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Camilo Mota


 

Poema para abraçar o amigo


                                                  ao Sylvio Adalberto


Digerir o sol a cada manhã.
Repousar os olhos e viver
a sombra que aquece.


Saber que o silêncio silencia
mesmo que o maior ruído seja
o do coração lembrando a infância.


Curtir o canto sertanejo,
a viola caipira, o peixe no anzol,
as árvores que escurecem com a noite.


Pensar nos amigos que foram
: o regresso ficou para até quando.


O verso fere o conforto dos alienados.
Eu te abraço infantil
como o sopro no dente-de-leão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Tributos, o lado profissional de Soares Feitosa

Camilo Mota


 

Valparaíso


Meu bairro tem becos aonde nunca fui: escadas e portais para o velho mundo. Contornos de tardes alemãs, cheiros portugueses, alianças de Minas e o mistério de seus habitantes se inserem nos sentidos. Tão velhas pedras!... Tintas descascam janelas cansadas onde a luz morna das lâmpadas abriga casais e sonhos. É Petrópolis ou Lisboa, São João ou Bonn? A cidade tem idiomas que nunca aprenderei, e viagens — leve balançar em trilhos de trem, leve lembrança de fuga para o imaginário, e o caderno em que desenhei países cujas fronteiras inventavam geografias da cor. O morro próximo à escola se insinua: casebres, tijolos, lama, cachorros, e um pedacinho de verde nas encostas. O avião de papel, lançado inocente pela janela, custou-nos um curto castigo. Pensei que os pássaros fossem mais felizes em seu destino. Quando fiz primeira comunhão, ganhei terço, vela e outra razão de ser. Compreendi o corpo como canto órfico de luz e asas. Só então fui sozinho à padaria e trouxe dez pães e um litro de leite. Minha mãe me confortava e ria de minha ingenuidade: ela sabe que sobrevôo nuvens e que as palavras estão por nascer.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal do Conto

Camilo Mota


 

Alegorias de roda


Olhos infantis
na roda gigante fitos
nada investigam:
quiçá uma vertigem sentem.


que mais sentiriam
se a orquestra em peso
derramasse giros coloridos
sobre a cidade em chamas?


o uivo da ex-secretária
desprende-se alado
sobre túmulos concêntricos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

Camilo Mota


 

Luar de Saquarema


                                                 ao amigo Gerson Valle


A lua tem júbilos de quem a retém
sem a morte pensar.
Breve companheira do céu, onde foram os namorados?
         — Para a noite longa passear,
         fazer carícias,
         esconder os prantos.
Lua entre ondas de branco desenhada em vago mar,
corre notícia de pescadores assombrados,
de noites sem afago, de prantos sem namorados.
         — Noite dessas vou armar rede
         à espera de todos os barcos
         que sumiram em vagas brancas de meu luar.
Corre, lua, corre, para dizer do outro lado do mundo
que o dia nasceu do lado de cá.
Volta, lua, volta, que eu também quero namorar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Camilo Mota


 

Por trás da palavra há o caos


o caos antecede o tempo
o tempo antevê o homem
o homem antepara o caos


o caos antecede o tempo antevê
o homem antepara o caos


o caos
antepara o homem
antevê o tempo
antecede o caos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

Camilo Mota


 

Mantra


torno-me puro
meu puro encontro
o corpo se limpa
a mente se areja


palavras tão simples
em becos escusos
alertam da vida
a luz e o amor


não se perde nas veias
o sagrado fluído...


em horas banidas
corredores e ruas
resgatam o tempo
a infinitude de ser


ao torno de mim
o puro retorna
ao simples afável
de cada manhã


a cada calenda
torna-se puro
sentido da vida
o verso do ser

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

Camilo Mota


 

Alice


As palavras fundiram-se à montanha
sem nada dizerem
...
tempo consumido memória
...
grita o coração: te amo,
incógnita mulher!
metamorfose de cidade
e nuvem,
istmo do beijo anônimo
inaugurando rugas


Na tarde dourada e rósea
vovó virou neblina

 

 

 

 

 

 

 

13.07.2005