Não é aqui não

Alguém gritou da balaustrada:
     – Não é aqui não!
Era,
era lá.
Uma casa antiga, um batente alto,
era um orquidário.

Em tudo, uma paisagem velha
como soem parecer
essas florestas onde
as orquídeas pendem
e os pássaros chegam em rota migratória.

Não procurava pássaros,
nem rotas,
nem migrantes, nem orquídeas;
haviam-me dito: uma velha casa,
e sob uma roupa breve,
os cabelos esquecidos
porque os espelhos não eram convocados,
mesmo assim,
a beleza que –...
eram os olhos, isto, o olhar,
                                               ali,
                                               até.

Convocara sim as testemunhas e o dedo
porque – foi dito
entre os soluços e os silêncios –
nem saberíamos catalogá-las, de tantas,
     as faltas,
     minhas,
muito mais que as naus do catálogo
dos aqueus, muito mais.
Suave como o entardecer, houvera
um tempo,
e agora, ali, distante,
eu disse
[as mãos estavam frias]:

Não vou-te levar sozinha em viagem
ilha.

Lá, deserta das outras, te tomarias
de ilha e tédio.

Única maldição: sozinha!

Aqui também – ela disse –
o tempo todo, ele grita:

                 “Não é aqui não!” –

Ilha por ilha!

Qual?

Imaginas que o mandei gritar – contra ti?
Ilha...?!

É no convívio dos espelhos, mulher,
mulheres, que te queres bendita:
o passo da graça, nem que seja
à maneira de desembrulhar teus mortos.

Haverias de te esquecer de ti
porque das outras, o Poderoso
não falava a sério, acho que não:

Parirás sob o medo!
Multiplicados sejam
os sofrimentos que não são.

Verdadeiros, só o tempo-espera,
só o tempo-só.
O resto, tudo volúpia!

Volúpia maior:
a invasão da pélvis, os humores – e líquido
em bolsa rasgada,
uma respiração ofegante,
como se todos os deuses
de tuas narinas respirassem.

– Aonde vais nessa fúria?

O suor do meu rosto, sim, resigno-me!

Sim, agora respiras, vê, o espelho embaçou-se!
Vamos, eu já te levo, só a ti!

– Não posso fugir sem um espelho!

Sagrar os espelhos,
entre todas as mulheres,
dia e noite,
espelhos, a tua sina.

Eu te trouxe meias pretas.
Está frio, está noite.
Lá.

– A quem o velho grita?

– Nunca disse.

Se quiseres deixar avisado,
toma do giz, escreve,
o teu traço, na porta, do lado de fora,
escreve-o,
nas árvores, nas pedras,
com bem força. Eu te ajudo:

                 – Fui eu!

 

 

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Este, o 28º capítulo de Poética, um livro vivo, aberto, gratuito, participado e participativo, cheio de comentários que, a rigor — esta, a proposta —, os comentários, mais importantes que o texto comentado: abrir o debate, uma multivisão.

— Livro vivo, como assim?

— Porque em permanente movimento, espaço aberto a quem chegar, tão amplo como o espaço àqueles que aqui estão desde os séculos, todos em absoluta ordem alfabética. Seja bem-vindo!

POÉTICA: Capa, prefácio e índice poemas e poetas comentaristas

 

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Comentários:

ELAINE PAUVOLID: Texto teatral e a poesia em Soares Feitosa.
“nas mesmas métrica e rima certas, por linhas... cegas...
do Ontem! A quem prestam contas os galos?”
(“Rio Macacos”, Soares Feitosa)

O poema pode ser épico, como é o de Gerardo Mello Mourão (“Os Peães”),pode carregar o movimento nascido a partir do Romantismo francês do século XIX, o lirismo, como é o de Alexei Bueno (“Em sonho”), pode ser polêmico como é o de João Cabral de Melo Neto e pode ser teatral como é o de Soares Feitosa.
Nítidos traços de Mourão nos seus traços, mas a marca maior salta aos olhos, a teatralidade. Diferencia-o de Mourão, entre outras coisas, o fato de não ser épica a poesia de Soares. A invocação de cenas da natureza, de histórias enredadas umas nas outras o aproxima de G.M.M.. Se este último, em “Os Peães”, apresenta com mestria a saga dos Mourões, Soares desliza para um espectador de cenas menos heroicas, com menos aventura e perigos.
A habilidade de evocar histórias sem fugir do estilo do poema e não ser épico acaba dando teatralidade ao seu texto. Não poderíamos esquecer de citar Shakespeare que, na verdade, foi um dramaturgo, no entanto suas peças/poemas se incrustaram no imaginário de qualquer ser letrado como poesia mais pura, mais cristalina e mais lida.
Outro dramaturgo, contista e poeta, a ser lembrado é Bertolt Brecht e, quanto ao tema, Soares está mais próximo do alemão devido à maneira, muitas vezes árida, quase encardida de representar situações. Não traz, no entanto, o lado ideológico-político, sua função quase didática que o dramaturgo deixou em sua obra.
Soares não faz teatro pelo mesmo motivo que não conduz prosa nos poemas em análise neste ensaio. Não há narração, o que diferencia a prosa de ficção da poesia. Quanto ao texto teatral, faltam-lhe as rubricas, que é uma espécie de narração e a intenção explícita de um dia levar o espetáculo com seus atores, porque tal estilo só se completa com a encenação. Independente de estilos e pares, percebamos os versos que encabeçam o ensaio. Podemos derivar para onde quisermos se ficarmos só com eles. Existe mais, o poema inteiro, seu contexto.
Soares chega ao ápice do fazer poético, dá-nos um portal com seu verso de inúmeras entradas e saídas. Esbarra-se na definição de poesia e no conceito de obra aberta de Umberto Eco. As possibilidades de mensagens são inúmeras, porém não se perdem nos ruídos do caos (como um portal da Internet). Há uma linha mestra, o Eu poético, que direciona o imaginário do leitor sem a tirania de um conto de fadas nem a inabilidade de uma prosa mal colocada. Vejamos: “Nas mesmas métrica e rima certas [Remete-nos aos Lusíadas de Camões], por linhas [faz-se viagem por poesia como atesta o Odisseu lusitano]... cegas [remetendo à lenda do descobrimento às cegas do Brasil] de Ontem [Shakespeare, o teatro, as influências]! A quem prestam contas os galos? [o labor gratuito do artista pontual no seu desejo]”
Outro:
“Nem saberia dizer onde moro exatamente.
Desconfio que habito dentro de meus dentes.”
(“Habitação”, Soares Feitosa)
Soares é nosso contemporâneo e se pode dizer dele que integra o movimento nascido na França em 1924, não esgotado até hoje, o surrealismo. Somente a lapidação preciosa de uma escrita automática poderia produzir os dois versos de “Habitação”. Além disso a interpretação não é o principal objetivo e sim o efeito desconstrutor-reconstrutor que atua sobre nós logo naqueles primeiros versos de “Habitação”.
Mais outros:
Aqui também – ela disse –
esse velho à balaustrada,
ele grita o tempo todo:
“Não é aqui não!” –
Ilha por ilha.
Imaginas que o mandei gritar – contra ti?
Ilha...?!

É no convívio dos espelhos, mulher, mulheres, que te queres bendita: o passo da graça, nem que seja à maneira de desembrulhar teus mortos.
Haverias de te esquecer de ti porque das outras, o Poderoso
não falava a sério, acho que não:
(“Não é aqui não”, Soares Feitosa)

“Para Eugen
Como se
um crepúsculo de mar,
uma viagem longa, muito longa, Ela
dissertava sobre Eugen.
Em cambraia e linhos, Ela
dissertava sobre Eugen.
As mãos,
os dedos longos... e os olhos, em contraste súbito.
......................................”,
(“Para Eugen”, Soares Feitosa)
Toque do movimento simbolista de finais do século XIX e início do XX, o nascimento do verso livre. Podemos dizer com liberdade que em Soares vários prismas se constroem. Nenhum poeta, apenas lírico, romântico ou épico. O poeta faz poemas e os movimentos se misturam, bifurcam-se.
Não é apenas o surrealismo que não é uma escola artística. Nenhuma obra de arte está aprisionada à escola que lhe vestiram, que lhe influencia, mas também nenhuma obra de arte poderá se descontextualizar, pois estará negando a si mesma, a sua própria existência.
O que importa na obra é o desejo do autor, sua assinatura, que ultrapassa também o estilo pessoal. No caso de Soares, o prazer de singrar uma história no mármore do poema, fazer brotar cenários, sejam eles oníricos como é o caso destes versos últimos, sejam eles realistas como é o caso de “Rio Macacos”. Como todo grande artista, Soares é múltiplo e sua arte portentosa.

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ERORCI SANTANA: Não é aqui não, poema em que a grandeza se sente no cerne do enigma e que, como qualquer poema seu, tem o condão de irromper de maneira abrupta na vida da gente, como aquele canto surpreendente das sariemas, cuja forma sonora nem de longe faz supor emitida por bicho de pena, mais lembrando o ladrir dos cães em perseguição à caça. Em seu canto há algo de urgência e premência, de movimento rápido, intrépido, ziguezagueante, imprevisível: a algaravia que se abate sobre o silêncio, a flecha ou projétil súbito que instaura a desordem dilacerante na ordem simétrica, cíclica e circular da carne. É tudo muito intempestivo e bonito. É uma canção travessa e irrefutável para combater o sono dos mortos. Mas o que há de mais admirável é que ela não parece intencional. Anuncia-se como o inferno adrede, um sonho – e como sonho, involuntário. Entra-se forçosamente no seu poema, à revelia e sem ser convidado, quer dizer: existe porque existe. Como disse Angelus Silesius, “Floresce porque floresce”. Principia com motes absurdos e inesperados, na contramão de toda expectativa e se desenvolve com requebros e soluções inusitadas. É esteticamente novo, original pelas cisões do pensamento e pelo desdizer mais que dizer. Fica anotado.

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MARIGÊ QUIRINO MARCHINI: Tudo nesses poemas é novo: a sintaxe, a semântica. Inalterável, porém, o místico poético que eles criam. Uma delícia de imagens sacrossantas, a sua contemplação da vida (“As Carnaubeiras”), através da morte do grande Octavio Paz. Poeta que você nos traz presente em seu “Dios insaciable”. Um componente de duas poéticas, a sua e a dele, numa conjunção planetária de grande força. E, no espelho da natureza, das idades, dos desencantos e encantos do “Não é aqui não”, vemos bem fundo nos nossos olhos que ali se interrogam, o Tempo. Tempo verde de um orquidário. Imenso.

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NELY NOVAES COELHO: “Não é aqui não”. Emocionou-me; é denso e vibrante de paixão, como tudo o que escreves.

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REGINA SOUZA VIEIRA: Um Eu lírico voltado para o que está distante, para o que existiu quando “houvera/ um tempo”, quando houvera um entardecer, quando houvera “o olhar/ali,/ até.”, um lampejo de luz testemunha daquele momento que, de fato, acontecera. Um momento talvez único, concreto, “Verdadeiro(s): o tempo-espera, o tempo-só” pois “O resto, tudo volúpia!”. Ah, quantas alusões e intromissões no imaginário, na sensibilidade que vão transpondo em versos uma ânsia que ultrapassa o trajeto normal dos acontecimentos: “aonde vais nessa fúria?” Só o poeta Soares Feitosa, tão impetuoso quanto o seu Eu lírico talvez responda a esta pergunta que só acrescenta ao questionamento uma dose a mais de mistério. Mistério que o Eu lírico enfatiza como sendo particularmente seu: “– Fui eu!”.

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SONIA ALVES DIAS: Voltei! Fiquei longe muito tempo, num pensamento transbordante da imagem de NÃO É AQUI NÃO! Estou aqui, donde nunca saí verdadeiramente. Da balaustrada, grito em alto e bom som:
É AQUI SIM!
É aqui que contemplo meu amigo, que te escrevo, que te chamo para “papear”. É daqui que saem meus bons sentimentos, as coisas boas que ainda me prendem a está vida meio má. Estou muito feliz que você esteja por aí, e que
Não é Aqui Não
continue tão presente para mim...
“Sim, agora respiras, vê, o espelho embaçou-se!
Vamos, eu já te levo, só a ti!”
E eu me fico aguardando que o espelho não minta para mim ou me diga: Não! Não é aqui Não!
Mega-Hiper-Beijo, SoaresFeitosa. Sonia A. Dias

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