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Ana Maria Almeida Xavier

Thomas Colle,  The Return, 1837
 

 

Poesia:


 

Conto:


 

Crítica, ensaio, resenha e comentário:

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

Rodrigo Marques, ago/2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

Ana Maria Almeida Xavier

 

 


 

Estou escrevendo para agradecer a delicadeza: recebi o livro que me mandou, com o livreto mais o envelope com o pó de sementes... e o cheiro. O cheiro.Meu nariz carioca a princípio  o estranhou. Está acostumado aos ventos do Leste dobrando para o Sul, naquela curva que torna verdade o quase impossível – ver o pôr-do-sol, que ficou estabelecido ser a Oeste, e ainda mais: do ponto de vista de uma cidade virada para o Leste. Meu nariz carioca custou a  se lembrar da senha aprendida em viagens ao Nordeste. Ele custou a  desfazer o nó causado pela falta de familiaridade com a árvore, que está longe mim, e as suas sementes. Mas o que é estar perto e estar longe quando se trata de delicadezas? Tive de alargar as fronteiras do meu pequeno Estado do Rio de Janeiro até que elas alcançaram as do Brasil, coincidindo com o tamanho do nosso país tão rico em cheiros e cores e talentos e texturas e paisagens. Quando meu nariz carioca acordou para a intimidade que tinha com aquele cheiro do Norte - mas não se lembrava bem -  meus sentidos se alegraram.

O mundo hoje nos parece mais agressivo, mais assustador, mais tanta coisa e menos tantas outras. Hoje vi que não, deve ser por termos mais notícias que antes. Pensei nas barbaridades, este é o termo, que lemos nas histórias da Civilização. Não, hoje não se tem o espetáculo das mortes no Coliseu, nem as ruas lamacentas em Londres ou o cheiro fétido em Paris. Hoje, apenas, se sabe mais o que acontece. Isso foi o cheiro da imburana que me levou a pensar. É  assim: alguém que não me conhece me manda um cheiro tão bom e tão da minha terra, pelo Correio, ah... então não está tudo perdido!

A poesia RÉQUIEM me levou de volta à casa onde fui criança, e lembrei-me de que eu  tinha sido  criança – de vez em quando a gente até esquece que foi. Fui eu a menina que roeu  com uma colher o barro do tijolo da escada. Quando voltei lá um dia  o buraco da colher no tijolo era o mesmo, mas  eu não. O quintal, é claro que parecia menor.

Tudo passa, poeta, tudo morre, só não passa a manifestação do amor e da amizade. Ficam por aí num envelope cheio de perfume, numa dedicatória, num prato de bolo oferecido, num afago nas mãos ou num olhar de cumplicidade que foi trocado na hora certa. Fica  na História da Humanidade para a fazer melhorar e um dia, quem sabe, até despertar para o fato de que deveria nos bastar ser finitos. Fica para dizer, no exemplo de amor guardado na memória coletiva, que basta haver doença, terremoto, febre, acidente, raio na tempestade, mordida de cobra e piolho. Basta isso. Nós não, não devemos acrescentar dores. Um simples envelope cheio de cheiro Brasil me lembrou disso hoje.

Obrigada!

Ana Maria Almeida Xavier

Niterói - RJ

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

Ana Maria Almeida Xavier


 

CANTO MEDIEVAL

O bom guerreiro haverá
de deixar manipular
seu todo nos dois sentidos,
numa guerra em que não há
vencedores nem vencidos,
em que perder é o ganhar
de quem exerce o poder,
trocando assim os papéis
do que toca o instrumento,
pois cada instante há de ser
ora tinta ora pincéis.

Há de ser cada momento
um dar e obter tão louco
que o perdedor ganha tudo
e o ganhador perde pouco:
tudo é dito em instante mudo.
O guerreiro entrega a espada
a quem o vence e deseja,
assim termina a peleja
onde perder vale nada

e onde vencer é depor,
onde quem empurra abraça,
onde o exausto perdedor
poderá erguer a taça,
onde o terreno ocupado
é entregue ao usurpador,
é espaço dado e tomado
em nome e em função do amor.

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

Ana Maria Almeida Xavier


 

 UM QUINTAL

Sem conseguir me livrar das nostálgicas lembranças do quintal da infancia, aquele que parece diminuir conforme a gente cresce, resolví que queria voltar a ter um quintal depois de alguns anos morando em apartamento. Tinha todos os argumentos prontos na cabeça: vizinho de cima sempre faz barulho, ou quando sinto cheiro de fumaça só dou conta de mim quando já estou descendo as escadas. As tempestades de verão me assustam num apartamento, de onde posso enxergar o tamanho do meu medo, mas não me assustariam numa casa, ao rés do chão; estou cansada de ver as mesmas caras no elevador; subir com as compras do mercado até a cozinha é muito difícil. Gostaria muito de ter um ipê amarelo e um ipê roxo, para colocar uma rede no meio, presa nos dois troncos, e ficar olhando de baixo para cima todo aquele lindo conjunto de azul, amarelo e roxo. É tão bom cheiro de terra molhada! Daqui de cima não dá para sentir... gostaria tanto de ter umas trepadeiras dando flor por cima de um banco de madeira... e um gatinho, de novo... quem sabe um balanço embaixo de uma mangueira? Tanto sonhei, tanto insistí, tanto fiz que consegui uma casa com quintal. Grama (que precisava ser cortada de quinze em quinze dias), jardim (que precisava ser molhado até duas vezes por dia no verão)e até horta (que se enchia de lagartas mais vorazes do que eu). Quando chovia eu não tinha medo e sentia o cheiro da terra molhada, mas a água, mais perto de mim agora, às vezes ficava tão perto que enchia o quintal e queria entrar pela porta dos fundos, a mais baixa. Ou pingava sobre a mesa da sala de jantar, quando havia ressaca e a serra próxima, uma reserva ecológica, segurava as nuvens bem em cima de nós. Vizinho não fazia mais barulho sobre minha cabeça, mas dentro dela, pois era um lugar de veraneio, onde todos parecem ser surdos – tudo toca muito alto. Todos vão para lugares calmos com muita vontade de fazer barulho, depois de passar a semana no caos da cidade. Fazem outro tipo de caos. Os moradores, coitados, já tendo usufruído a calma do lugar a semana toda, são obrigados a ficar escutando aquele tipo de música que só quem gosta de som bem alto ouve: a de mau gosto! Mas ah! acordar de manhã com o som dos pássaros, até canarinhos livres no quintal eu tinha, nos dias depois que os veranistas iam embora, era bom! Até que chegam os meses de férias e eles não vão embora nas segundas-feiras. Nem na semana seguinte. Ainda chegam os parentes com garrafas e mais garrafas de cerveja para animar a festa. As crianças da família, que devem ser primos pois um casal só não conseguiria ter tanta criança, gritam e pulam na piscina; parece que todas ao mesmo tempo, pois a gritaria vai tomando conta do lugar, invadindo o silencio tão ansiosamente buscado e tudo parece, nos dias de sol, um parque de diversões. Depois de muito churrasco, bebedeira, música, briga e gritaria, os adultos mais velhos vão dormir e os mais jovens vão para a praia. As crianças, que nunca dormem, param de chutar bola só quando começa o futebol de botão. O meu jornal de domingo fica dobrado do jeito que apanhei na única banca de jornais do lugar. Não deu para ler com calma, então vamos ver se amanhã dá para ler um jornal de domingo requentado. Vindos de um apartamento onde tudo era compacto, foi uma alegria espalhar os móveis pela casa enorme, ter um lugar separado só para guardar as malas, ou para costurar, ou um cantinho ótimo lá em cima para ouvir música. Mas... e para limpar isso tudo? Se na cidade uma faxineira boa é preciosidade, onde encontrar quem limpe a casa a contento num lugarejo de pescadores? Nos dias de ventania ou na época em que os ipês soltam as folhas e fica só um buquê de flores, que lindo!, mas quem vai varrer tanta folha, todo dia? Claro que é uma delícia colher tomates, frutas, verduras e temperos do quintal, mas eu nem sabia que é preciso adubar a terra, podar as fruteiras, dissolver fumo de rolo – ecologicamente correto - para espargir sobre as insistentes e variadas pragas. Eu havia esquecido da maresia, também! Tudo estava crescendo, ficando verdinho; eu fazia saladas achando muito melhor que o gosto dos agrotóxicos do mercado. Só que a hera, que deixava o muro antes pintado de branco agora tão rural, precisava ser cortada para não criar galhos depois impossíveis de se tirar só com tesoura. Além de tesoura, precisávamos de cortador de grama, tesourinhas para as roseiras, vários tipos de pá – para obras e para plantar - e mais que tudo, precisávamos de quem soubesse usar todas essas ferramentas: um jardineiro, um pedreiro, mas onde? Toda vez que precisava ir ao médico, ver parentes, comprar qualquer alimento, precisava do carro. No começo, logo que nos mudamos, era muito romântico ver vagalumes piscando, luzes da noite de que já havíamos até esquecido, estrelas cadentes. Só quando finalmente, perto das eleições, colocaram postes na rua eu ví como havia passado as noites antes disso: em completa escuridão! Sentí um pouco mais de segurança e isso me fez começar a perceber que poderia haver também alguma insegurança em morar no mato, em ficar no escuro. Seria o escuro mais ou menos seguro que a claridade da cidade de onde eu havia vindo, alí não muito longe? Onde a paz? Havia mais estrelas no céu ou elas sempre estiveram lá e eu não conseguia ver direito, na cidade? Comecei a perceber que meu sonho poderia estar virando um pesadelo. Uns sagüis gritavam agudamente nos galhos das árvores alí perto e eu ficava deslumbrada. Até que ví uma cobra no quintal. Fizemos um laguinho que ficou muito romântico, colocamos carpas e cerquei tudo com pedras redondas, bambuzinho, várias mudas de plantinhas que custaram muito caro. Mas valeu a pena, o laguinho ficou lindo. Até que umas carpas começaram a aparecer boiando, brancas, de barriga para cima. Foi quando eu ví que era preciso renovar a água com frequencia, pois só a água da chuva e o sereno não davam. Ligar a bomba do poço e ficar tomando conta para o laguinho não transbordar passou a ser mais uma das tarefas. Com o racionamento de energia, tive de cuidadosamente retirá-las de lá e colocar no canal que separa a areia do mar, formando uma restinga. Carpas naquela água saloba? Coloridas, caras, alimentadas com comida especial, agora destinadas a conviver com os barrigudinhos naquela água escura. Sobreviveriam? Mas o que fazer? Quando o pé de jamelão, adubado por um canteiro de terra preta que fiz em volta dele, começou a encher o chão de frutas moles e para mim inúteis, aumentou o número de abelhas e marimbondos assustadoramente. Sou alérgica a insetos, entre outras coisas! No inverno tínhamos bichinhos de todos os tipos mas felizmente não havia mosquito, o pernilongo. Mas no verão... Minhas pernas ficavam manchadas de tanta picada e quando eu coçava tudo inflamava. Descobrí que tinha alergia também aos repelentes, pelo cheiro forte, que espantava mais a mim que a eles, insistentes a ponto de um casal que nos visitava considerar uma penitência continuar conversando alí, na linda mesinha branca da varanda, com várias velas de andiroba nos cercando. Foi quando desistí. Hoje estamos de novo num apartamento. Sem plantas, sem mosquitos, sem quintal! Mas sem todos os inconvenientes do sonho tornado realidade.

 

 

 

 

 

 

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