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Mário Cabral


 

ELOGIO DA LUZ


A Luz. O brilho da Luz. A surpresa da Luz
Coada por qualquer sombra, subtis folhas
Tremeluzindo soletram o Silêncio, abrem-se
Caminhasse pelos bosques infantis onde é pó de oiro
Chuva perigosíssima disseram os Antigos
O tilintar da Luz às cegas na sombra
Oh, a Luz que não se vê e cega, a Luz viva.
Abrem-se portadas, abertas são palmas refulgentes
As casas antigas readquirem a voz perdida
O canto de louvor não pode ser histórico
Espalha-se a Luz é água no sobrado
Em tábuas assim as almas se banham
A Luz, a Luz, a Luz, os toldos às riscas
Apresentam-na, esta é a sua medida espantosa
Um quadro que veio da Rússia para Lisboa
Esqueci-me dos mapas e dos testamentos porque
Em rostos assim as almas se banham
Em águas marítimas prateada, quer de noite quer de dia
Estrada que vai retalhando os pés incautos, contos infantis
Adultos que não quiseram ser grandes, nostalgia.
Portanto: as folhas, as portadas, os toldos
Os pátios antigos, a água do mar profundo.
Olhos fechados, mãos postas sobre o peito, leito branco
Esvaziei este quarto branco para o reencontro com a Luz Lilás
Lilás, eis a glicínia em flor pela segunda vez, o tempo maior
O meio-dia, a Luz no branco do chão ao tecto
Ela avança a cantar e eu sorrio. Luz, Luz, Luz.
Recebo-a de olhos fechados depois da glicínia do pátio interior.
Dir-me-iam morto. De facto, descanso, não desejo nem espero
A ambição inominável da Serenidade, porque a Luz cega.
Nunca a conhecerão os banhistas. Repito. Aconselho.
A Luz. O mistério da Luz. A Luz traz-me do longínquo a Paz.
O reencontro consigo descentraliza. Inclino o rosto para a Luz
Inclino o rosto para a Luz, ela me faz esquecer o Bem e o Mal
Ela silenciou os cães e as aves, derruba e derruba
Derruba as paredes antigas da casa ancestral, entorta os livros
Amortece as cores dos quadros e dos sofás e reposteiros
Passo a passo acompanha tudo ao branco mas eu recebo-a
À Luz, à Luz, no branco integral. E fechei os olhos, a sorrir
Enquanto desejava o inominável, já cansado de esperar.
A Luz foi apagando o telefone e o correio electrónico
Os cães dormem protegidos do calor, o telefone já não toca
Os pássaros, para onde foram as aves? A Luz. Luz viva.
A Luz faz em mim o mesmo que nos livros e nos quadros e
E nos reposteiros e nos sofás. Vou cegando devagar.
Hoje um pouco, amanhã outro pouco, ao ritmo da Luz
Os meus olhos que agora só vêem o tempo que há-de vir
Passarei a usar máscara. Imóvel, dir-me-iam morto. À Luz.
Sem pedir licença. Como a Luz. Sorrio, ainda estou a inclinar
O rosto que não vê. A partir deste dia hei-de usar as palavras
Como as árvores as folhas, assim mesmo, repito, assim mesmo.
A Luz. O brilho da Luz. A surpresa da Luz.
Portanto: as folhas, as portadas, os toldos às riscas
Os pátios antigos e o mar das águas mortais.
Nunca a reencontrarão os banhistas. Repito. Aconselho.



 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

 

 

 

 

Mário Cabral


 

ESSÊNCIA POÉTICA
CABRAL, Casa das Tramóias, Sexta-feira Santa A.D.2005


Na Sexta-feira Santa do ano da Graça de 2005
Depois do ofício da Paixão do Senhor
Eu, abaixo-assinado Cabral, saí para passear os cães
Pelo caminho tantas vezes percorrido.
O furacão estava a passar e eu vi o arco-íris no céu.
Então pensei: «Bom sinal».
Mais à frente, um cavalo branco de freio escarlate
Passeava livremente pelo meio da marginal
E eu cheguei a temê-lo porque nos seguia.
Quando cheguei à Casa das Tramóias
Minha irmã mais velha avisou-me que jantaria a sós
Porque ela iria visitar minha irmã do meio
E a mais nova estava indisposta do estômago.
Enquanto comia folar e ovo cozido com chá verde
Ouvi na televisão que um dos corpos
Dos dois pescadores da minha freguesia
Desaparecidos durante a tempestade
Dera à costa noutra ilha. Não tinha a cabeça nem uma perna.
Estes factos deram-se assim mesmo há menos dum par de horas.
Poderia, se quisesse, dar-lhes tratamento simbólico
E até referir o Fedro, de Platão, por exemplo.
Mas não quero. A minha vontade é outra.
Procuro, deste modo, mostrar a essência poética
Linguagem tão descritiva como outra qualquer
Embora mais exigente, mais culta, mais elaborada
Por outras palavras, excelência humana.


 

 

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

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Vidula Sawant

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Exposition of Moses

 

 

 

 

 

Mário Cabral


 

NA ILHA DE MINHA AVÓ PROIBIDA
Cabral, S. Jorge, Domingo, 16 de Janeiro AD 2005


O leite da preta fez do enjeitado um rei
Por isso eu não venho buscar as laranjas
Que lhe quiseste dar.
O sol por dentro é tenebroso
Mas a minha missão é de incendiar a noite
Engolir o sangue podre até ao fim
Custe o que custar.
Vim dormir à ilha de S. Jorge
E no meu sono tudo ficou limpo e redondo.
Os mortos encontraram o umbral do Perdão
Na vela que eu sou por eles acesa a consumir-se
Espada do Céu que me parte em dois
Intransferível Justiça do Paraíso.
 


 

 

 

Ticiano, Salomé

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Cissa de Oliveira

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rebecca at the Well

 

 

 

 

 

Mário Cabral


 

O SABER QUE ESCAPA AOS RELÓGIOS
CABRAL, Prainha – Casa das Tramóias, Terça-feira, 9 de Março – Quarta-feira, 10 de Março A.D. 2004


Era uma vez um país onde os cegos davam longos passeios à beira-mar.
Arregaçavam as calças mas não se importavam de molhar as meias [por detrás das sandálias.
Desta forma elaborada dissertavam sobre a cor das águas.
Um dizia: «Quantas cores supões caberem dentro duma só vaga?»
Outro respondia: «Todas aquelas que sinto nos pés as confirmas no coração».
«Donde te vem sabedoria assim tamanha?», retorquia o primeiro; ao que o segundo exclamava:
«Da ignorância subjacente à tua pergunta».
Eu, que olho tanto para o mar, começo a intuir a minha cegueira
E já sinto o desconforto dos pés frios, condição indispensável
Para quem espera sem compreender a demora.
Deveria já ter resvalado para aquele país.
Por exemplo, já não vejo as coisas mas o espaço que há entre elas;
E não vejo os órgãos mas o intervalo que há entre eles
Espaço de fase, diz-se na Física quântica.
Por exemplo, já não me importo com o tempo dos verbos nem com a colocação rigorosa dos ficheiros.
Quase sempre paro as tarefas a metade, interrogando-me sobre aquilo que sabia antes de nascer.
Nas muitas longas horas que dedico à contemplação do mar nascem as sombras do futuro
E no lugar do futuro eu vejo-me sentado com grande pena de mim.
Não sei onde vou buscar a coragem para vos revelar todos estes segredos;
Repararam, por certo, na minha forma de falar, em moldes que não são permitidos.
Dir-se-iam quase escandalosos e por isso eu peço perdão.
Vejam bem: ainda me falta aprender a falar silenciosamente.
A verdade é que ganho a vida como professor e, confesso sem vaidade, sou famoso como tal.
É tudo tão estranho: nas novas salas de aulas a Cruz foi substituída [pelo relógio.
Dantes ela estava à frente, em cima de mim; agora ele está nas costas dos alunos
Cínico, só eu o vejo, obriga-me ao descrédito geral, à vergonha.
Um destes dias não resisti; os cegos estavam parados no beijo das ondas. Gritei bem alto:
«Sou eu quem vos permite a felicidade. Mandem outro para o meu lugar!»
Fingiram não ouvir-me; mas de imediato eu fui rodeado pelo bater ensurdecedor das asas seráficas
Pelo que tenho a certeza absoluta que me escutaram.
Hei-de pagar o meu atrevimento, esperando tanto mais absurdamente quanto decidi deixar de ler as horas.


 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

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Teresa Schiappa

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

Mário Cabral


 

POEMA COM UM PERIQUITO


Seis horas desenvolvidas precocemente acendem-se preguiçosos os candeeiros da cidade duas crianças vêm de bicicleta pelo pas-seio uma delas traz um periquito na mão liberta mas o periquito mas o periquito não vem livre —Passer deliciae meae pullae quicum ludere quem in sinu tenere Cuidado o menino do periquito periquito verde e amarelo verde e amarelo verde amarelo verdCuid

— Cuidado!

Há uma espécie de hora de ponta que metropoliza esta aldeia um um rapaz na idade reprodutora está a comer à janela terceiro an-dar as pernas arreganhadas de calções no parapeito o à-vontade dele é muito deste século é muito continental nas ilhas é muito de surfista aos domingos à tarde o resto da semana debruça os caracóis oxidados sobre os pratos no Capitólio. Uvas. É muito é

— Cuidado!

— A balança não estará avariada? — Não senhor. Não estará a precisar de ginásio? É do peso do cão morto a boiar nas águas paradas da minha alma mas ele não precisa saber. Para onde vai tão apressada esta mulher a este mundo dá-se a volta em oitenta segundos. Por outro lado aquela criança precisará da eternidade se quiser sair da minha memória sair da minha memória sair sair

— Cuidado!

Será que ninguém se apercebe que tudo parou desde Catulo? Deus parou este vídeo e foi ao w.c. demora tanto demora tanto de
— Desculpe? — Perguntei ao senhor se era o pão de sete grãos? — Sim sim sim sim. Desculpe estava distraído. Lembrou-se do pão duro para o cão?(Como é possível falar tal língua? Elegantís
vou fingir que não vejo fulano Passer deliciae meae puellae. U.E.

— Cuidado!

Não para aquele que está morto na minha alma pois se está morto distraído a ouvir um casal de alemães e a pensar: Como é pos-sível falar esta língua com tal celeridade ela é elegantíssima outro tempo outro espaço U.E. seguramente Vou fingir que não que não vejo fulano, o cinzento vai ajudar oh vai biciclum pueri parar a imaginação no periquito no periquito emudecido as dores

— Cuidado!

À noite pela mesma rua agora deserta um louco leva na mão uma uma gaivota silenciosa presa pelas patas ressuscita o cão da minha alma pôs-se a uivar à lua cheia. Terei sido eu a transportar o periquito o cão e a gaivota? Não sei. Não me lembro. Quicum Três dias depois ao fugir no aeroporto vi de novo os alemães muito classe média afinal colando selos a cuspo. Não me lembro

— Cuidado!


 

 

 

Ticiano, Magdalena

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Marina Leitão

 

 

 

 

 

 

 

Theodore Chasseriau, França, 1853, The Tepidarium

 

 

 

 

 

Mário Cabral


 

UM PEIXE PARA SÃO FRANCISCO DE ASSIS


o peixe vermelho
do meu tanque
rigorosamente oriental
sonhei com ele duas a três vezes
como se um só acenar de atenção —
do seu ventre nascer vinham
a nadar silenciosos
outros muitos peixes
em medidas também grandes
a cor deveras cor do escarlate
pelas águas esverdeadas mornas
debaixo da árvore ondulante.
pudera estar sentado na leitura estival
e se assim seria a felicidade a divagar
na âncora do naufrágio poético.


mas onde estava eu?


agora passeio pelo caminho tantas vezes percorrido
e lembro-me dos peixes navegadores misteriosos
ao deparar com as pombas
batem asas sem avançar no espaço
prometo aos que me seguem mudos e em expectativa
não mais pensar em mim diante do fazer
e a sofrer e a morrer
disposto a entregar as mãos.
começo a ouvir os cânticos ao longe
enquanto visto a túnica dos sacrificados
hão-de aproximar-se muito mais eu deles
nestas alturas do profundo sem querer saber nada
daquelas coisas que me fizeram parar antes do aviso —
transformado num sopro simples e simples simples
em tempo tão completo o contrário não se sustenta.


 

 

 

Leonardo da Vinci,  Study of hands

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Adrianne D. Meyer-Gruhl Fontoura

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mário Cabral


 

DIÁLOGO COM UM MELRO-PRETO
CABRAL, Casa das Tramóias, Páscoa A.D. 2004



No templo em que os animais falam disse-me o melro-preto de bico amarelo:
«Não tenho medo da chuva». Respondi-lhe: «A mim borra-me os versos».
Saltitou em redor do tanque de quatro lados saltitou e tornou a saltitar saltitar
A água do tanque arrepiada de frio, as carpas sempre vermelhas
Eu sete degraus abaixo do nível da verdura sentado no claustro a escrever.
«Não tenho medo da chuva. Não tenho medo da chuva. Não tenho medo da chuva».
«Se assim o garantes, concordo em juntar-me ao teu canto».
«Se o fizeres passo a ter medo da chuva. Torna a reflectir».
«E como pagarás o meu sacrifício, posso eu perguntar?»
Saltitou da magnólia para o limoeiro e do limoeiro para o metrossidero
E do loureiro de Portugal para o Orgulho da China e do Orgulho da China
Para o ibisco da Síria e do ibisco da Síria para o Lilás da Califórnia
Eu sete degraus abaixo do nível da verdura sentado no claustro a cismar.
«Prometo comer-te a língua quando tu morreres».
«É promessa que não vou esquecer e dou-te meus olhos também».
«Não tenho medo da chuva. Não tenho medo da chuva. Não tenho da chuva».
«Dou-te ainda minhas mãos e ainda o coração para levares ao vento».
«Não me dês o pensamento se não passo a ter medo da chuva».
Saltitou do Lilás da Califórnia para o ibisco da Síria e deste
Para o Orgulho da China e do Orgulho da China para o loureiro de Portugal e deste
Para o metrossidero e do metrossidero para o limoeiro e deste
Para a magnólia e desta saltitou e saltitou e saltitou e saltitou
Ao redor do tanque dos quatro lados onde as carpas ainda são escarlate
Eu sete degraus abaixo do nível da verdura sentado no claustro a chorar.
As minhas lágrimas são iguais à chuva e borram os meus versos.
«Porque choras ó Poeta, não tens tu medo da chuva?»
«Choro porque já não quero fazer versos». «Ai que a chuva me vai matar!»


 

 

 

Franz Xavier Winterhalter, retrato de Roza Potocka

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Eleuda Carvalho

 

 

 

19/06/2006