Álvaro Santi
Inverno de 85
No inverno de oitenta e cinco,
dezessete anos atrás,
escrevi cartas demais.
O fel vertia da pena
e à noite eu lia Rousseau,
à procura de um sistema
pra meu coração vazio,
onde não cabia o amor.
No inverno de oitenta e cinco,
Mercúrio andava por Gêmeos,
enquanto eu, como prêmio,
aos infernos fui descido.
Confesso que tive medo
de permanecer sozinho
ou me casar muito cedo.
No inverno de oitenta e cinco,
eu escrevi muitas cartas
― ou algumas, já não lembro.
Não sei se ela as terá lido,
se as guardou por algum tempo...
(Será que eu as despachava
ou punha eu mesmo no lixo?)
No inverno de oitenta e cinco,
eu no quarto me escondia.
Só da videira as ramadas,
de toda a vida despidas,
vinham até meu abrigo,
feito esquálidos fantasmas
tentando escapar do frio.
No inverno de oitenta e cinco,
escrevi algumas cartas
― ou terá sido uma só?
Todas prá ex-namorada,
nenhuma para um amigo.
Tudo o que eu tinha era dó
de mim e de meu umbigo.
No inverno de oitenta e cinco,
ou, para ser mais exato,
no solstício desse inverno,
faltei a um aniversário.
E foi meu castigo eterno
esperar cada solstício
anunciar que estou mais velho.
No inverno de oitenta e cinco,
escrevi inúteis cartas,
Travei o mais vão combate:
não encontrei a palavra
mágica que reparasse
um simples mal-entendido.
Era tarde, muito tarde...
No inverno de oitenta e cinco,
queria mudar o mundo
sem conhecer a mim mesmo.
Meio oculto atrás de um muro
(que eram meus longos cabelos),
mesmo assim era bonito,
na opinião de meu espelho.
No inverno de oitenta e cinco,
escrevi também poemas,
para acalmar minhas penas.
Alguns saíram em livros;
outros, como almas penadas,
perambulam pela casa
pedindo que os reescreva.
No inverno de oitenta e cinco,
enquanto eu não escrevia,
conheci outra menina
que me deu algum carinho,
no fusca azul de meu pai.
(Se ela me amasse, mas ai!
nem automóvel eu tinha...)
No inverno de oitenta e cinco,
se é que existiu esse ano,
melhor é ter esquecido
do que nele eu escrevi.
Tudo não passou de engano,
o sol não parou no solstício.
Só no verão fui feliz.
No inverno de oitenta e cinco,
eu tinha cabelos longos.
Porém mais longos e louros
eram os dela, bem sei.
E desde então misturei
algum sangue nos meus sonhos.
E o mais lindo deles todos
morreu: o amor infinito.
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