Castro Alves
Germano Machado
Castro Alves - A filosofia na poesia
in Jornal A Tarde, 15/03/97
Em todo movimento literário, dentro de diversas
correntes de literatura, subsiste sempre uma filosofia. Se as
ciências técnicas e humanas se interligam, por que não se ver a
filosofia na literatura, a filosofia na poesia, a própria e
intrínseca poesia na filosofia mesmo?
Evidentemente não se afirma que, poeta e gênio
poético, em face da idade um fenômeno, seja Castro Alves filósofo,
formal ou técnico. Combinaram-se sempre, mesmo quando a combatem,
poesia e filosofia, seja em Platão ou Agostinho, um Plotino, um
Spinoza, cuja maneira de expor sua filosofia vai a par da poesia.
Afirma-se, antes, que a Filosofia perpassou sua poética e deu o
sentido que apresenta.
Castro Alves, filósofo? Não. Filosofia na poética de
Castro Alves? Sim. Por que não? Não existisse e seria mero copiador
de estilos literários de sua época ou decalcador da poesia que
dominou o tempo que lhe foi próprio. Ainda seria pior: um poemar sem
finalidade. Seu talento poético moralista (no sentido filosófico e
não apenas de dicionário), analisadas suas poesias articipantes com
o especular pensamental, mostra a influência filosófica envolvendo-o
por inteiro na sua dimensão de poetizar, confluindo na filosofia
social, política, libertária, humanística.
Eugênio Gomes afirma: “Colocava-se, portanto, em
plena e estrepitosa órbita do romantismo liberal, no qual o eco
sonoro do verbo hugoano convocava adeptos, iniciando-os numa espécie
de evangelização político-social, fortemente nutrida pela
fraseologia filosófica do século: Justiça, Ideal, Liberdade,
Humanidade, Progresso”.
Importa ver ainda Castro Alves como romântico, em
duplo ou triplo sentido, e até por definição. Homem de seu tempo e
de sua época e seus reflexos, ao contrário dos seus antecessores a
se amarrarem ao passado e em suas nostalgias, ele, ao contrário,
antes volta-se para o futuro, para o porvir, o amanhã com toda força
de seu coração jovem e pelo íntimo e intrínseco
sentir-sonhar-refletir que o que não permanece em um tipo de
tendência literária há de ser superado.
Aí, a marca do gênio: saber transcender, pela
‘intuição’ mais do que pela ‘razão’ (e, então, filosofia atual, para
o que há de vir), ‘superar’, embora ‘contendo’ o imediato. Era,
assim, um místico, tanto quanto um sensual, conhecedor de Bocage e
talentos poéticos iguais.
Se Victor Hugo era ‘Poeta Vidente’ (vê para adiante
ou entremostra o que há de vir), Castro Alves, adolescente e jovem
apenas, menino quase, apesar do tempo pouco de vivência, também o
era. Demonstra-se igual ao velho Hugo, embora destinos desiguais, em
parte. Igual ou superior, se notarmos as circunstâncias de idade,
ambiente, vivências. Neste sentido pode-se afirmar ser o Poeta dos
Escravos contemporâneo do futuro, companheiro do amanhã e inebriado
da manhã, o hoje que não se torna passado, mas futuro, portanto, um
poetar de permanência, o que constitui o substrato e a essência do
filosofar.
Permanência do que o tempo deixa, pois, subsistir,
pretérito destinado ao presente-futuro: finalidade da história e da
filosofia. O permanente na poética castroalvina, sentido eterno do
amor à mulher, à flor, à natureza, ao coração, ao próprio amor em si
e de Deus (sua poesia toda posta em termos assim situa-o como homem
de seu tempo e do que virá), a luta social humana.
Abolicionista, grita, clama, transforma-se em flama
pelo negro, escravo explorado; nacionalista e patriota vê a
tendência de liberdade dos povos coloniais e ainda também aqueles
povos antigos agora subjugados; coração ferido de amor e de dor pelo
ser humano, em sua existencialidade.
Particulariza o intuitivo mais do que o social e o
humano, sabe-se que, quando cantou O Século, na Faculdade de Direito
do Recife, as idéias que a embasavam, a política de redenção e
libertação do homem, dentro, aliás, do espírito do liberalismo
político das revoluções Francesa e Americana, foram vistas de viés.
Um professor avesso às idéias das estrofes político-filosóficas, o
reprovou no final do ano.
A filosofia sócio-política do seu século, vinda desde
a Revolução de 1789, incomodava os privilegiados. Dificilmente as
transformações sociais atingem o coração dos homens concretos do
poder e das estruturas. Não querem esses ceder lugar ao novo, ao que
muda e lhes tira os privilégios.
A poesia político-social sabe a nacionalismo, aquele
que se alarga às fronteiras da terra, não o xenófobo, o que odeia
outras pátrias e nações, a embasar os regimes totalitários da
direita-e-da-esquerda. O mesmo nacionalismo patriota que o poeta
reivindica em sua poética para que o Brasil se liberte de escravos e
dê sentido à sua trajetória nacional. Castro Alves político,
participante do drama do mundo, inserido na filosofia da época,
portanto não alienado, não alheio, porque poeta, ao fator
politicista.
Em Recife, devido ao contato com Tobias Barreto, se
poeta mais filósofo, na sua Faculdade de Direito tem o senso
universitário, apesar de, no tempo, não haver universidade, ficando
Direito como um centro de pensamento e ação. Superemos os meros
aconteceres amorosos poéticos conhecidos entre os dois e vejamos que
o seu contacto mútuo enriqueceu e desprovincianizou ambos daquele
sentido de aldeia ainda predominante. Em São Paulo e sua faculdade.
No Rio. E pela sensibilidade poética, universaliza-se, a partir da
Bahia. Eugênia Câmara, também, dá ao poeta amor, leva-o mais ainda
ao teatro, arte por excelência participativa e transformadora.
Logo, em Castro, só neste exemplo de O Século, a
política social e política existe em função da poesia participativa
(o que implica filosofia com vistas ao humano redimido) dentro do
panorama de filosofia liberal e libertária da trajetória do século
XIX, com o antecedente dos séculos XVIII e XVII.
O Século é, deste modo, poema de filosofia política,
a crença na história libertária. Termina o poema com um dos
motivos-chaves de sua poemática, o amor à juventude, a juventude
como idéia-força, a juventude do mundo (mundialização da idéia) e a
juventude do Brasil (nacionalização e patriotismo da idéia).
Eugênio Gomes exprime com a competência peculiar: “Em
suma, nesse poema (O Século) já estava o pensamento central, que
Alves iria desenvolver de outras do mesmo teor humano e social,
alguns em forma de odes ou de pequenas epopéias hugoanas...
Como era usual em tais composições, evidenciando a
ascendência da sociologia sobre o Romantismo, o insólito poema traz
abundante nomenclatura histórica... A idéia de que a morte seria o
caminho certo à liberdade dominava então mais do que nunca o
pensamento de Castro Alves e influiu sobre a concepção de A
Cachoeira de Paulo Afonso, ultimada na mesma época, quando o poeta,
embora menos combalido, tinha o pressentimento de um fim próximo...”
Sim, o viver de Castro, como lírico, romântico,
condoreiro, social-político, humanista, envolve, logicamente,
filosofia de existência onde os temas do tempo (e outros de todos os
tempos) se deixam apresentar.
A idéia da morte (tão própria da dolência e sofrência
românticas) agudiza no poeta, porque pressente que sua doença, a
tuberculose, seria fatal e tinha a consciência, ainda aqui um
pensador de profundidade apesar dos poucos anos de vivência e
sofrência, embora intensos, de que somente a morte, apesar da
juventude do poeta, vai a par das idéias de Deus, juventude, alma,
amor, livro, mulher, natureza em geral, escravo e libertação,
grandes nomes históricos, heróis, sentido bíblico (pois era biblista
no significado de conhecer a Bíblia, talvez mais o Antigo Testamento
do que o Novo, o que já é uma revelação de uma revolução, pois como
católico de tradição, mais se tratava dos Evangelhos nas famílias
religiosas da sua época).
Há em toda a poemática de Castro Alves a descida à
interioridade, o que, em termos de literatura do século XX,
chamaríamos de intimista. Ouso denominá-lo intimista, típico e
próprio.
E, aqui chegando, paro, penso: repetir Castro Alves
pela cantilena monótona de seus poemas, sem conhecer o que o movia
por dentro, sem descer à sua alma, ao mundo de seu espírito
interior, faz com que esteja morto para tantos e não vivo. Pois,
convenha-se, se o prendermos às riquezas de seu lirismo
exclusivamente, sem o olharmos nessa integralidade de Andes ou
Chimborazo ou Himalaia (copiemo-lo) da poesia é deixá-lo apenas como
fontede declamação vazia e oca, o decorar seu pensamento sem
entender, o pronunciar frases de que não se percebe a essência e
substância. Por isso, o temos diminuído.
Se, porém, o estudarmos (papel dos castroalvinos em
geral, das faculdades de Letras, de Filosofia, de Psicologia também,
dos grupos literários e culturais, das academias de todo o tipo
cultural e literário), veremos grandeza real e não formal somente,
um gigante do pensar. Poeta realmente vivo. Percebamos o afirmado em
Sub Tegmine Fagi.
Neste poema fala de Hugo (paixão permanente e em face
de sua idade faz-se maior do que o prisioneiro da Ilha de Jersey,
como personalidade humana, um jovem poeta tuberculoso dos trópicos
capaz de chegar a estas alturas e, inclusive, de traduzí-lo de um
francês de sabor próprio e impecável, sem lhe tirar a essência
singular).
Termina o poema filosoficamente:
“Vem! Do mundo leremos o problema
Nas flores da floresta, ou do poema,
Nas trevas ou na luz...
Não vês?... Do céu a cúpula azulada,
Como uma taça sobre nós voltada,
Lança a poesia a flux!...”
Certo panenteísmo (Deus em tudo e tudo em Deus)
perpassa no poema e em tantos e tantos de Alves, pois a Natureza lhe
está sempre presente.
A poesia social (sem aspas aqui) de Castro Alves,
contém, como na política, aliás complementar e se interagindo, visão
do pensamento fundamental do século XIX e um dos fatores da
filosofia: a liberdade e o respeito do homem, dos direitos do homem.
O que vemos em “Ao Romper D’Alva”, “A Visão dos Mortos” e “A Canção
do Africano”, dentre tantos e tantos.
Finalizo chamando a atenção de um dos mais belos
poemas do poeta: O Vidente, poesia bíblica, lembrando um tanto Poe e
bastante de Whitman.
O termo vidente conota, ao mesmo tempo, sentido de
filosofia estrita (visão) (theoria do grego), o sentido da
interioridade, do saber ver, do contemplar. Além da citação inicial
de Isaías, fala Castro em salmo, apela misticamente a Deus com o
nome de Senhor – Javé ou Iavé, além de termos religiosos como
freira, alma, prece, terra e céus e a sombra de Deus. Filosofia
religiosa, que se agiganta em Jesuítas. Há, aqui e ali, certo
anticlericalismo, próprio do espírito da época. Há saudade íntima,
nostalgia ao modo brasileiro.
* Germano Machado é filósofo cristão e professor;
fundador do Círculo de Estudo Pensamento e Ação (CEPA). Excertos do
texto original.
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