Que Falta Ele Faz! É esse o significativo
subtítulo do livro de Elizabeth Lorenzotti sobre
o Suplemento Literário do Estado de S. Paulo,
marco do jornalismo literário brasileiro que
circulou de 6 de outubro de 1956 a 17 de
dezembro de 1966, deixando um legado de textos
até hoje atuais e saudades em leitores e
colaboradores. O estudo de Elizabeth, porém, não
se quer saudosista ou nostálgico. A pesquisadora
entende que a compreensão daquele que foi um
modelo de excelência no passado pode servir de
inspiração para o presente, mesmo que seja neste
mundo veloz de hoje.
Idealizado por Antonio Candido e dirigido por
Décio de Almeida Prado, o Suplemento Literário
mantinha em seu quadro de colaboradores fixos
nomes como Wilson Martins, Paulo Emilio Salles
Gomes, Ruy Coelho e Lívio Xavier, autores que se
tornaram paradigmas em suas áreas de atuação
específicas - a crítica literária, a
cinematográfica, a antropologia, etc. Um dos
segredos do SL foi fazer de suas páginas ponto
de encontro dos maiores talentos de uma geração.
Suplemento Literário - Que Falta Ele Faz!
(Imprensa Oficial, 208 págs., R$ 40) traz um
histórico da publicação e das condições sociais
e culturais na época da sua aparição. Inclui
entrevista inédita com Antonio Candido e uma
cópia do projeto inicial do suplemento
apresentado a Julio de Mesquita Neto, então
diretor do jornal. E, sim, a cereja no bolo - um
conto do então candidato a escritor Francisco
Buarque de Holanda. O autor de Estorvo, na época
já famoso como cantor e compositor de A Banda,
era um neófito como ficcionista. Estreou no
Suplemento Literário, com um conto chamado
Ulisses, na edição de 30 de julho de 1966.
Abaixo, trechos da entrevista com Elizabeth
Lorenzotti, que lança o livro na quarta-feira, a
partir das 17h30 , no hall do Auditório Simon
Bolívar, no Memorial da América Latina.
A sra. lembra que uma das
características principais do Suplemento
Literário era sua autodefinição como "suplemento
artístico e não jornalístico". O que significava
isso?
Já existia no jornal uma seção, Letras e Artes,
dedicada basicamente ao noticiário jornalístico.
O Suplemento, desde o projeto de Antonio Candido
identificado como Suplemento Literário e
Artístico d?O Estado de S. Paulo, pretendia ser
uma pequena revista semanal de cultura. Mas já
no plano inicial, Candido frisava que se devia
evitar dois extremos, "o tom excessivamente
jornalístico e o tom excessivamente erudito". O
primeiro, porque não pesaria na opinião, não
contribuiria para criar hábitos intelectuais,
não colocaria o leitor em contato com o
pensamento literário; o segundo, porque seria de
leitura penosa. Considerava que quase não havia
revistas literárias no Brasil, e os suplementos
de jornais funcionavam como sucedâneos delas. O
texto de apresentação do primeiro número
frisava: "O Suplemento não será jornalístico,
nem no alto nem no baixo sentido do termo." E
continuava Décio de Almeida Prado: "O jornal,
por definição, por decorrência, poder-se-ia
dizer, da própria etimologia da palavra, vive
dos assuntos do dia (...) A perspectiva do
Suplemento tinha, pois, de ser outra, mais
desapegada da atualidade, mais próxima da
revista que, visando sobretudo a permanência,
pode dar-se ao luxo de considerar mais vital a
crônica dos amores de um rapaz de 18 e uma
menina de 15 anos na Verona pré-renascentista,
do que qualquer fato de última hora, pelo motivo
de que as crises, as guerras, até os impérios,
passam com bem maior rapidez que os mitos
literários, muitos dos quais vêm acompanhando e
nutrindo a civilização ocidental há pelo menos
30 séculos." Essa concepção não é de fácil
assimilação para nós hoje, o que já acontecia na
época, aliás. O próprio Décio, em entrevista de
1997, afirmava que existiam reclamações ,
"dizia-se que não era jornalístico, que falava
de coisas que não interessavam ao leitor comum".
Mas na verdade interessaram muito a quem estava
de alguma forma ligado às letras, às artes
plásticas, à música, ao cinema, ao teatro, à
dança. Encontrei e encontro pessoas que mantêm
coleções do Suplemento em casa, que estudaram
nele e o utilizaram para dar aulas.
Qual acha que foi o papel
do Suplemento Literário na efervescência da vida
cultural da época? Ele a influenciou ou foi
apenas reflexo de uma época também bastante
rica? Qual o papel do SL ao lado de outros
suplementos, como o do Jornal do Brasil, por
exemplo?
Creio que o Suplemento Literário foi uma via de
duas mãos: influenciou e refletiu essa época
rica de desenvolvimento em todos os setores da
vida do País. Com seu projeto (equilibrado, como
diz Antonio Candido, entre a tradição e a
inovação) refletindo a discrição e a sobriedade
de seus idealizadores, conseguiu dar uma idéia
do panorama nos Estados, sem descuidar-se do
foco internacional. Aliás, acompanhar o que
acontecia nas artes e nas letras do exterior foi
uma das grandes contribuições do Suplemento,
numa época em que a tecnologia das comunicações
ainda engatinhava. O Suplemento Dominical do
Jornal do Brasil teve igual importância.
Entretanto, era uma publicação de combate, de
movimentos. O SL realizou uma fórmula paulista,
com um tom universitário. Como diz Antonio
Candido, acolheu a vanguarda, mas esteve sempre
ligado a uma espécie de linha média das
concepções literárias.
Em que medida seria
possível pensar a vida cultural de São Paulo
tomando como ponto de partida e de referência a
criação e o desenvolvimento do projeto do SL?
A São Paulo de fins dos anos 50 era uma cidade
que ainda não se descentralizara. Até a segunda
metade dos anos 1960, no grande quadrilátero
formado pelas avenidas Angélica, Brigadeiro Luiz
Antônio, Paulista e São João, concentravam-se
não apenas comércio e serviços, como sobretudo
os principais equipamentos culturais da cidade:
universidades, bibliotecas, teatros, cinemas,
livrarias, redações e sucursais de jornais, etc.
Intelectuais, artistas, jornalistas
encontravam-se no barzinho do MAM, na Rua Sete
de Abril, instalado no mesmo endereço do Masp,
fundado um pouco antes, em 1947, por Assis
Chateaubriand e Pietro Maria Bardi. Desde a
década de 50, a redação do Estadão ficava na Rua
Major Quedinho; na Alameda Barão de Limeira, o
grupo Folha; na Rua João Adolfo, a Editora
Abril; mais tarde, na Avenida São Luís, as
sucursais de O Globo e Jornal do Brasil. Ainda
no centro velho, as agências internacionais; na
Nestor Pestana, o auditório da TV Excelsior. E,
claro, as livrarias, nas imediações da
Biblioteca Mário de Andrade. Subindo um pouco a
Consolação, a Filosofia da USP, na Rua Maria
Antônia. Esse ambiente cultural - que vinha da
Semana de Arte Moderna de 1922, dos anos 30, com
a criação do Departamento de Cultura; do TBC, da
Vera Cruz, nos anos 40, da revista Clima - do
mesmo grupo de estudantes da USP que se
tornariam os colaboradores do SL; dos museus,
das bienais - alcançou a década de 60 ampliado,
transformado, evoluído, assim como a cidade que
crescia, não era mais uma província. A redação
do SL era um centro animado de discussões. E o
Suplemento, um veículo transmissor de idéias, um
intermediário, um mediador cultural que teve seu
importante papel na reflexão e na difusão da
crítica cultural da cidade e do País.
Se o livro se preocupa em
mostrar que o Suplemento Literário é fruto de
uma época, de um momento específico, será que
cabe a nostalgia que perpassa o texto, desde o
título (Que Falta Ele Faz!), e a tentativa de
julgar os cadernos culturais atuais tendo o SL
como referência?
O título foi sugerido pelo artista Tide
Hellmeister, que fez a capa do livro, ele mesmo
um ex-colaborador do Suplemento. Tide traduziu o
sentimento da maioria das pessoas com as quais
falei. Na verdade, esta é uma preocupação minha
com a recepção do livro: pensarem que se trata
de algo nostálgico, um carro com os faróis
voltados para trás, que de nada vale para jogar
luz na nossa acidentada estrada do século 21.
Não! Resgatar a história serve e servirá sempre
para iluminarmos o presente e o futuro. E,
sempre à luz do espírito crítico, clarear,
recuperar experiências boas ou más, peneirar,
transformá-las. Não é verdade que o leitor de
hoje não gosta e/ou não tem tempo de ler textos
mais reflexivos, densos e, portanto, maiores.
Vivemos um tempo em que as pessoas estão ávidas
por saídas, e saída só se encontra pensando e
lendo o que pensa o outro. Arte e cultura não
são separadas da vida, não constituem só uma
indústria. São legados imemoriais. A mídia, que
tanta responsabilidade carrega, tem o dever de
rever sua história e abrir mentes e corações
para novas experiências que ajudem o homem a se
tornar mais humano.
O SL poderia ter-se
adaptado à nova época ou seu fim era inexorável?
Quais seriam as possibilidade, hoje, de um
caderno cultural de mesmo nível, adaptado à
realidade do presente? Ou, mudando o enfoque da
questão: a sra. acha que o SL pode servir como
inspiração para o jornalismo cultural de hoje,
sem que se caia na nostalgia, sempre
paralisante, dos "bons tempos" e de uma época de
ouro que já passou e não volta mais?
O Suplemento cumpriu o seu papel na sua época.
Poderia, sim, ter se adaptado aos novos tempos,
se as mudanças não tivessem se imposto, no
jornalismo, na tecnologia, na economia, na
política, na chamada indústria cultural, no
País, no mundo enfim, de forma tão abrupta. Não
tenho dúvida de que essa experiência pode ser
retomada. Não tenho dúvida de que grupos de
pessoas podem transformar radicalmente as coisas
em qualquer setor da vida humana. E para melhor.
Algo se perderia em moeda? Talvez sim, talvez
não. Mas certamente muito se conquistaria em
reflexão, pensamento crítico, maior compreensão
e contribuição para a cultura que, no fim,
significa maior contribuição ao esclarecimento e
à ampliação de horizontes de leitores que, sim,
agradeceriam. A internet é um veículo que
conquista, cada vez mais, possibilidades para
várias experiências. Setores representativos do
pensamento de várias correntes da sociedade e de
seus múltiplos movimentos culturais também abrem
seus caminhos em publicações próprias, mostrando
aspectos que quase nunca chegam à chamada grande
imprensa. Mais cedo ou mais tarde os jornais
trilharão o caminho, já apontado por
especialistas há algum tempo, da análise, da
opinião, da crítica, enquanto a notícia ficará
por conta de veículos mais ágeis. E que papel
importante esse, o da reflexão e do
reconhecimento da pluralidade. É quando uma
experiência como a do Suplemento Literário
poderá ser resgatada, em papel, que é muito
melhor de se ler, reunindo os novos críticos e
pensadores da literatura, do cinema, do teatro,
das artes e os que já trilharam várias estradas,
para repassarem sua experiência.