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Cláudio Soares

 

souza.soares@gmail.com

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Uma notícia do poeta, suas páginas pessoais: 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

Ana Cristina Souto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

The Gates of Dawn, Herbert Draper, UK, 1863-1920

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

Cláudio Soares

 

 


Om

"The goal, which all Vedas declare, which all austerities aim at,
and which humans desire when they live a life of continence,
I will tell you briefly it is Aum" - Katha Upanishad

 

MATA TODO DESEJO DE VIVER. EXTIRPA A SENSAÇÃO. Repeti em silêncio, de olhos fechados, concentrado. Logo em seguida, ouvi o som formado pelo ditongo das vogais a e u, nasalizado pela letra m (por isso, certas vezes, é comum "a palavra" aparecer grafada "aum") preenchendo o ambiente. Percebi, então, o livro caído no chão. Definitivamente, isso só pode ser um sinal, foi o pensamento que me veio (não havia tempo para que eu duvidasse) e, em um caudaloso fluxo de pensamentos, outro e mais outro, Começar um conto? Sim, eu sabia a resposta: Mas, isso é algo impossível...

Sabe-se lá de onde e com que intenção, veio a sensação de que se começava o conto, junto com a sua propria impossibilidade, já que (ora isso todos nós sabemos), contos não podem ser começados, visto que se encontram em todas as partes! Refutei em mim mesmo o sentido de separação e contradição: Mata todo desejo de viver... Mata todo desejo de contar...

Não existem verdades irrefutáveis, quero dizer, talvez apenas uma, aquela que considero a única das verdades irrefutáveis (pelo menos, até o momento, não consegui refutá-la, mas sigo tentando) é a de que contos não são começados, por que contos são infinitos, por que escritores não escrevem contos, são escritos por eles, é como algo escrito pelo que em si se escreve, ou seja, algo que me parece existir, apenas, no domínio da impossibilidade. Entretanto, estava estabelecido, "Om" seria um conto diferente dos outros. "Om" estava fadado a ser um conto recursivo.

O conto, em si, já existia há muito tempo, antes mesmo de aparecer em folhas de revistas ou em telas de computadores, e só aparece aqui (e lá), por um engano de individualidade. Isto sou eu, escuta o escritor, do lado de lá da página escrita, no momento em que (pensa) colocar o ponto final no conto. Pelo visto, os contos também tendem a ser inconscientes de sua infinitude e individualidade (o que talvez seja a maior de todas as grandes heresias) que são alcançadas, apenas, quando são abandonadas (resignadamente) para nunca mais.

Depois de uma exalação profunda, mantendo o ritmo regular, seguida de uma inspiração prolongada, sem trêmulo na voz, repeti o mantra. O absoluto não é uma questão da nota musical emitida, assim como o conto (per se) não se importa com que palavras é reconstituído. Quem se importa, sempre, são os outros.

Não consegui tirar os olhos do livro que, no chão, parecia querer servir de portal entre o ilusório, o representável e a realidade. Vejam só como nesse momento as letras parecem escorrer de suas folhas, lentamente, escorrem pelo chão, escorrem para debaixo de meus sapatos, eu observo, calado, espantado, as letras são como formigas, isso, elas não escorrem, formam, organizadamente (em seu contexto), umas linhas distorcidas, incertas de riscos (são formigas-links) que do livro desaparecem por debaixo de meus sapatos. Assustado, levanto o pé esquerdo. Um senhor que, nesse momento, passa ao meu lado (essa sincronicidade, deve ser um sinal, só pode ser um sinal) me pergunta se está tudo bem, o que basta para me desconcentrar, e logo, as formigas-letras já não estão mais lá. Como isso é possível? Elas se recolhem? Ou o caminho é que foi recolhido? Provavelmente, retornaram para dentro do livro (que parece ser feito de vento), de onde jamais deveriam ter saído, essas formigas-caminho, cujas mentes invado, caminho, percorro, e percebo o que delas se cria, esses mundos fantasticamente "formigantes", ao mesmo tempo tão pertos e distantes (como a visão que temos dessas formigas). Então, nesse instante fantástico, eu mesmo me transformo em formiga.

Pisco os olhos, nervosamente. Voltei a ser eu mesmo (o que somos?). Não paro de piscar os olhos. Desvio minha atenção do livro e respondo (por educação, mas visivelmente nervoso) ao senhor que me observa desconfiado (e até um pouco constrangido), Está tudo bem, tudo bem, bem, está tudo, bem, está... Ele se afasta (ainda desconfiado e até um pouco amedrontado), olho para os lados, tento me assegurar de que ninguém esteja por perto, me abaixo, levanto com cuidado o pequeno livro azul, tento olhar por baixo do livro, percebo (aliviado) que suas letras não escorrem mais para fora de seu universo particular e literário (meus olhos ainda não conseguiram se tornar cegos de ilusão). Depois, o que leio do seu título, é um rótulo que me recorda um texto do teatro de Racine.

Mas, de repente, as letras começam a escorrer novamente, como malditas formigas, malditas, malditas, mil vezes malditas formigas!, em fila "indiana", escorrem para fora do mundo literário e invisível a que pertencem, invadem o nosso mundo concreto, mensurável e supersticioso, se embaralham e formam a seguinte frase: "Desiste de sua vida, se queres viver". Essas formigas parecem mesmo não ter limites. Agora, elas se auto-rearranjam na capa do livro (que agora parece estar em todas as partes, preenchendo todas as prateleiras), como anagramas dinâmicos, distribuídos, querem provar que são apenas possibilidades, como todo o resto, querem mostrar que já existiam antes de serem arranjadas e rearranjadas, como figuras-problemas, como fortuitos anátemas, como formigas-assim-assado, para todo o sempre, mesmo depois da dissolução, da desintegração dessas páginas escorregadias de tão líquidas, e continuam sua abiogênese, uma geração espontânea de formigas, formagis, fromagis, forgasim, farigsom, fagorims, fagrimso, farigoms, firmagos, firmasgo, fisgamor, fiarsmog, friasmog, frogamis, rasgosim, rasgofim, rifasmog, afrigsom, afogrims, afrogism, afrogmis, afrogsmi, afogsrim, afirmsgo, afirsmog, goframis, grafosmi, gofrasmi, garfosim, grafomis, grafismo, mofagris, morfagis, masgrifo, sografim, ad infinitum...

Pisquei os olhos, novamente, e o livro estava fechado. Conjeturo se não seria um livro controlado automaticamente pelo movimento dos olhos, duções, versões, vergências, que abrem o livro, escaneam suas páginas, hipnotizam e aspiram (inspiram e expiram) o seu conteúdo. Mas, dessa vez, existem três lápis formando um triângulo equilátero no chão ao lado do livro (a realidade começava a ser alterada). Na base do primeiro lápis estava escrito, em letras minúsculas, a palavra Ignorância. No segundo, Aprendizado e no último, Sabedoria. Repeti, como uma prece, de olhos fechados, o "Om" e logo, em meu pensamento, escutei a voz do silêncio que me avisava, Prepara-te pois terás que escrever sozinho a história...

Pisquei os olhos, novamente, mas uma vez a realidade se alterara, e o livro estava de volta à estante giratória. Se tudo não passara de uma alucinação, imaginei, seria possível do ponto onde estava alcançar o livro-comensal de minhas inspirações (pude identificá-lo pela lombada). Estiquei a mão na tentativa de alcançá-lo. Meus dedos conseguiam apenas resvalá-lo. Quanto mais eu me aproximava, menos conseguia alcançá-lo. As leis da física haviam sido subvertidas. A distância entre nós era infinitamente pequena e impossível de ser transposta. A cena não devia ser das mais coerentes para quem a estivesse contemplando no dissipar das sombras. Tive duvidas, sobre todos o que relatara mentalmente (até aquele instante) aos meus leitores. Chegar à margem. Aprender a afastar o corpo da mente, a gota d'água do oceano. Mas, e o medo? É ele que se espalha silencioso, espalha seus tentáculos e nos arrasta para o fundo. Paciência. Não piscarei meus olhos nunca mais...

Quanto mais avanço, mais armadilhas. Seria possível que não tivesse sido abordado pelo velho e preocupado senhor? Que as letras-formigas do livro impossível não tivessem realmente escorrido para debaixo de meus sapatos? Seria possível que aquele livro que eu pensava ter tocado, após percebê-lo na estante giratória (será que mesmo ela não existe?), e todas as outras coisas percebidas ou não, relatadas ou não, deixassem de existir ou mesmo nunca tenham existido? Seriam frutos da minha imaginação?

Em que coordenada desse espaço n-dimensional posso ser encontrado? Para localizar a posição de um objeto nesse espaço são necessárias 3 medidas (do tempo): aquele que se mede pelo presente, o que se mede pelo passado e o que se mede pelo futuro. Encolhendo a vista, forçando o foco, reconheci, por acaso, a capa de um outro livro sobre o qual lera uma resenha (descuidada) naquela mesma manhã. Folheei suas páginas. Estranhamente me senti forçado a permanecer nas primeiras frases, como se tivesse a necessidade de decorá-las. Logo depois, passada a compulsão, libertado desse estranho e obsessivo conceito de eterno retorno, avancei desesperado para o seu final. O livro já não era o mesmo. Havia se transformado. Isso ocorre muitas vezes com um livro. O livro que começamos a ler dificilmente é o mesmo que terminamos. Apesar de entender que as coisas são assim por que devem ser, li as suas últimas frases e, mais tranquilo, o fechei, o colocando novamente na estante. Sim, ainda havia uma esperança.

A aranha alcança a liberdade do espaço por meio de seu fio (Qual a sua localização no plano? Qual o nível suportável de seu medo de que o fio se rompa?), assim também o homem em contemplação alcança a liberdade por meio do "Om" e coloca a morte em seu devido lugar. O fim é imortalidade, união e paz.

Quanto mais metafórico um texto, talvez, mais próximo do real ele esteja. Repeti o mantra. A palavra jamais será o objeto que tenta representar (a palavra se contenta em ser uma representação de ruídos e sons), a não ser que se transforme em metáfora (essa sim, anseia ser o objeto). Quantas metáforas desse conto foram esquecidas? Sinceramente, não sei. Mas, isso não importa, por que se notarmos bem, ele se reinventa, a todo momento.

Assim, eu repeti o "Om" e reconstitui o conto. Enquanto eu ansiava a liberdade de um caminho que escorresse para debaixo de meus sapatos, como os livros, como as formigas-fragmentos, o mundo inteiro chorou, e então, as formigas-mantras, as formigas-absolutas, elas vieram de todos os lugares, preenchendo o ambiente de uma vibração transcedental, caminharam em direção ao texto e nele se transformaram, guiadas, entoadas por minha própria conquista meditativa em "Om".


 

(*) Cláudio Soares é autor do romance “Santos-Dumont Número 8”. Venceu um importante concurso literário em 2004, o que possibilitou a publicação dos seus textos pela UNESCO, na coletânea trilíngüe “Escrevendo a paz / Writing peace / En écrivant la paix”. Escreve no blog “A Última Biblioteca” (http://aultimabiblioteca.blogspot.com) que traz discussões e notícias sobre Literatura. Além de escritor, Cláudio é analista de sistemas e desenvolve projetos para a Internet no Brasil, França e Estados Unidos.

 

 

 

 

 

 

1.6.2007