Efemeridade e permanência
na poesia de Cláudio Neves
Neste novo
livro de Cláudio Neves assumem particular relevância os conceitos de
Amor e de Morte, que, no entanto, são submetidos aqui a uma
abordagem cuidadosa e incomum na poesia ocidental. Logo nos dois
versos iniciais do primeiro poema, o poeta deixa-nos entrever que o
amor de que irá falar se coloca em dois planos distintos, embora com
zonas tangenciais e de possíveis permutas: aquele que “já foi/ antes
de ter sido” (poema 1), que é livre de objectos particulares e, em
última instância, livre de si mesmo, e um segundo nível onde o amor,
por uma vivência concreta, se revela nos quotidianos gestos. Esta
concepção remete-nos imediatamente para um solo matricial bem caro
ao Ocidente, embora, e como veremos, Cláudio Neves articule, de
forma exímia, todo esse legado da tradição com aspectos de uma
modernidade que são intrínsecos à sua arte poética. Os primeiros
nomes que nos ocorrem são o de Empédocles e o de arché, substância
dinâmica bem cara aos Jônicos, já que o Amor nesta obra de Cláudio
Neves é incriado e subjacente a tudo, mas que, no entanto e num
segundo momento, “Dança num intervalo/ de luz…” (poema 1). O poeta
insiste, em vários dos seus textos, nesta cisão originária que
ocorre no seio do amor: “Apenas fora do tempo/ o amor é possível,/
mas apenas/ em seu curso é que existe” (poema 6); “O amor é isso:/ o
que escolhe ser,/ à revelia de quem o habita” (poema 14).
Paralelamente a este nível do Amor, encontramos um outro de estatuto
ontológico inferior – aquele que é vivenciado no quotidiano: “o teu
amor desliga o som,/ tira-me os óculos e o livro” (poema 5). Perante
esta visão dialógica e especular do amor conseguimos perceber as
razões que levaram Cláudio Neves a optar por epígrafes e imagens que
nos induzem jogos de reflexos e refrações: o olhar de um cão (cf.
poemas 5,16 e 19); o espelho (cf. poemas 6 e 24). Estes dois planos
através dos quais o amor se nos apresenta perpassam todo o livro, o
que nos conduz a uma nova dicotomia: a ordem da permanência e a da
efemeridade: “Certas manhãs parece que sempre existiram/ em outras
somos nós que amanhecemos” (poema 27); “Aquilo que prestes,/ aquilo
que quase,/ os gestos inertes/ vibrarão mais rentes,/ tocarão mais
leves,/ sorverão mais lentos/ a verdade quieta/ de todo objeto”
(poema 21). Vemos, por conseguinte, que são inúmeros os versos e/ou
os poemas em que se desenham não só os dois níveis do amor já
referidos à saciedade, como também a alternância entre os estados de
permanência e de transitoriedade. Consciente de que o amor vivido é,
então, uma secundarização – ou até uma falha – no meio da totalidade
amorosa, o poeta experiencia-o, por vezes, com sentimentos de
carácter negativo: o “cínico silêncio” (poema 15) e o desalento (cf.
poemas 9 e 23). É importante enfatizar ainda o cuidado com que toda
a imagética desta poesia é trabalhada, e disso daremos aqui um só
exemplo: a associação desalento/insuficiência do amor vivido aparece
por duas vezes ligada à cor violeta, que na religiosidade cristã tem
uma conotação bem definida: “o pensamento/ assume um tom/ de
violeta.” (poema
2);
“Ficou-lhe a voz,/ o aforismo/ ferindo a tarde violeta” (poema 12).
A morte
aparece, nesta obra de Cláudio Neves, geminada com o amor, sendo
assim uma presença constante ao longo de todo este trabalho: “O Amor
e a Morte/caminhavam juntos/ num jardim fechado.” (poema 20, I).
Todavia ela não tem, para o poeta, uma conotação necessariamente
negativa:
Na morte
seremos
o que
perdemos
o que já
fomos
antes de
sermos.
Apenas na
morte
seremos
o que
somos,
quem fomos
antes de
conhecê-la.
(poema 11)
A Morte
encontra-se, portanto, associada ao desmoronamento da efemeridade e
das vivências do amor quotidiano e, consequentemente, à ascensão a
esse Amor fonte de tudo. Voltamos assim a um outro item da matriz
ocidental: esse morrer para o mundo tão evidenciado nas obras de
Teresa de Ávila e de João da Cruz. Se a morte,
neste
livro, pode ocorrer a qualquer momento (cf. poema 20, IV), também a
absolutização amorosa se pode fazer a qualquer instante, aliás, a
morte no quotidiano e a eternização daquilo que verdadeiramente É,
na poesia de Cláudio Neves, e aqui ao contrário da tradição
ocidental, é feita a par da materialidade, do corpo, da sexualidade;
se na tradição lírica os mais altos cumes têm sido conseguidos
através da ausência da amada ou do amado (a sua morte, o seu
afastamento geográfico, o desnível classista, o afeto não
correspondido, etc.), nesta poesia a fusão com o Amor pleno pode ser
conseguida, não sem uma ruptura, mas com uma assunção e
transfiguração do amor quotidiano: “Tudo isso farei eterno,/ se me
confias teu corpo sem ruído,” (poema 16); “E há certas noites,
embora vulgares,/ em cujo centro onipresente pressentimos/ a
combustão de Deus, a marcha dos heróis.” (poema 27) – eis-nos
chegados ao final de todo um ciclo dialéctico. Âmago de uma
autêntica epifania: fusão no Amor originário; consumação de um
périplo, onde Cláudio Neves retoma as imagens específicas de uma
poesia de cariz metafísico: a figura do anjo (poema 25, II e IV), a
problemática da ressurreição (poema 25, I, II e IV) e, finalmente e
à guisa de conclusão, essa ideia de que o deserto é susceptível de
ser ultrapassado, mas apenas por esses heróis, que, “à mesa dos
loucos” (poema 25, IV), insistem, quais ressurrectos seres numa
amorosidade diária, firmando esse Amor que, primordial, tudo move.
Outro
aspecto quanto a nós fundamental nesta poesia é o modo como Cláudio
Neves articula todo o domínio da modernidade poética, que desde o
início percebemos
ter, com uma súmula de processos formais
provenientes da tradição. Este escorreito alcançar de um justo-meio
entre as referidas duas instâncias, faz-nos lembrar três dos maiores
poetas que, no século XX, escreveram igualmente em português:
Vitorino Nemésio, Ruy Belo e David Mourão-Ferreira; também estes,
embora com poéticas radicalmente distintas da presente, conseguiram
esse equilíbrio entre o que no antigo urge preservar e aquilo que no
moderno está para além das espúrias gangas de prestidigitações
grosseiras e completamente apoéticas.
Neste livro
estamos frente, não a um versejar tradicional e anquilosado ao qual
se acrescentou, de forma aleatória, pinceladas de atualidade, apenas
para que tal conste, mas a uma poesia que, toda ela porejando
modernidade, se encontra embutida de um formalismo que o poeta
adotou visando duas finalidades complementares: uma maior apreensão
do poema pelo seu leitor, logo, uma veemente recusa da passividade
deste, e a conquista de uma harmonia e de uma musicalidade que
pareciam já perdidas na poesia contemporânea; ousamos, por
conseguinte, dizer que através destes procedimentos estilísticos o
autor nos presenteou com uma escrita, que, vincadamente moderna,
quando lida nos faz lembrar as pequenas
grandes pérolas da poesia trovadoresca galaico-portuguesa e da do
Cancioneiro de Garcia de Resende. Esta exemplar tríade modernidade/
formalismo/harmonia consegue-a Cláudio Neves através de
procedimentos como: anáforas (“alheia ao fato de ser sensata,/
alheia às folhas que ela arrebata,/ alheia às coisas”, poema 2);
subversão do esquema rimático tradicional (cf.
as duas
primeiras quadras do soneto, 1); estruturas estróficas de tipo
anafórico às quais adiciona rimas cruzadas (poema 4); versificação
de carácter assonante; extensas metáforas correntes que se espraiam
ao longo dos poemas (cf. poema 19, I e II e poema 25, I, II, II e
IV); jogos de palavras (por exemplo, seremos/ sermos, poema 11),
muitas
vezes articulados com anáforas (poema 19,
II); aspectos de continuidade poemática conseguidos através de
repetições simples e/ou de anadiploses (poemas 2 e 3), etc. O
excelente domínio do português bem como da tradição poética
luso-brasileira chega ao ponto de levar Cláudio Neves a trazer para
o campo da modernidade processos formais há muito postos de lado: o
dobre (“saudade sem objeto,/ objetos sem ruído,/ tempo sem
corrosão,” poema 14); mordobre (poema 11); mote ou tema (poema 5).
Porém, e aqui mais uma originalidade desta poesia, o poeta muitas
vezes não segue fielmente esses esquemas versificatórios: acena-nos
com eles, aqui e ali nos mostra que os domina, mas logo os subverte,
não para encenar um qualquer artifício gratuito e desinspirado bem
ao gosto de certas escritas que começam a vislumbrar o início da sua
queda, mas para que o intento de apropriação do real se intensifique
e assim se consiga uma maior autenticidade, ao mesmo tempo que,
nesta sua arte heterodoxa de desvelamento / ocultação, se implique o
leitor de poesia com o sentido do que é mostrado e com a harmonia de
um dizer que compromete esse mesmo leitor na dinâmica do fazer
poético.
Lisboa, 17
de abril de 2009.
[Prefácio “Os acasos persistentes”]
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de Oliveira Mateus |