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Cláudio Neves
Valsa suburbana
No muro a hera,
se calcinada,
se regenera,
e flore tão ela,
tão rente ao que era,
como se não houvesse
na hera a morte,
na morte
a primavera.
(De sombras e
vilas, 7Letras, Rio de Janeiro, 2008)
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Os mortos
Os mortos não tomam chá
nem sentam
ao piano esquecido aberto.
Os mortos não velam
nossas horas debruçadas sobre suas gavetas.
E, se interrogam fundamente do outro lado do espelho,
sequer nos reconhecem.
Os mortos ficam mortos porque assim se concebem.
E há muito trocaram os porta-retratos
por outras formas, mais refinadas, de desprezo.
(De sombras e
vilas, 7Letras, Rio de Janeiro, 2008)
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O GRITO
( sobre um
quadro de Munch )
Há sempre um
fiorde e uma ponte
em toda a vertigem humana,
e sempre essas nuvens em chama
no som da palavra horizonte.
Há sempre um
fiorde, uma ponte,
dois homens de negro e o louco,
e curvas no espaço amplo e pouco,
e ser nesse andrógino instante.
Há sempre dois
barcos que somem
além do fiorde e da ponte
que brumas tão rubras consomem.
E nesse grito a
que ninguém responde,
há sempre esse eco bifronte,
esse espaço sem quando, esse tempo sem onde.
[De sombras e
vilas, 7letras]
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DUPLO
Eu
finjo ser quem fui,
porquanto assim me seja
real ser o que frui
e não quem o deseja.
Eu
tento ser quem era
somente porque é belo
e inútil, e desespera
tentar ser mais do que sê-lo.
Finjo sempre nesta hora
de crepúsculo incompleto
em que duvido se é minha
a sombra azul que projeto.
[De
sombras e vilas, 7letras]
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De Sombras e Gatos
1. Negro
O único todo
de sombra compacta.
E todo ele
é movimento
e sempre anfíbia
sua passagem.
Como uma idéia
por entre coisas,
como uma coisa
entre palavras.
Sequer despreza
como outros gatos:
ao gato negro
basta o contraste
com qualquer sombra de realidade.
Mas, quando estaca,
(a pata erguida,
inconcluso o passo)
fagulha apenas
seu olho incriado.
Como uma idéia
por entre coisas,
como uma coisa
entre palavras,
como uma morte
dentro do Nada.
2. Siamês
Este flutua,
porque as sombras
que vai sorvendo
sobem-lhe só
até a antepata.
De resto é quase
um arquigato,
que evita o contato
da realidade.
Por isso despreza
qualquer paisagem,
e qualquer muro
lhe é impuro
às negras patas.
E, quando pára,
sua presença
flutua apenas.
Como uma idéia
pela metade.
Como uma coisa,
uma palavra
metade sombra,
metade gato.
3. Malhado
No gato malhado,
dito vira-lata,
a sombra invade,
milparte o gato.
Falta-lhe a linha
dorsal compacta
e o passo infalível
dos outros gatos;
falta-lhe a idéia
de contraparte:
nem bem é branca
ou negra metade
e ao todo é menor
que as manchas somadas.
É talvez, assimétrico,
quase o antigato
em seu claro-escuro
barroco, abstrato.
Não é a coisa,
mas as muitas falhas,
as muitas faltas
que lhe são inatas:
como uma idéia
despedaçada
numa palavra muitas palavras.
4. Persa
Seu branco passo
recusa à sombra
dessedentá-la,
porque despreza
qualquer caçada,
qualquer esforço,
assassinato.
Sonha um relevo
de almofadas
e presas súditas
de seu enfado.
Recusa o fogo
de seu contato
e mesmo os olhos
dos outros gatos.
Dorme em presença
da humanidade
o sono inato
das coisas fartas.
Mas, quando hesita
em levantar-se
(como um remorso
ou uma espada),
é inútil e exato.
Como uma coisa
antes da idéia,
como uma idéia
antes da palavra.
(De sombras e vilas, 7Letras, Rio de
Janeiro, 2008)
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Apenas fora do tempo
o amor é possível,
mas apenas
em seu curso é que existe.
Habita-o como um rosto
o fundo de um espelho
e como um risco
sua superfície.
(Os acasos persistentes,
7Letras, Rio de Janeiro, 2009)
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Que o amor não é. Será.
Nunca infinito,
mas infinitivo.
Não dura. É duração.
Depura o tempo
em força, direção, sentido.
Habita a areia à beira-mar
não como rastro,
mas como um passo erguido.
(Os acasos persistentes,
7Letras, Rio de Janeiro, 2009)
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(dois sonhos)
I
Às vezes lembrava, às vezes
não.
Lembrava a casa entre as
papoulas,
a casa branca, antiga, sem
chão.
Nas noites de não, ela o
visitava.
Lembrava às vezes que
flutuara
no campo em torno e sobre
um cão
de olhos vazados vertendo
som.
Às vezes lembrava, às vezes
não.
Lembrava a menina de short,
descalça,
correndo na chuva em torno
da casa.
Nas noites de não, ela o
visitava.
Nas noites de não, ela o
sonhava,
ele menino, ele e um cão
olhando juntos a enxurrada.
II
Lembrava às vezes, às vezes
não.
Nas noites de não, ele a
sonhava,
entrando molhada, afagando
um cão.
Nas noites de não, ela o
sonhava,
depois não lembrava, a não
ser de um vão,
quente e oculto sob a
antiga escada.
Às vezes lembrava, às vezes
não,
senão que sentia, quando
acordava,
que flutuara, dissera um
não.
Nas noites de não, se
visitavam.
Os corpos trêmulos, sob a
escada,
os corpos ungidos por
aquela casa,
por aquele nada dos olhos
de um cão.
(Os acasos persistentes,
7Letras, Rio de Janeiro, 2009)
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As maçãs de resina sobre a
mesa
habitam as manhãs,
combinam com a bandeja,
só existem às vezes.
As maçãs de resina não
trazem
a lembrança da terra
e a nostalgia das mãos
das maçãs verdadeiras.
As maçãs de resina não
esperam
quem as erga e gire e teste
se duas vogais vermelhas
cabem na sua frieza.
Das maçãs de resina, embora
impassíveis,
embora silêncio,
ninguém dirá que amores
nem dores nem desejo.
Ninguém dirá que o que lhes
falta
exige a urgente madureza
de todas as maçãs
que ainda não nasceram.
(Os acasos persistentes,
7Letras, Rio de Janeiro, 2009)
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(Lázaro)
I
Às vezes lembrava,
às vezes não,
os nomes à mesa,
os nomes das coisas,
o gosto do pão.
Às vezes achava
que tinha sonhado
o frio, a caverna,
a brisa da treva,
a pedra rolada,
Às vezes pensava
que agora sonhava:
por isso que as falhas,
por isso os estranhos,
os tantos olhares.
II
Diziam as irmãs
(assim se anunciavam)
que a voz voltaria
(que voz não sabia),
não se preocupasse.
Disseram-lhe os sábios
que fora escolhido
para outra jornada
(e pouco entendia
tão fundas imagens).
Mas a voz que ouvira,
a por que obedecera
alheio à vontade,
a que falta à mesa,
já não lhe falava.
III
Às vezes lembrava,
às vezes não,
por que caminhara,
por que se afastara
das mesas, das casas.
Às vezes lembrava
da vaga jornada
ao deserto insone
que a cada alvorada
o pacificava.
Às vezes julgava
ouvi-lo falar,
chamar por seu nome.
Sonhava-se um anjo,
areia, luar.
IV
Às vezes lembrava,
às vezes não,
o nome deserto,
que nome tivera,
que nome chamar.
Cada vez mais sonha
um sonho em que, anjo,
caminha soberbo
entre esgares até
uma voz que o quer.
Às vezes dos loucos
sorri complacente
ouve histórias sem nexo
de um deus
e de um homem ressurrectos.
(Os acasos persistentes,
7Letras, Rio de Janeiro, 2009)
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Certas manhãs parece que
sempre existiram,
em outras somos nós que
amanhecemos
para o frescor universal
dos sinos,
para de novo ir com a avó à
missa.
Certas manhãs parece nos
feriram
com seu azul desde o
primeiro dia
e outras em que solfejamos
hinos
em luminosas e perdidas
línguas.
Certas maçãs são tão
irrefutáveis...
Há uma esperança universal
de inexistirmos,
de não ser nossa a que
chamamos nossa voz.
E há certas noites, embora
vulgares,
em cujo centro onipresente
pressentimos
a combustão de Deus, a
marcha dos heróis.
(Os acasos persistentes,
7Letras, Rio de Janeiro, 2009)
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Se mais se teme o amor do
que a morte,
se mais se teme a espera do
que a voz,
é porque fundo e além do
que chamamos nós
habita alguma coisa que nos
sabe.
Se pura ou maculada de quem
somos,
se lâmina, se linfa, se tão
pronta
a nos cindir ou condensar
em outro,
é porque desde sempre em
nós não cabe.
Sentimos que se agita em
frente ao mar
e silencia em face de outro
corpo,
às vezes de uma cor ou de
um piano.
Sabemos que por fim
reclamará
o que dizemos ser à
falta de outro nome,
aquilo que em nós é, mais
que nós, humano.
(Os acasos persistentes,
7Letras, Rio de Janeiro, 2009)
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