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Myriam Fraga


 

Janeiro


Verão


E esta cidade como um sáurio,
Como um réptil,
Emergindo das águas


Verão...


E esta cidade
Como um pássaro
Renascendo das brasas


Verão...


E esta cidade como um signo,
Astrolábio ou mandala,


Esta cidade
Como um dado
Atirado ao acaso


De males nunca dantes
Confessados.
 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

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Luciano Maia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

 

 

 

 

Myriam Fraga


 

Fevereiro


O sol divide o mundo
Em dois luzeiros,


Metade ainda é febre,
A outra metade
É fogo devorando
Seus altares.


Arcano é o tempo,
Anil sem asas,
No azul fuzilante
Das mortalhas.


Leão coroado, o sol,
Com suas garras,
Separa devagar
Vagos despojos.


Púrpura é o limite,
Som de prata lavada.


Ao cintilar dos clarins
O dia explode
E uma estrela de cinzas
Desenha-se na cara.
 

 

 

Michelangelo, Pietá

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R Roldan-Roldan

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Tributos

 

 

 

 

Myriam Fraga


 

Março


... e estes marços doendo
como pedras nos rins,
charadas que não invento
e nem sei de memória
se há memória
além de um domingo de março
azul, perfeito.
todas as areias rolaram sobre
de todas as possíveis clepsidras
só o olho-farol, olho brilhante
antigo, a me guiar nas trevas
do regresso, não haverá,
não haverá,
não haverá, porto, viajante,
nenhuma Ítaca te espera,
nenhuma Colchida, nem mesmo os arrecifes
no cais de tua infância.
apenas a morte suave de olhos tristes
tão rápida e indolor, tão limpa guilhotina


... e estas tardes de março
viageiras. Sei o peso da ausência, sei a dor
das lembranças tatuadas
na carne, coladas e desfolhadas
como pele queimada que se arranca.
nenhuma presença é mais real
que a falta, corpo de solidão
deslizando entre móveis, marfins,
folhas soltas de um livro,
marca da prata, desenhos no tapete,
cavalos, leão de pedra, lembranças
que se acendem em faróis iluminando
o outro lado do abismo,
o precipício, o vazio, onde tudo se acaba.
 

 

 

Bronzino, Vênus e Cupido

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Gerardo Mello Mourão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Myriam Fraga


 

Abril


Escrevo de memória.
A infância é um bolo
Na garganta
E a dor de dividir-se
Nos espelhos.


Que foi feito de mim,
Daquela estória
Que eu me contei um dia
E que perdi?


Escrevo sempre à noite;
Pela manhã apago
E recomeço.


É tão difícil viver,
É tão de açoite
O vento nas vidraças!


É abril e chove
E a terra morta
Onde o lilás floresce
É minha pátria agora,
Meu destino. Insula.
 

 

 

Albert-Joseph Pénot (French, 1870-?), Nude with red flowers in hair

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Nelly Novaes Coelho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

Myriam Fraga


 

Maio


Agora que se foi
Sem medo e sem disfarce
Descola-se do álbum
O último retrato.


Vestido de seda verde,
As mãos tão claras,
Um castiçal de prata
Sobre a mesa e hortências
Desbotando de rosa a azul lavado.


Rosa mística de maio,
Luz dançante
Nos dedos de minha mãe.


O espírito de Deus
Pairando sobre as águas
 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

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Nauro Machado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

 

Myriam Fraga


 

Junho


Noite fria, neblina...
Nos corpos acesos
O esplendor das fogueiras.


Adorávamos o fogo,
Tão limpos e cruéis,
Tão santos e assassinos.


Pele de ovelha nos ombros,
Na boca,
Um gosto de salitre
E asas verdes.


Ah! os cátaros.


Um tronco de jaqueira,
As espigas de milho,
Arco-íris de papel
Na memória intocada.


Ah! os cátaros!


Do outro lado do abismo
Outros fogos acesos
E os jogos, as adivinhas,
As sortes, os presságios...


A meia-noite em ponto
Nos olhávamos no espelho:
Era tudo tão confuso,
Tão lampejos de prata, tão
Relâmpagos de faca.


A dançarina louca
Despia-se de suas pétalas,
Ah! os cátaros, os cátaros,
O amor tem dessas fúrias,
Dessas fomes de fera
E cabeças cortadas.


Ah! os cátaros!
 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata

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Dalila Teles Veras