Gerardo Mello Mourão,
o poeta absoluto que tinha orgulho de
dizer-se cearense há quatrocentos anos,
não pôde ver o alvor do dia 09 de março
e virou a última página da sua história
lutando pela vida com a
mesma serenidade com que enfrentou
tantas mortes em plena vida.
RUY CÂMARA
Escritor
Sua partida, apesar de esperada,
entristeceu o mundo intelectual e
deixou-nos um vazio que precisa ser
preenchido para que possamos dotar de
sentido o que aparentemente não faz
sentido algum, como por exemplo, a
morte, essa companheira inconfiável que,
num simples bater de pálpebra, vira o
mundo ao avesso e desmantela tudo o que
tomamos por real, insuprimível ou até
mesmo eterno.
Mas quem sabe morrer de vida longeva,
morre silente, no silêncio da pena que
corre suave para inspirar os sábios e os
deuses. Gerardo morreu silente, mas para
a camarilha que se amotinava com o fito
de excluí-lo dos cânones literários,
Gerardo já havia morrido em vida, vítima
das conspirações, das prisões, da inveja
e do silêncio hostil dos núcleos
acadêmicos.
Gerardo não teve lugar na ABL, nem nas
Academias de Letras do Ceará, o que nos
leva a crer que ele, pela sua vida
mesma, pela sua grandeza moral e
intelectual, encarnou a metáfora do
Albatroz ´imensa ave dos mares´ que
Baudelaire sublimou num dos mais belos
poemas escritos em língua francesa:
´suas asas de gigante o impedem de
voar.´
Senhor das línguas conhecidas e
desconhecidas, das línguas antigas e
esdrúxulas, Gerardo foi recebido em
nossa casa quatro vezes ao longo de 13
anos de irmandade, e nos recebeu, a mim
e à Rossana, em seu apartamento-museu,
dezenas de vezes, mas somente em março
de 2006, como que antevendo o destino se
cumprir, fui com o cineasta Wolney
Oliveira à casa do poeta que, apesar do
ombro fraturado, nos acolheu com o
entusiasmo de criança e lá gravamos
durante cinco dias consecutivos, suas
confissões, peripécias e aventuras.
Dona Lea, testemunha e guia dos passos
do marido, nos mostrava com seus olhos
os livros, os objetos, as artes e com o
dedo apontava os labirintos da casa
onde, desde o princípio já se sabia que,
para o poeta a busca da musa era sempre
mais sublime que o encontro. E quantas
horas de sabedoria: ´Eu não persigo a
fama. Eu persigo a glória e escrevo para
chegar diante de Deus com minhas obras,
na esperança de ser acolhido com minhas
idéias´.
Quando fechávamos um bloco fílmico e
fazíamos uma pausa, o poeta incorporava
o filósofo, metia a mão no seu poço de
erudição e ditava: ´O destino de um
escritor não é um labirinto de acasos,
mas um de circunstâncias criadas,
circunstâncias que o levam por caminhos
que se bifurcam, pois é precisamente
numa bifurcação onde nos achamos
perdidos.´
E ao final do dia, quando vinha a
fadiga, Gerardo nos brindava, ora com
tragos de bom vinho, ora com uma poesia
anestésica e paralisante.
Felizmente a memória de Gerardo está
preservada em 10 fitas de 1 h e agora
temos a obrigação de entregar ao Brasil
o documentário de sua vida, cujo título
foi sugerido por ele próprio, inspirado
em suas obras: ´O Valete de Espadas´ ou
´No Rastro de Apolo´.
Diante de tantos depoimentos, documentos
e fatos, é bom e prudente avisar aos
pretensos biógrafos que não é tarefa
fácil biografar um vulto da dimensão do
Gerardo, mestre e preceptor de duas
gerações de poetas e escritores. Não é
tarefa para beletristas, pois sua
história se confunde com a História do
Brasil ao longo do século XX, já que
viveu o século inteiro, bem como atuou
no enredo com a convicção de que não lhe
cabia fazer história, mas sofrer a
História.
Levanto essa questão porque,
recentemente, li numa entrevista do
autor de um livro sobre Gerardo, a
seguinte afirmação: ´Dos membros da
Santa Hermandad de la Orquídea restavam
Gerardo e Abdias Nascimento. Com a morte
de Gerardo, Abdias Nascimento é o único
sobrevivente.´
Ora, a afirmação é infundada (coisa de
quem repete por ouvir dizer), pois Raul
Young (95 anos), o membro mais antigo da
Santa Hermandad, continua vivo e lúcido,
compondo num balneário em Pinamar, na
Argentina. Antes da morte de Gerardo,
Raul Young recebeu a visita do confrade,
Abdias Nascimento (93 anos), a quem
entregou um livro de poesias inédito
para ser lido e prefaciado por quem
escreveu a obra ´O País dos Mourões´.
Mas esse não é o único equívoco cometido
pelos pretensos biógrafos de Gerardo.
Durante as filmagens, o poeta desabafou
e externou a sua indignação dizendo-nos:
nunca foi condenado à morte como
insinuam os sacripantas da história e da
má fé, pois não havia pena de morte no
Brasil à época, nem mesmo no caso do
decreto de 1942, que me condenou à
prisão perpétua. Nunca houve processo
judicial legal contra mim e o processo
do infame Tribunal de Segurança Nacional
nunca teve sequer autos judiciais,
constando apenas de um inquérito do Dops.
Nunca fui condenado por nenhum lei
brasileira, nem por qualquer tribunal
legalmente constituído, e nunca
compareci diante de um juiz para ser
julgado. Nem mesmo o infame Tribunal de
Segurança ousou me acusar de conspirar
contra o Brasil. A acusação de espião
nazista e de haver colaborado para o
afundamento de navios na costa
brasileira, partiu dos meus adversários
na imprensa, de David Nascer, da Revista
O Cruzeiro, de quem me vinguei
exemplarmente obrigando-o comer uma
iguaria bizarra e imunda. Tenho um
imenso e olímpico desdém por uns pobres
bonifrates que me consideram um poeta
importante e que tenho direito a uma
revisão dos ´erros´ do passado. Não
tenho erros políticos a corrigir.
Portanto, não permito que ninguém mude
uma vírgula do meu passado. Minha
história pessoal é um patrimônio de que
muito me orgulho.´
Desde muito se sabe que os navios foram
afundados por submarinos aliados para
forçar o Brasil a entrar na 2ª Guerra,
trocando borracha da Amazônia e vidas de
milhares de nordestinos por uma
siderúrgica no sudeste. O caso em que
Gerardo foi agredido nos mais
elementares direitos humanos, é único em
toda a história do Ocidente, pois não se
conhece outro caso em que alguém tenha
sido condenado por decreto com aplicação
retroativa.
Gerardo, sozinho, foi e é uma rebelião e
pelo legado que nos deixa, em obras
literárias de valor insuprimível, é, sem
dúvida, muito mais do que dele já
dissemos ou ainda estamos por dizer ao
longo do século em curso. E quando
invocamos um mito com tal dimensão, logo
aí vem ele, pisando suave num tênis
macio, com as mãos para trás, olhos
agudos, brilhantes e atentos a tudo,
vestido num terno impecável e
gravata-borboleta, esboçando um sorriso
matreiro antes de contar alguma
peripécia com sua voz de trovão.
Lembro-me que, após uns dias em sua
Ipueiras, Gerardo regressou a Fortaleza
e fomos juntos para um evento na
Assembléia Legislativa. Na tribuna, após
haver falado das misérias que
testemunhara durante sua viagem ao
sertão do Ceará, ele perguntou aos
deputados: alguém poderia dizer para que
serve um poeta num Estado pobre em
Cultura, Educação e Saúde? Após um tempo
de silêncio frustrante, eis que ele afia
as palavras na sua língua de pedra e
diz: ´Neste mundo o que dura é o que foi
fundado pelos poetas e não pelos
especialistas, que são meros figurantes
de uma tarefa ancilar. Não são
protagonistas do saber nem da história.
Nunca um especialista criou algo
duradouro nem embasou uma nação.´
Ao ouvir isso, suspeitei que Gerardo
utilizou o eufemismo ´especialista´ para
não deixar os deputados que o aplaudiam
de saia-justa. E prosseguiu: ´A Grécia
foi fundada pelo poeta, Homero, cego e
gênio. O império romano foi inspirado
pelo poeta, Virgílio e por um escritor
que se fez general, Caio Julio César. O
mundo judaico foi fundado pelos poetas
das profecias, Jeremias, Isaias,
Ezequiel, Daniel e pelos Cantos do rei
Davi. A civilização mulçumana foi
fundada pelo poeta Maomé, seu senhor e
soberano. A China e a Ásia Oriental
foram fundadas pelo poeta Kung-Fu-Tze,
que conhecemos por Confúcio. A Itália
foi fundada por Dante, poeta absoluto.
Churchil, animava suas tropas contra o
fogo de Hitler, enviando aos soldados os
versos de Shakespeare. Os soldados
germânicos levavam na mochila os Cantos
de Rilke e os hinos de Hölderlin. E o
que seria de Portugal sem Camões e
Pessoa? Da França sem Voltaire,
Baudelaire, Lamartine e Hugo? E o Ceará
sem seus poetas, renegados e esquecidos?
E finalizou dizendo: foi o Deus poético
e dialético que engendrou o pensamento
mítico, o tempo divino do homem, mas foi
a verdade helênica que deu vigor à noção
de liberdade e democracia, verdade
luminosíssima que fundou o homem livre.´
Os aplausos não impediram o nosso poeta
de assim dizer: ´É para preencher o
vazio dos espírito humano que serve um
poeta com sua poesia.´