OFÍCIO PROFANO
[In O Pensador do Jardim dos Ossos]
I.
Cabe ao poeta repartir
o poema
entre o prato
e o coração do homem.
Cabe a ele fabricar
o poema-libertário do povo (uma multidão)
com as palavras-operárias da língua.
Assim como lhe cabe,
de mesma feita,
negar a mísera exuberância
dos intelectuais eunucos,
das academias,
dos estetas unissexuados.
Deve o poeta,
na imundície erótica das oficinas,
soldar,
palavra a palavra,
o poema,
em espasmos
espermas
vaginas
virilhas
vigílias.
Sua escrita
será seu pão e sua bomba,
será flores num inverno glacial,
e feto
(esse excreto-educador)
nos laboratórios de inseminação.
Será captada
nos textos do Nobel luso
como um peixe agitando-se,
e que de súbito
se escapa gritando;*
escorrerá pelas costas dos carvoeiros –
há de ser tisna sob suas unhas.
O seu povo (uma multidão)
terá a cor que ele quiser,
os deuses que ele quiser.
Mas será livre esse povo (essa multidão)?
terá idosos?
morrerá de câncer
ou de desgosto?
haverá bomba?
(atômica ou biológica?)
terá lógica essa bomba?
Será uma economia estável?
um Estado independente?
produzirá tanques
esse povo (uma – muitas multidões!)?
cultivará rosas?
de que cor?
de que metal?
Haverá macacos?
cachorros? gatos?
comunistas?
capitalistas?
ambivalentes?
quem povoará o domingo
de crianças e parques?
de crentes e dejetos?
É senão ao poeta que cabe
eviscerar a língua,
alimentá-la de todas as fomes,
depravá-la,
despudoradamente possuí-la,
tingi-la,
perfumá-la lírica,
enobrecê-la,
fodê-la,
e se lhe aprouver,
amassá-la,
jogá-la no cesto de lixo
junto com o jornal de ontem
e o preservativo da noite passada.
II.
E o poeta é este homem que somos,
a dor e o gozo,
a substância e a matéria que somos,
mais
nada.
Ir pela vida a usar de palavras
é que vamos;
outros há a irem no uso do que têm.
(*) JOSÉ
SARAMAGO in
O Evangelho segundo Jesus Cristo)
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