Manoel Ricardo de Lima
Leminski!
Em
1968, Paulo Leminski se debruçou sobre um projeto que o fez
atravessar meio em silêncio os primeiros anos da década de 70. O
projeto de um romance, uma prosa experimental, aos modo das
narrativas que tomam por base a tentativa de invenção de novas
sintaxes e de formatação de uma pesquisa de linguagem, como as de
James Joyce em Ulisses e Finnegans Wake, de João Guimarães Rosa,
em Grande sertão: veredas e ainda, de Haroldo de Campos, em seu O
Livro das Galáxias.
Esta
prosa de invenção, ou prosa experimental, como a definiu Leminski,
recebe o nome de Catatau. Narrativa que foi publicada em 1975, em
uma edição do autor. “Me nego a ministrar clareiras para a
inteligência deste catatau que, por oito anos, agora, passou muito
bem sem mapas. Virem-se”, diz-nos em uma Repugnatio Benevolentiae,
na página que inicia a obra, posterior às dedicatórias. E,
em uma entrevista, afirma sobre os autores em questão: “as prosas
depois de Joyce e que não são tocadas pela experiência joyciana a
mim não interessam. Elas são pré-joycianas. Quer dizer, eu vejo
as coisas de modo histórico.” (PARANAENSES, 1988:18); “eu tinha
pretendido levar alguns palmos, alguns passos além, a experiência
de Rosa. Porque Rosa trouxe a experiência da linguagem até as
portas da ininteligibilidade. E eu entrei na ininteligibilidade.”
(PARANAENSES, 1988:19); “uma prosa pós-Rosa, bem, tem O livro das
Galáxias, de Haroldo de Campos.” (PARANAENSES, 1988:20) A idéia
era a do “texto, antes de ser signo de alguma coisa, ser um
objeto.” (PARANAENSES, 1988:20)
A
narrativa do Catatau conta a trajetória de René Descartes, o filósofo
cartesiano, que foi oficial de Maurício de Nassau na Europa e que
poderia tranqüilamente ter vindo ao Brasil. Leminski imagina que
ele veio com o nome de Renatus Cartesius para o Brasil holandês, a
Recife de 1630, e o coloca em uma situação minimamente ridícula:
uma tocaia, uma longa espera. Cartesius fica sentado à sombra de
uma árvore, com uma luneta em uma das mãos e um cachimbo com
maconha na outra, esperando uma figura estranha, detentora de vícios
e herege, que chega bêbada. Ou seja, como disse Leminski, que chega
imprestável para a razão.
Régis
Bonvicino define o Catatau como uma narrativa que tenta enquadrar a
realidade tropical e nova aos olhos do filósofo, realidade
exuberante e emergente, dentro de velhos preceitos europeus; e que são
os provérbios populares que confundem o pensamento do cartesiano:
“os provérbios de ralé, e todos os seus similares, de
trocadilhos a anexins, referenciam e amarram, com unhas e dentes, a
narrativa do Catatau ao mundo popular, à boca do povo, esse
‘inventa-línguas’. E não só ao literário.” (LEMINSKI,
1992:172) Confirma-nos o próprio Leminski com o poema que segue,
sem título, também de Caprichos e Relaxos, que a sua prosa é,
antes de mais nada, uma prosa escrita por um poeta:
sim
eu
quis a prosa
essa
deusa
só
diz besteiras
fala
das coisas
como
se novas
não
quis a prosa
apenas
a idéia
uma
idéia de prosa
em
esperma de trova
um
gozo
uma
gosma
uma
poesia porosa
(LEMINSKI,
1983:60)
Depois,
quando tentam posicionar a poesia de Paulo Leminski como uma poesia
que foi partícipe do movimento da poesia ‘marginal’, como uma
poesia que também e apenas desembocou para o universo das letras de
música durante a década de 70, faz-se não só um deslocamento
parcial dessa poesia como também comete-se um pequeno equívoco, o
da generalização. Paulo Leminski não participou ativamente das idéias
da poesia ‘marginal’, nem poderia. Estava completamente
envolvido pelo projeto do Catatau. Diz: “poesia marginal,
alternativa, uma poesia, como é que eu vou dizer, de manga de
camisa, poesia feita sem nenhuma aparência de rigor formal”
(LEMINSKI, 1987:296), e mais adiante: “estou farto da incompetência
técnica da década de 70” (LEMINSKI, 1987:297).
Ao
mesmo tempo, Leminski reagia contra as próprias idéias que tinha
sobre o movimento concretista e as renova para começar a endereçar
seus interesses para tudo o que podia aproveitar de todo o manancial
que adquiriu até então e para o que pudesse fazer uso com o firme
intuito de construir a sua poesia, uma poesia que se pretendia de
vanguarda. Mas uma poesia de vanguarda que tivesse, minimamente, idéias
próprias; idéias dele. Como registra na discussão que teve com
Philadelpho Menezes sobre o tema ‘vanguarda’: “o que sempre
gostei na coisa concreta foi a loucura que aquilo representa, a
ampliação dos espaços da imaginação e das possibilidades de
novo dizer, de novo sentir, de novo e mais expressar.” (LEMINSKI,
1992:17) Diz em uma de suas cartas para Régis Bonvicino, datada de
julho de 1977: acho que não
devemos mais nos preocupar com palavras afinal nós vamos chegar lá
fazendo e não falando passei muitos anos de olhos
voltados para S. Paulo para o grupo Noigandres para o Augusto,
principalmente
escrevendo para eles preocupado em saber O QUE ELES IAM ACHAR
nessa época eu era “concretista” mas
eu era uma porção de outras coisas também e quando eu deixei que
elas agissem mais forte fiz o Catatau (...) somos os últimos
concretistas e os primeiros não sei o que lá (...) sem abdicar dos
rigores de linguagem precisamos meter paixão em nossas constelações
paixão PAIXÃO (LEMINSKI, 1992:35-36 -37)
Se
Leminski fala em não abandonar os rigores da linguagem, a
materialidade da linguagem, como estaria concordando com as idéias
da poesia ‘marginal’? Pensava o ideário modernista, Pau-Brasil
e Antropofágico, de Oswald de Andrade sim, mas de uma outra forma,
de uma maneira que o renovasse. Diz Antônio Risério: “Leminski,
como Oswald, reconhece a riqueza das frases feitas, explorando e
manipulando frases prontas do repertório coloquial, torcendo
expressões codificadas, etiquetas lingüísticas, etc.”
(PARANAENSES, 1988:48) e reafirma: “mas de outra parte, Leminski
conduz o texto para uma aventura extra-verbal. (...) uma iconização
da escrita. ”(PARANAENSES, 1988:49) Tomemos um exemplo:
coração
PRA
CIMA
escrito
em baixo
FRÁGIL
(LEMINSKI,
1983:65)
As
palavras que estão em letras maiúsculas no poema acima, de
Caprichos e Relaxos, são uma marca do que Risério chama de
“expressão codificada” e “etiqueta lingüística”: um
registro de pacotes de viagem, de bagagem, ou de caixas para
transporte que contêm objetos fáceis de quebrarem: ‘a aventura
extra-verbal’. Ainda, as indicações “PRA CIMA” e “FRÁGIL”
são determinantes: do lado certo e da condição do que é
transportado. Leminski faz um contraponto destes determinantes com o
signo metafórico do coração humano, regente de nossos
sentimentos, que é supostamente frágil. Depois, utiliza “PRA
CIMA” também como uma expressão popular, a gíria, que carrega
um significado de que para cima as coisas andam melhor, estão bem.
Enfim, o repertório coloquial, do poema-minuto e do humor
oswaldiano, retrabalhado, com uma disposição extra-verbal que é
retirada dos conceitos da poesia Concreta.
O
próprio Leminski declara em um depoimento para a revista Escrita,
depoimento que está transcrito por Glauco Mattoso em seu O que é
Poesia Marginal, a seguinte proposição: “Os que defendem uma
poesia desprevenida esquecem que os grandes poetas do Brasil têm
sido intelectuais de amplo saber e múltiplos interesses (Bandeira,
Drummond, Cabral, Murilo, sem falar em Mário).” (MATTOSO,
1981:35)
O
que podemos afirmar é que Leminski, durante os oito anos em que
escreveu o Catatau, mesmo que tenha escrito letras para músicas, e
para boas músicas de Itamar Assumpção, por exemplo, e que tenha
tentado afirmar que a poesia brasileira estava não nas páginas do
livros dos poetas marginais, mas nos encartes dos discos da MPB,
estava mesmo era construindo um projeto poético extremamente rico
dentro de seu mais protuberante oxímoro: Caprichos e Relaxos,
publicado em 1983.
[Fragmento
do quarto capítulo de dissertação sobre a poesia de Paulo
Leminski sob o título de Caprichos e Relaxos: pequeno percurso para
uma poesia de vanguarda. Texto
publicado na revista Monturo, n. 3, de março/99.]
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