Cláudio Soares
Om
"The goal, which
all Vedas declare, which all austerities aim at,
and which humans desire when they live a life of continence,
I will tell you briefly it is Aum" - Katha Upanishad
MATA
TODO DESEJO DE VIVER. EXTIRPA A SENSAÇÃO.
Repeti em silêncio, de
olhos fechados, concentrado.
Logo em
seguida, ouvi o som formado pelo ditongo das vogais a e u, nasalizado
pela letra m (por isso, certas vezes, é comum "a palavra" aparecer
grafada "aum") preenchendo o ambiente. Percebi, então, o livro caído no
chão. Definitivamente, isso só pode ser um sinal, foi o
pensamento que me veio (não havia tempo para que eu duvidasse) e, em um
caudaloso fluxo de pensamentos, outro e mais outro, Começar um conto?
Sim, eu sabia a resposta: Mas, isso é algo
impossível...
Sabe-se lá de
onde e com que intenção, veio a sensação de que se começava o conto,
junto com a sua propria impossibilidade, já que (ora isso todos nós
sabemos), contos não podem ser
começados, visto que se encontram em todas as partes!
Refutei em mim mesmo o
sentido de separação e contradição: Mata todo desejo de viver... Mata
todo desejo de contar...
Não existem verdades irrefutáveis, quero dizer, talvez
apenas uma, aquela que considero a única das verdades irrefutáveis (pelo
menos, até o momento, não consegui refutá-la, mas sigo tentando) é a de
que contos não são começados, por que contos são infinitos, por que
escritores não escrevem contos, são escritos por eles, é como algo
escrito pelo que em si se escreve, ou seja, algo que me parece existir,
apenas, no domínio da impossibilidade. Entretanto, estava estabelecido,
"Om" seria um conto diferente dos outros. "Om" estava fadado a ser um
conto recursivo.
O conto, em si, já existia há muito tempo, antes mesmo de
aparecer em folhas de revistas ou em telas de computadores, e só aparece
aqui (e lá), por um engano de individualidade. Isto sou eu,
escuta o escritor, do lado de lá da página escrita, no momento em que (pensa)
colocar o ponto final no conto. Pelo visto, os contos também tendem a
ser inconscientes de sua infinitude e individualidade (o que talvez seja
a maior de todas as grandes heresias) que são alcançadas, apenas, quando
são abandonadas (resignadamente) para nunca mais.
Depois de uma
exalação profunda, mantendo o ritmo regular, seguida de uma inspiração
prolongada, sem trêmulo na voz, repeti o mantra. O absoluto não é uma
questão da nota musical emitida, assim como o conto (per
se) não
se importa com que palavras é reconstituído. Quem se importa, sempre,
são os outros.
Não consegui
tirar os olhos do livro que, no chão, parecia querer servir de portal
entre o ilusório, o representável e a realidade. Vejam só como nesse
momento as letras parecem escorrer de suas folhas, lentamente, escorrem
pelo chão, escorrem para debaixo de meus sapatos, eu observo, calado,
espantado, as letras são como formigas, isso, elas não escorrem, formam,
organizadamente (em seu contexto), umas linhas distorcidas, incertas de
riscos (são formigas-links) que do livro desaparecem por debaixo de meus
sapatos. Assustado, levanto o pé esquerdo. Um senhor que, nesse momento,
passa ao meu lado (essa sincronicidade, deve ser um sinal, só pode ser
um sinal) me pergunta se está tudo bem, o que basta para me
desconcentrar, e logo, as formigas-letras já não estão mais lá.
Como isso é possível? Elas se recolhem?
Ou o caminho é que foi recolhido?
Provavelmente, retornaram
para dentro do livro (que parece ser feito de vento), de onde jamais
deveriam ter saído, essas formigas-caminho, cujas mentes invado, caminho,
percorro, e percebo o que delas se cria, esses mundos fantasticamente "formigantes",
ao mesmo tempo tão pertos e distantes (como a visão que temos dessas
formigas). Então, nesse instante fantástico, eu mesmo me transformo em
formiga.
Pisco os olhos, nervosamente. Voltei a ser eu mesmo (o
que somos?). Não paro de piscar os olhos. Desvio minha atenção do
livro e respondo (por educação, mas visivelmente nervoso) ao senhor que
me observa desconfiado (e até um pouco constrangido), Está tudo bem,
tudo bem, bem, está tudo, bem, está... Ele se afasta (ainda
desconfiado e até um pouco amedrontado), olho para os lados, tento me
assegurar de que ninguém esteja por perto, me abaixo, levanto com
cuidado o pequeno livro azul, tento olhar por baixo do livro, percebo (aliviado)
que suas letras não escorrem mais para fora de seu universo particular e
literário (meus olhos ainda não conseguiram se tornar cegos de ilusão).
Depois, o que leio do seu título, é um rótulo que me recorda um texto do
teatro de Racine.
Mas, de repente, as letras começam a escorrer novamente,
como malditas formigas, malditas, malditas, mil vezes malditas
formigas!, em fila "indiana", escorrem para fora do mundo literário
e invisível a que pertencem, invadem o nosso mundo concreto, mensurável
e supersticioso, se embaralham e formam a seguinte frase: "Desiste de
sua vida, se queres viver". Essas formigas parecem mesmo não ter
limites. Agora, elas se auto-rearranjam na capa do livro (que agora
parece estar em todas as partes, preenchendo todas as prateleiras), como
anagramas dinâmicos, distribuídos, querem provar que são apenas
possibilidades, como todo o resto, querem mostrar que já existiam antes
de serem arranjadas e rearranjadas, como figuras-problemas, como
fortuitos anátemas, como formigas-assim-assado, para todo o sempre,
mesmo depois da dissolução, da desintegração dessas páginas
escorregadias de tão líquidas, e continuam sua abiogênese, uma geração
espontânea de formigas, formagis, fromagis, forgasim, farigsom, fagorims,
fagrimso, farigoms, firmagos, firmasgo, fisgamor, fiarsmog, friasmog,
frogamis, rasgosim, rasgofim, rifasmog, afrigsom, afogrims, afrogism,
afrogmis, afrogsmi, afogsrim, afirmsgo, afirsmog, goframis, grafosmi,
gofrasmi, garfosim, grafomis, grafismo, mofagris, morfagis, masgrifo,
sografim, ad infinitum...
Pisquei os olhos, novamente, e o livro estava fechado.
Conjeturo se não seria um livro controlado automaticamente pelo
movimento dos olhos, duções, versões, vergências, que abrem o livro,
escaneam suas páginas, hipnotizam e aspiram (inspiram e expiram) o seu
conteúdo. Mas, dessa vez, existem três lápis formando um triângulo
equilátero no chão ao lado do livro (a realidade começava a ser alterada).
Na base do primeiro lápis estava escrito, em letras minúsculas, a
palavra Ignorância. No segundo, Aprendizado e no último,
Sabedoria. Repeti, como uma prece, de olhos fechados, o "Om" e
logo, em meu pensamento, escutei a voz do silêncio que me avisava,
Prepara-te pois terás que escrever sozinho a história...
Pisquei os olhos, novamente, mas uma vez a realidade se
alterara, e o livro estava de volta à estante giratória. Se tudo não
passara de uma alucinação, imaginei, seria possível do ponto onde estava
alcançar o livro-comensal de minhas inspirações (pude identificá-lo pela
lombada). Estiquei a mão na tentativa de alcançá-lo. Meus dedos
conseguiam apenas resvalá-lo. Quanto mais eu me aproximava, menos
conseguia alcançá-lo. As leis da física haviam sido subvertidas. A
distância entre nós era infinitamente pequena e impossível de ser
transposta. A cena não devia ser das mais coerentes para quem a
estivesse contemplando no dissipar das sombras. Tive duvidas, sobre
todos o que relatara mentalmente (até aquele instante) aos meus leitores.
Chegar à margem. Aprender a afastar o corpo da mente, a gota d'água
do oceano. Mas, e o medo? É ele que se espalha silencioso, espalha
seus tentáculos e nos arrasta para o fundo. Paciência. Não piscarei meus
olhos nunca mais...
Quanto mais avanço, mais armadilhas. Seria possível que
não tivesse sido abordado pelo velho e preocupado senhor? Que as
letras-formigas do livro impossível não tivessem realmente escorrido
para debaixo de meus sapatos? Seria possível que aquele livro que eu
pensava ter tocado, após percebê-lo na estante giratória (será que mesmo
ela não existe?), e todas as outras coisas percebidas ou não, relatadas
ou não, deixassem de existir ou mesmo nunca tenham existido? Seriam
frutos da minha imaginação?
Em que coordenada desse espaço n-dimensional posso ser
encontrado? Para localizar a posição de um objeto nesse espaço são
necessárias 3 medidas (do tempo): aquele que se mede pelo presente, o
que se mede pelo passado e o que se mede pelo futuro. Encolhendo a
vista, forçando o foco, reconheci, por acaso, a capa de um outro livro
sobre o qual lera uma resenha (descuidada) naquela mesma manhã. Folheei
suas páginas. Estranhamente me senti forçado a permanecer nas primeiras
frases, como se tivesse a necessidade de decorá-las. Logo depois,
passada a compulsão, libertado desse estranho e obsessivo conceito de
eterno retorno, avancei desesperado para o seu final. O livro já não era
o mesmo. Havia se transformado. Isso ocorre muitas vezes com um livro. O
livro que começamos a ler dificilmente é o mesmo que terminamos. Apesar
de entender que as coisas são assim por que devem ser, li as suas
últimas frases e, mais tranquilo, o fechei, o colocando novamente na
estante. Sim, ainda havia uma esperança.
A aranha alcança a liberdade do espaço por meio de seu
fio (Qual a sua localização no plano? Qual o nível suportável de seu
medo de que o fio se rompa?), assim também o homem em contemplação
alcança a liberdade por meio do "Om" e coloca a morte em seu devido
lugar. O fim é imortalidade, união e paz.
Quanto mais metafórico um texto, talvez, mais próximo do
real ele esteja. Repeti o mantra. A palavra jamais será o objeto que
tenta representar (a palavra se contenta em ser uma representação de
ruídos e sons), a não ser que se transforme em metáfora (essa sim,
anseia ser o objeto). Quantas metáforas desse conto foram esquecidas?
Sinceramente, não sei. Mas, isso não importa, por que se notarmos bem,
ele se reinventa, a todo momento.
Assim, eu repeti o "Om" e reconstitui o conto. Enquanto
eu ansiava a liberdade de um caminho que escorresse para debaixo de meus
sapatos, como os livros, como as formigas-fragmentos, o mundo inteiro
chorou, e então, as formigas-mantras, as formigas-absolutas, elas vieram
de todos os lugares, preenchendo o ambiente de uma vibração
transcedental, caminharam em direção ao texto e nele se transformaram,
guiadas, entoadas por minha própria conquista meditativa em "Om".
(*) Cláudio Soares é autor do
romance “Santos-Dumont Número 8”. Venceu um importante concurso
literário em 2004, o que possibilitou a publicação dos seus textos pela
UNESCO, na coletânea trilíngüe “Escrevendo a paz / Writing peace / En
écrivant la paix”. Escreve no blog “A Última Biblioteca” (http://aultimabiblioteca.blogspot.com)
que traz discussões e notícias sobre Literatura. Além de escritor,
Cláudio é analista de sistemas e desenvolve projetos para a Internet no
Brasil, França e Estados Unidos.
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