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Herberto Helder

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna crítica: 


Alguma notícia do autor:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A menina afegã, de Steve McCurry

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

Herberto Helder


 

Bio-Bibliografia



Nascido em Funchal, 1930. Poeta e tradutor (mas assumindo-se sobretudo como autor), Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira iniciou a sua formação liceal na ilha da Madeira (Colégio Lisbonense), tendo-a concluído, a partir de 1946, na Escola Luís de Camões, em Lisboa. Já na Universidade de Coimbra, cursa o 1º ano de Direito (1948), tendo frequentado, entre 1949 e 1952, o curso de Filologia Românica na mesma instituição. Inicia a publicação dos seus primeiros poemas nas antologias Arquipélago (1952) e Poemas Bestiais (1954), ambas do Funchal, e no jornal A Briosa (1954, Coimbra). Interrompido o curso universitário, exerce diversas profissões, na Caixa Geral de Depósitos e no Anuário Comercial Português (angariador de publicidade) entre 52 e 54, no Serviço Meteorológico Nacional (Funchal, 1954), delegado de propaganda médica (1955-58); e, durante os anos em que viaja pela Europa (França, Holanda e Bélgica), entre 1958 e 60, teve diversos empregos (criado, operário, policopista, carregador e guia de marinheiros pelos bairros de Amesterdão). De regresso a Lisboa, trabalha como encarregado nas Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian (1960-62), é redactor de noticiário internacional na Emissora Nacional (1964-66), colabora em programas da RTP e faz publicidade (1967-68). Em 1969 torna-se director literário da Editorial Estampa, onde começa a publicar a obra completa de Almada Negreiros. Depois de viajar novamente pela Europa (1970-71), vai para Angola, onde, sob diversos nomes, faz reportagens para a revista Notícia (Luanda), e volta a Lisboa, sendo revisor tipográfico na Editora Arcádia (1973) e redactor de notícias na RDP (1974). Herberto Helder frequentou, cerca de 1958, o Café Gelo, então ligado ao grupo surrealista, tendo já anteriormente colaborado nas revistas Re-nhau-nhau (1955) e Búzio (1956), editada por António Aragão e com a colaboração de Edmundo de Bettencourt. Desde então ligado às vanguardas e à procura de novas vias na poesia portuguesa, colaborou nas Folhas de Poesia (1957), com Helder Macedo e António Salvado, mas não deixou no entanto de estar em contacto com poetas de outras gerações (por exemplo, com colaboração na revista Graal, dirigida por António Manuel Couto Viana). Tendo estado ligado à organização da revista Poesia Experimental (1964 e 1966) e tendo participado na "Exposição Visopoemas" (1965), Helder retirou do Surrealismo e da Poesia Experimental sobretudo o postulado da "liberdade, liberdades" para o seu próprio percurso poético. Colaborou em outros jornais e revistas (Jornal de Artes, Jornal do Fundão, Diário de Notícias, Cronos - nesta com Fernando Luso Soares e Eduardo Prado Coelho) e esteve envolvido num processo judicial (1968) desencadeado com a publicação da tradução de Filosofia na Alcova, de Sade (como intermediário entre tradutor e editor), no qual foi condenado a pena suspensa. Também nesta data, o seu livro Apresentação do Rosto foi apreendido pela Censura, nunca tendo sido reeditado. Na década de 70 Helder colabora quer em catálogos de pintura (Maria Paulo, SNBA, 1971), quer na revista Caliban (com Grabato Dias, Knopfli e Sena), no caderno antológico Novembro (com Gastão Cruz, Eugénio de Andrade e Ruy Belo) e em Nova: Magazine de Poesia e Desenho. Considerado unanimemente um dos mais importantes nomes da poesia portuguesa contemporânea, foram atribuídos a Herberto Helder diversos e relevantes prémios literários - Prémio Europália e Prémio Pessoa (1994), entre outros -, tendo o autor recusado todos eles, bem como a concessão de entrevistas ou mesmo a participação em eventos culturais ou literários. A sua obra poética encontra-se, desde 1973, reunida nas sucessivas edições de Poesia Toda. Decorrente de um gesto de religação de toda a poesia, este é o livro fundamental da poética helderiana, "toda, / de estrela a estrela da obra.", sobretudo na medida em que esse é o lugar em que, reversivelmente, se fundam poesia e poética - "um baptismo atónito, sim uma palavra / surpreendida para cada coisa". Obra excluída (por razões editoriais, mas acima dessas as autorais, porque se conclui ser impossível "apresentar o que está presente", sobretudo na medida em que "a ausência é que devia apresentar-se, pois tarda na ausência"), a "autobiografia activa" Apresentação do Rosto é explícita quanto à instauração não tanto de um sujeito de escrita, mas, acima de tudo, de um autor que se celebra o acto enunciativo como o gesto criador: "sou o Autor, diz o Autor", aquele que gera (no poemacto) "uma coisa poética, [...] o acto iluminante do génesis". Por cada nova edição da sua poesia e da prosa, sobretudo Os Passos em Volta (seis edições com reescrita de fragmentos), o autor faz correcções no sentido de um maior rigor e apuro, da rasura de marcas de sujeito, num processo a que chama "emenda sucessiva" e "alteração de composição". Outro dos livros essenciais é Photomaton & Vox, que contém textos cuja classificação genológica é difícil, na medida em que inclui "ramificações autobiográficas" e "notas pessoais" (alguns dos fragmentos de Apresentação do Rosto são aqui reescritos), "artes poéticas" e metatextos em que se reflecte sobre a representação: pintura, escultura e cinema. Se, por um lado, a sua poesia é aqui concebida como um "corpo orgânico [...], um cosmos explícito, "objectual"", por outro, "a superação do caos exprime-se pelo encontro de uma linguagem" que por estes ensaios se procura. A investigação das possibilidades da linguagem tem um seu corolário na "mudança" de poemas, com a tradução de poesia ameríndia (Maias e Aztecas) ou de povos africanos (Pigmeus), na procura da genealogia da "dicção mítica" (Ouolof). Herberto Helder tem poesia sua traduzida em diversas antologias, de entre as quais as publicadas em Itália (La Parola Interdetta: Poeti Surrealisti Portoghesi, Antonio Tabucchi, org.), em Inglaterra (Contemporary Portuguese Poetry, Helder Macedo, org.) e em Espanha (Antología de la Poesía Portuguesa Contemporánea, Angel Crespo, org.), para além das traduções de obras suas (França, Itália, etc.). Diversos estudiosos portugueses e estrangeiros se têm dedicado ao estudo da sua poesia, de entre os quais se destacam Maria de Fátima Marinho, Maria Lúcia Dal Farra e Juliet Perkins. Os dois "ensaios poéticos" "Poesia Toda" (in A Phala, nº 20, Out.-Dez. 1990) e "A propósito de Photomaton & Vox [3ª ed.] ou de qualquer outro texto do autor" (in A Phala, nº 46, Out.-Dez. 1995) são indispensáveis para o conhecimento da poética helderiana e para a (auto) definição da sua poesia: "o poema é um objecto carregado de poderes magníficos, terríveis: [...] promove uma desordem e uma ordem que situam o mundo num ponto extremo: o mundo acaba e começa", principalmente se se aceitar o repto para que se "arrisque [...] sobretudo o nome pessoal para ouvir [...] o nome de baptismo como o coroado nome da terra". Esta é uma poesia como experiência de excesso e violência, pois "a paixão é a moral da poesia" (1990).


(in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998)


Bibliografia completa:


O Amor em Visita, 1958
A Colher na Boca, 1961
Poemacto, 1961
Lugar, 1962
Electronicolírica, 1964
Húmus, 1967
Retrato em Movimento, 1967
Ofício Cantante, 1967
Apresentação do Rosto, 1968
O Bebedor Nocturno: Versões, 1968
Vocação Animal, 1971
Poesia Toda, 1973 ; 1996
Cobra, 1977
O Corpo O Luxo A Obra, 1978
Photomaton & Vox, 1979
Flash, 1980
A Cabeça entre as Mãos, 1982
As Magias (alguns exemplos): Versões, 1987 ; 1988
Última Ciência, 1988
Os Selos, 1990
Os Selos, Outros, Últimos, 1991
Do Mundo, 1994
Doze Nós numa Corda: Poemas Mudados para Português, 1997
Poemas Ameríndios: Poemas Mudados para Português, 1997
Ouolof: Poemas Mudados para Português, 1997
Edoi Lelia Doura: Antologia dos Vozes Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa,
Os Passos em Volta,

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

São Jerônimo, de Caravagio

 

 

 

 

 

Herberto Helder


 

Sobre o Poema


Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
— a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

— Embaixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.

— E o poema faz-se contra o tempo e a carne.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopagus

 

 

 

 

 

Herberto Helder



O Amor em Visita


Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
ele — imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
— Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria!

 
Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.

E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.

- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.

Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.

E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe
a força maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.

Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho, no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.

Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Herberto Helder


 

Se houvesse degraus na terra...


Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Theodore Chasseriau, França, 1853, The Tepidarium

 

 

 

 

 

Herberto Helder


 

Fonte


Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte
em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo ---
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.

Ninguém falava dela, porque
era imensa. Mas todos a sabiam
como a teta. Como o odre.
Algo sorria dentro de nós.

Minhas irmãs faziam-se mulheres
suavemente. Meu pai lia.
Sorria dentro de mim uma aceitação
do trevo, uma descoberta muito casta.
Era a fonte.

Eu amava-a dolorosa e tranquilamente.
A lua formava-se
com uma ponta subtil de ferocidade,
e a maçã tomava um princípio
de esplendor.

Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento
perdeu-se e renasceu.
Hoje sei permanentemente que ela
é a fonte.


 

 

 

 

 

11/11/2005