Ana Maria Almeida Xavier
UM QUINTAL
Sem conseguir me livrar das nostálgicas lembranças do quintal da
infancia, aquele que parece diminuir conforme a gente cresce,
resolví que queria voltar a ter um quintal depois de alguns anos
morando em apartamento. Tinha todos os argumentos prontos na cabeça:
vizinho de cima sempre faz barulho, ou quando sinto cheiro de fumaça
só dou conta de mim quando já estou descendo as escadas. As
tempestades de verão me assustam num apartamento, de onde posso
enxergar o tamanho do meu medo, mas não me assustariam numa casa, ao
rés do chão; estou cansada de ver as mesmas caras no elevador; subir
com as compras do mercado até a cozinha é muito difícil. Gostaria
muito de ter um ipê amarelo e um ipê roxo, para colocar uma rede no
meio, presa nos dois troncos, e ficar olhando de baixo para cima
todo aquele lindo conjunto de azul, amarelo e roxo. É tão bom cheiro
de terra molhada! Daqui de cima não dá para sentir... gostaria tanto
de ter umas trepadeiras dando flor por cima de um banco de
madeira... e um gatinho, de novo... quem sabe um balanço embaixo de
uma mangueira? Tanto sonhei, tanto insistí, tanto fiz que consegui
uma casa com quintal. Grama (que precisava ser cortada de quinze em
quinze dias), jardim (que precisava ser molhado até duas vezes por
dia no verão)e até horta (que se enchia de lagartas mais vorazes do
que eu). Quando chovia eu não tinha medo e sentia o cheiro da terra
molhada, mas a água, mais perto de mim agora, às vezes ficava tão
perto que enchia o quintal e queria entrar pela porta dos fundos, a
mais baixa. Ou pingava sobre a mesa da sala de jantar, quando havia
ressaca e a serra próxima, uma reserva ecológica, segurava as nuvens
bem em cima de nós. Vizinho não fazia mais barulho sobre minha
cabeça, mas dentro dela, pois era um lugar de veraneio, onde todos
parecem ser surdos – tudo toca muito alto. Todos vão para lugares
calmos com muita vontade de fazer barulho, depois de passar a semana
no caos da cidade. Fazem outro tipo de caos. Os moradores, coitados,
já tendo usufruído a calma do lugar a semana toda, são obrigados a
ficar escutando aquele tipo de música que só quem gosta de som bem
alto ouve: a de mau gosto! Mas ah! acordar de manhã com o som dos
pássaros, até canarinhos livres no quintal eu tinha, nos dias depois
que os veranistas iam embora, era bom! Até que chegam os meses de
férias e eles não vão embora nas segundas-feiras. Nem na semana
seguinte. Ainda chegam os parentes com garrafas e mais garrafas de
cerveja para animar a festa. As crianças da família, que devem ser
primos pois um casal só não conseguiria ter tanta criança, gritam e
pulam na piscina; parece que todas ao mesmo tempo, pois a gritaria
vai tomando conta do lugar, invadindo o silencio tão ansiosamente
buscado e tudo parece, nos dias de sol, um parque de diversões.
Depois de muito churrasco, bebedeira, música, briga e gritaria, os
adultos mais velhos vão dormir e os mais jovens vão para a praia. As
crianças, que nunca dormem, param de chutar bola só quando começa o
futebol de botão. O meu jornal de domingo fica dobrado do jeito que
apanhei na única banca de jornais do lugar. Não deu para ler com
calma, então vamos ver se amanhã dá para ler um jornal de domingo
requentado. Vindos de um apartamento onde tudo era compacto, foi uma
alegria espalhar os móveis pela casa enorme, ter um lugar separado
só para guardar as malas, ou para costurar, ou um cantinho ótimo lá
em cima para ouvir música. Mas... e para limpar isso tudo? Se na
cidade uma faxineira boa é preciosidade, onde encontrar quem limpe a
casa a contento num lugarejo de pescadores? Nos dias de ventania ou
na época em que os ipês soltam as folhas e fica só um buquê de
flores, que lindo!, mas quem vai varrer tanta folha, todo dia? Claro
que é uma delícia colher tomates, frutas, verduras e temperos do
quintal, mas eu nem sabia que é preciso adubar a terra, podar as
fruteiras, dissolver fumo de rolo – ecologicamente correto - para
espargir sobre as insistentes e variadas pragas. Eu havia esquecido
da maresia, também! Tudo estava crescendo, ficando verdinho; eu
fazia saladas achando muito melhor que o gosto dos agrotóxicos do
mercado. Só que a hera, que deixava o muro antes pintado de branco
agora tão rural, precisava ser cortada para não criar galhos depois
impossíveis de se tirar só com tesoura. Além de tesoura,
precisávamos de cortador de grama, tesourinhas para as roseiras,
vários tipos de pá – para obras e para plantar - e mais que tudo,
precisávamos de quem soubesse usar todas essas ferramentas: um
jardineiro, um pedreiro, mas onde? Toda vez que precisava ir ao
médico, ver parentes, comprar qualquer alimento, precisava do carro.
No começo, logo que nos mudamos, era muito romântico ver vagalumes
piscando, luzes da noite de que já havíamos até esquecido, estrelas
cadentes. Só quando finalmente, perto das eleições, colocaram postes
na rua eu ví como havia passado as noites antes disso: em completa
escuridão! Sentí um pouco mais de segurança e isso me fez começar a
perceber que poderia haver também alguma insegurança em morar no
mato, em ficar no escuro. Seria o escuro mais ou menos seguro que a
claridade da cidade de onde eu havia vindo, alí não muito longe?
Onde a paz? Havia mais estrelas no céu ou elas sempre estiveram lá e
eu não conseguia ver direito, na cidade? Comecei a perceber que meu
sonho poderia estar virando um pesadelo. Uns sagüis gritavam
agudamente nos galhos das árvores alí perto e eu ficava deslumbrada.
Até que ví uma cobra no quintal. Fizemos um laguinho que ficou muito
romântico, colocamos carpas e cerquei tudo com pedras redondas,
bambuzinho, várias mudas de plantinhas que custaram muito caro. Mas
valeu a pena, o laguinho ficou lindo. Até que umas carpas começaram
a aparecer boiando, brancas, de barriga para cima. Foi quando eu ví
que era preciso renovar a água com frequencia, pois só a água da
chuva e o sereno não davam. Ligar a bomba do poço e ficar tomando
conta para o laguinho não transbordar passou a ser mais uma das
tarefas. Com o racionamento de energia, tive de cuidadosamente
retirá-las de lá e colocar no canal que separa a areia do mar,
formando uma restinga. Carpas naquela água saloba? Coloridas, caras,
alimentadas com comida especial, agora destinadas a conviver com os
barrigudinhos naquela água escura. Sobreviveriam? Mas o que fazer?
Quando o pé de jamelão, adubado por um canteiro de terra preta que
fiz em volta dele, começou a encher o chão de frutas moles e para
mim inúteis, aumentou o número de abelhas e marimbondos
assustadoramente. Sou alérgica a insetos, entre outras coisas! No
inverno tínhamos bichinhos de todos os tipos mas felizmente não
havia mosquito, o pernilongo. Mas no verão... Minhas pernas ficavam
manchadas de tanta picada e quando eu coçava tudo inflamava.
Descobrí que tinha alergia também aos repelentes, pelo cheiro forte,
que espantava mais a mim que a eles, insistentes a ponto de um casal
que nos visitava considerar uma penitência continuar conversando alí,
na linda mesinha branca da varanda, com várias velas de andiroba nos
cercando. Foi quando desistí. Hoje estamos de novo num apartamento.
Sem plantas, sem mosquitos, sem quintal! Mas sem todos os
inconvenientes do sonho tornado realidade.
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