitário é a crença em uma realidade individual (fingidamente estanque, ainda que necessária) leva a poeta a realizar uma “tragédia da simesmidade”. O sobrenome Riding, inclusive, com o qual Laura ficou mais conhecida, é uma pura invenção legalizada por ela em 1925.

 

“A verdade começa onde a poesia termina”

Uma luta, portanto, com a afirmatividade do pensamento, contra a força reativa da fixidez, fazendo com que a poeta não habite exatamente as palavras, mas percorra a linguagem no movimento indizível de seus interstícios. Para ela, “a verdade começa onde a poesia termina”. Se, ao contrário do que, apressadamente, pode parecer, a poesia, sendo “uma palavra mentirosa”, é a atitude mais elevada do pensamento, aqui, a verdade, através da qual “só lhe resta olhar bem”, seria a força indizível que, no vazio atravessador de toda e qualquer experiência, faz a “vívida realidade de palavras” proliferar. Deixar a vida ser revivificada através da revivificação das palavras mentirosas, ficcionais ou artificiosas, transmitindo-a ao leitor, parece ser seu projeto: “Respirar palavras vivas (...); endereçar vivacidade/ nos olhos que lêem”. Não é à toa que Auden a chamou de “a única poeta-filósofa viva”.

O vínculo com Platão é grande e dos mais saudáveis, manifestando-se implicitamente ao longo de todo o percurso, como se ela tivesse aprendido o que fazer para permanecer na cidade filosófica. Enquanto, através de conceitos paradigmáticos tais quais, entre outros, o mesmo, o uno, o todo, o que atravessa, o ser e a idéia, a experiência platônica ajuda a tornar pensável o impensável e possibilita um sentido para o sem-sentido de onde provém, a poeta americana, consonantemente, num belíssimo poema, “Abrir de olhos”, escreve: “Mas e quanto ao sigilo/ Pensamento individido, pensando/ Um todo simples de ver?/ Essa mente morre sempre instantaneamente/ Ao prever em si, de repente demais,/ A visão evidente demais,/ Enquanto lábios sem boca se abrem/ Mudamente atônitos para ensaiar/ O verso simples e impronunciável”. Ou, em “Helena em chamas”: “Sua beleza, de que falamos,/ É só metade de sua sina./ Nada será revelado/ Até que as duas metades se cruzem (...)// Mas só contamos a metade, temendo saber tudo”. Trata-se de uma poesia filosófica, que, na metade dita, intensifica a metade impronunciável da quietude.

Críticos e poetas americanos comentam obra

É preciso saudar o poeta Rodrigo Garcia Lopes tanto pela sua tradução quanto pela introdução que acompanha o livro, muito bem pensada e situando, privilegiadamente, o leitor na respectiva poética. Somando-se a isto, ampliando a visão da americana que atravessou o século XX (1901-1991), bem menos divulgada do que muitos de seus pares e que, algumas vezes, parece se irmanar a S. Beckett e G. Stein, o tradutor organizou um fórum com críticos e poetas atuais americanos.

Uma das características dos poetas brasileiros que começaram a publicar nos anos 90 é a capacidade de atuarem em diversos níveis dos entornos interventivos da poesia: tradução, ensaios, resenhas, entrevistas, editoração. Traduzindo Rimbaud e Silvia Plath, publicando um excelente livro de entrevistas com pensadores contemporâneos da cultura americana, editando a revista de literatura “Coyote”, Rodrigo Garcia Lopes vem cumprindo, com mérito, este papel interventivo.


ALBERTO PUCHEU é poeta e professor de Teoria Literária da UFRJ

 

O tímpano está no fim

A íris ficou transparente.
O sentido se desgasta.
Até o sentido está transparente.
A pressa alcança a pressa.
A terra arredonda a terra.
A mente encosta a mente.
Claro espetáculo: cadê o olho?
Tudo perdido, nenhum perigo
Força a mão heróica.
Corpos não se opõem mais
Um contra o outro. O mundo acabado
É semelhança em toda parte.
Caem os nomes do contraste
No centro que se expande.
O mar seco estende o universal.
Nem súplica nem negativa
Perturbam a evidência geral.
A lógica tem lógica, e eles ficam
Trancados nos braços um do outro,
Senão seriam loucos,
Com tudo perdido e nada que prove
Que até o nada sobrevive ao amor.

Poema “Fim do mundo”, de Laura Riding

Página inicial de Rodrigo Garcia Lopes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

Alberto Pucheu

4.9.2004

 

 



 
Alta voltagem da liberdade das palavras
 


Regurgitofagia, de Michel Melamed. Editora Objetiva, 132 pgs. R$ 38
Alberto Pucheu
 


Vivemos uma época poética de fronteiras desguarnecidas: entre poesia e filosofia, entre poema e letra de música, entre o sujeito e o fora de si, entre o verso e a prosa, entre a palavra e as artes plásticas, entre a cultura erudita e a de massa, só para citar alguns dos exemplos mais correntes. O livro de Michel Melamed desliza, inapreensível, irretocavelmente, entre poesia e performance.

Assim como é difícil, porém enriquecedor, ler um livro de um grande letrista musical tendo de abdicar das canções que geraram suas palavras, “Regurgitofagia”, acompanhado de um CD da encenação que traz alguns dos esquetes apresentados no palco, nos faz deslizar entre a voz e a escrita, entre a cena e o belíssimo projeto, mais do que gráfico, plástico (a cargo de Olívia Ferreira e Pedro Garavaglia), entre o vestuário, tanto elegante quanto mal-ajambrado, como no caso daqueles raros mendigos que sempre nos atraem ou de um torturador sendo torturado, e as ruidosas palavras impressas.

É um livro, portanto, corporal; de um corpo de ator que, tendo agora de se ocultar, descobre o livro enquanto corpo. No espetáculo, o ator, ou, melhor ainda, o poeta-rapsodo, ligado a uma geringonça maquínica construída especialmente para a ocasião, toma choques a toda e qualquer reação da platéia, incorporados num jogo ao mesmo tempo tenso e tranqüilo, desde sempre aquiescido, com humor; no livro, o excesso de colagens de velhos bilhetes rabiscados em diversos tipos de papéis amarfanhados, acoplado à requisição da participação lúdica e inventiva do leitor em alguns poemas, muito além da pseudo-interatividade pouco inteligente atualmente buscada pela televisão, com a qual, nesses momentos, Michel dialoga, conseguem manter, no livro, o vigor da apresentação ao vivo, acolhedora das virtuosas improvisações. Assim como a performance não é a cópia do livro, este não é a reprodução daquela: relacionando-se, um escorregando para o outro, ambos têm força suficiente para manter suas capacidades independentes, por si próprias, instauradoras.

Desta encruzilhada entre poesia, performance e artes plásticas, ele tira toda a sua força, com um sopro de vida de uma juventude bem pensante, uma leveza poética inabitual, uma alegria dos arranjos das palavras, uma aproximação a muito do que, em nosso tempo, ocorre por aí. Algo como uma poética que lida com a sociedade de massas de maneira inovadora e instigante. Michel Melamed consegue manter a alta voltagem da liberdade das palavras, do pensamento e da vida, que todos desejamos e exigimos da poesia, ligada a um humor raras vezes conquistado por nossos poetas. Assumindo a tradição, dialogando, desde o título, com o modernismo e, conseqüentemente, com o tropicalismo, mas, também, com a vertente americana dos pocket-shows humorísticos, com “Regurgitofagia” ele nos ajuda a deslocá-la. Neste deslocamento da tradição, quem sai ganhando é a atualidade.

Enquanto, com poderosos estômagos ruminantes, os antropófagos clamavam pela necessidade, e, vale dizer, acima de tudo, pelo desejo, das mais diversas deglutições, o jovem poeta, como que chegando de uma farta noitada em uma churrascaria, já parte do excesso, ou seja, tanto dos filés quanto das gorduras ingeridas e das bebidas e das sobremesas e do cafezinho. Eis o momento de colocar tudo para fora. Por isso, ao invés do silêncio, que, habitualmente, se faz o lugar-comum do poético, o livro é deflagrado pelos rumores excessivos que caracterizam o estômago em revolvimento, os altos volumes das buzinas urbanas, os chiados dos entrecruzamentos dos mais diversos meios de comunicação, o jogo da livre associação das palavras com sentidos esvoaçantes.

Neste sentido, na realização de uma escrita polifônica, são antologicamente exemplares o texto que parte da palavra “ponto”, o que começa com “casa comigo”, o do “show do estupra”, as antilogias da morte, o do “pisciano, judeu, poeta e carioca e correntista do Itaú” e as páginas das liberdades conectivas, nas quais, através de pura associação livre, se conclui, por exemplo, que o que há de comum entre um soluço e um banco é um sapato. Como? Só lendo.

Uma das questões que mais me requisitam, convocando também amigos poetas com quem constante e fraternalmente converso, é sobre a contemporaneidade da poesia, da urgência de uma poesia que responda ao mundo atual. A poesia de Michel Melamed é uma possibilidade de tal acontecimento.
 


 
ALBERTO PUCHEU é poeta e professor de teoria literária da UFRJ

Direto para página de Michel Melamed

 

 

Manoel de Barros

 

Augusto dos Anjos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

26.2.2005