Vozes novas para
velhos ventos, de Gérson Valle (Brasília: Thesaurus,
2007)1, é um livro que se assemelha ao último caso:
sem exceção, trata-se de contos inspirados em
obras-primas da literatura universal, sem fazer
paráfrase ou paródia do texto original. Se as
histórias de Valle não imitam nem tentam “melhorar”
a fonte de que se servem, é porque o autor, embora
se sentisse subjugado pelo alto valor da obra-prima
referenciada, soube trabalhar numa tônica muito
diferente, em que apenas o “miolo” foi conservado,
ou nem isso.
Para o leitor comum, e
mesmo para o escritor, contumaz ou não, os grandes
clássicos da literatura exercem uma atração profunda
e irresistível, sobretudo quando se trata de um
principiante das letras. Este vai se sentir
estimulado pela leitura de uma obra-prima, estímulo
que lhe serve de apoio e, muitas vezes, de material
a ser imitado ou emulado, de acordo com seu talento
e perspectivas. Se o primeiro é escasso e as
segundas ainda não lhe estão bem delineadas na
mente, o produto em geral será uma imitação servil
ou até assume contornos de plágio involuntário. Se
for dotado de maior talento e inventividade, poderá
escrever algo importante, que será lido com
interesse apesar das óbvias relações com a
obra-prima de referência. Existem casos em que o
autor parte deliberadamente de um texto para
construir outro, seja na tentativa de explicar
certos episódios, seja para concluir de maneira
diversa um desenlace que não lhe satisfaz – ou que
oferece uma solução diversa –, seja ainda para
retomar personagens ou até aspectos do texto
original e elaborar um texto inteiramente diferente.
No primeiro caso,
temos o romance A esfinge dos gelos, de Júlio Verne,
e o conto To the mountains of madness ('Nas
montanhas da loucura'), do norte-americano H. P.
Lovecraft, ambos tentando explicar episódios
estranhos ou deixados incompletos na Narrativa de
Arthur Gordon Pym, de Edgar Allan Poe. O segundo
caso pode ser explicitado por vários contos, em
geral de ficção policial, como os de Jack Moffitt,
que “refez” contos de Maupassant ('O colar de
brilhantes') e outros. O último caso é o do livro
Missa do galo: variações sobre o mesmo tema, em que
seis escritores brasileiros retomam personagens do
conto machadiano e produzem textos que pouco têm a
ver com a história que lhes serviu de fonte. Em
todos os casos, podemos ver que o escritor recria o
texto porém os personagens já não são exatamente os
mesmos ou quase não aparecem, como em Júlio Verne,
estando ausentes de todo em Lovecraft. A esposa
frívola do conto de Maupassant não se repete
exatamente na história de Moffitt, e os personagens
machadianos têm perfil psicológico variado nas
histórias dos outros escritores. São mais ou menos
como clones que o autor do texto aproveita para dar
uma aparência do personagem original, para sugerir
verossimilhança ao que está sendo narrado.
Vozes novas para
velhos ventos, de Gérson Valle (Brasília: Thesaurus,
2007)1, é um livro que se assemelha ao último caso:
sem exceção, trata-se de contos inspirados em
obras-primas da literatura universal, sem fazer
paráfrase ou paródia do texto original. Se as
histórias de Valle não imitam nem tentam “melhorar”
a fonte de que se servem, é porque o autor, embora
se sentisse subjugado pelo alto valor da obra-prima
referenciada, soube trabalhar numa tônica muito
diferente, em que apenas o “miolo” foi conservado,
ou nem isso. Acima de tudo, Valle fez questão de
manter o “espírito” do texto original; assim, as
obras-primas em que se baseou são unicamente pontos
de partida para a elaboração de um texto bastante
diverso, um texto inventivo, mais próprio à criação
de Gérson Valle, criação que às vezes surpreende nas
entrelinhas da elaboração de uma frase.
O primeiro dos dez
textos do livro – “Amor clonado” – aborda justamente
o problema da clonagem, tendo como referência o
conto “As ruínas circulares”, do argentino Jorge
Luis Borges. Assim como em Borges um homem deseja
criar um ser humano, simples aparência, por meio do
sonho, e afinal descobre que ele próprio era uma
aparência, que outra pessoa o estava sonhando, o Dr.
Pater Clonem, personagem de Gérson Valle, reproduz
uma aparência de mulher, o clone feminino Broda
Bruda Hermana y Hermana, por quem, qual novo
Pigmaleão, se apaixona. Mas não consegue que esse
clone corresponda ao seu amor, e sua frustração o
faz perceber a inanidade daquele amor pela criatura
que realizou, cuja ética, por sua vez, poderia
fazê-la desejar não somente o corpo, “que se copia e
reproduz, mas o impossível além de todos nós...”
Em “Bromélias enfiteutas”, a fonte de referência é o
romance Contraponto, de Aldous Huxley. A técnica de
Huxley consiste em justapor na narrativa dois ou
mais blocos de acontecimentos com certa
independência de desenvolvimento, mas sempre ligados
entre si. Gérson Valle se utiliza não propriamente
do contraponto huxleyano mas de uma espécie de
contínuo flash-back. no qual o economista Carlos
Carreira da Costa, negro e de origem humilde,
recorda o seu passado principalmente desde uma
ocasião em que estivera por algum tempo em
Petrópolis, de namoro com uma mocinha rica. O conto
põe em relevo, com alguma ironia, os prejuízos que o
tempo e a ocupação desenfreada das encostas causaram
na paisagem e no nível de vida da cidade imperial.
O terceiro texto,
“Missas de galo”, aproveita o mote do conto de
Machado para desenvolver uma história bastante
diversa. É o caso de um sujeito muito dedicado à
obra machadiana, e que vai a Parati a fim de
procurar conhecer pessoalmente o cineasta Nélson
Pereira dos Santos, que ali filmava Um azyllo muito
louco, baseado em 'O alienista', conto do livro
Papéis avulsos de Machado. E assim como na “Missa do
galo” de Machado, o adolescente Nogueira, ingênuo e
de boa-fé, perde canhestramente a oportunidade de
ouro “de comer uma balzaquiana” como a Conceição,
assim o narrador se perde e se atrapalha diante do
cineasta a quem admira e não realiza seu maior
desejo, além de mostrar-se inadaptado às condições
de vida que exigem mais determinação e força de
vontade.
Já o conto “Crimes sem
castigos”, a partir mesmo do título, tem como
referência o romance Crime e castigo de Dostoievski.
O romance do escritor russo se enquadra na questão
do “crime permitido”, ou seja, aquele que do ponto
de vista do criminoso seria perdoável, como, por
ex., a eutanásia. Assim, o protagonista da história
de Gérson Valle – um rapaz russo de nome (Raskolnikov)
americanizado significativamente para Nick Raskow,
que vive no exílio em Nova York – adora passear no
Central Park, onde se sente em casa, apaixona-se por
uma moça, Sonetchka (diminutivo de Sônia, como a
heroína de Dostoievski), que se prostitui para
sustentar o velho pai bêbado e imagina que matá-lo
seria um benefício. Percebe que não conseguiria
cometer o crime. Mas conhece duas velhinhas que só
fazem se lamentar da solidão na velhice e desejam
que a morte as visite. Raskow então resolve lhes
fazer a vontade. E passou a viver disso, poupando o
desgosto da velhice às pessoas idosas e solitárias,
encontrando naquele serviço a sua identificação com
o american way of life, numa sociedade onde só é
apreciado aquele que cumpre “um trabalho com
competência”, seja qual for... A visível ironia de
Valle, nem sempre exposta com nitidez, surge aqui em
todo o seu caráter subreptício de condenação.
O conto seguinte,
“Alguma coisa vai acontecer”, cujo texto inspirador
é o romance Doutor Fausto (1947), de Thomas Mann,
recupera a idéia de fazer um pacto com o demônio,
vendendo a alma em troca de prazeres ou benefícios
terrenos. A história de Mann deve provir da lenda de
um certo alemão Faust (1480? – 1540?), que teria
vendido a alma ao diabo, fato que, de certa maneira,
sintetiza as aspirações de dominação do homem
renascentista. A lenda se tornou grandemente
popular, tendo sido aproveitada por diversos
escritores, como Christopher Marlowe (1588) e
sobretudo Goethe, que lhe confere uma alta
significação filosófica e humana. O romance de Mann
foi escrito durante a II Guerra Mundial, e o doutor
Fausto é um compositor erudito, Adrian Leverkühn,
personagem que alcança grande força simbólica,
corporificando a soberania e a queda da Alemanha
inteira, à época em que a nação compactuava com as
forças demoníacas do nazismo.
O protagonista do
conto de Gérson Valle é um funcionário público que
conhece num dos bares da Cinelândia, no Rio de
Janeiro, um indivíduo manco, de cabelos de fogo, que
lhe faz promessas, “como se dissesse: Tome seus
chopinhos e eu lhe darei tudo que suas frustrações
não lhe têm permitido. Não tem dúvida que, durante a
noite, alguma coisa vai acontecer...” E assim,
durante anos, iludido no íntimo, o funcionário, que
nunca mais se encontrou com o sujeito manco, fica à
espera do que virá... De certo modo, Gérson Valle
está ironizando a credulidade do funcionalismo
público – e por extensão, do próprio povo – nas
promessas sempre postergadas dos políticos.
Quando a humanidade
pode se ver reduzida a simples números de registro e
identificação, seria o caso de organizar uma
insurreição geral, ainda mais que praticamente todos
os seus atos são vigiados por um ser superior que se
intitula Big Brother. Este é o caso do romance 1984,
de George Orwell, referência para o conto “027.135”,
de Gérson Valle. Sabemos que, na história de Orwell,
um homem se apaixona por uma mulher (secretamente,
pois o amor é proibido e as pessoas só podem ter
relações exclusivamente para procriar, quase como
animais) e ambos decidem enfrentar o poder do Big
Brother. Algo semelhante ocorre na história de
Valle, com algumas diferenças fundamentais. O homem,
aliás narrador do conto, é tratado pelo número que
dá título à história; possui um temperamento
bastante contemplativo e esse é o apelido que a moça
Barrolda lhe dá. Por sua vez, é Barrolda quem,
achando excessiva a intromissão dos dirigentes no
controle de suas vidas, sugere uma rebelião, que
afinal não se concretiza. Contemplativo se perde em
filosofias vagas, mostrando-se incapaz de passar da
reflexão à ação, como muita gente no nosso mundo.
O protagonista do
conto seguinte, “O fantasma de Hamlet”, é um certo
mineiro Joel Campos. Aqui, a história de Valle tem
como referencial a peça de Shakespeare, enfatizada
sob o aspecto da dúvida. Joel Campos desconfia da
eficácia da atual globalização, sobretudo quando
chega pela primeira vez a Londres, de avião – para
ele, como para muita gente, “todos os aeroportos se
parecem”.2 As decepções que sofre na capital
britânica, que julgara melhor do que parecia ser, e
suas dúvidas a respeito do personagem de
Shakespeare, cuja peça assistira então pela primeira
vez, acabam por fazer com que ele alugue um carro e
saia de qualquer jeito, na contramão, como para
libertar-se psicologicamente daquela globalização
castradora e impor seu modo de ser em todas as
circunstâncias.
Temos visto que os
textos aproveitados por Gérson Valle como referência
para seus contos são quase sempre, além de
obras-primas, histórias que destilam um tom
especial, seja no assunto ou na maneira de
desenvolvê-lo, seja na atração exercida sobre o
leitor – e aí Gérson Valle é um pouco de todos nós,
leitores. O mesmo ocorre com o romance O processo,
de Franz Kafka, que serve como ponto de partida para
o conto “O encontro”. O título já é estranho em si,
pois uma das características do escritor tcheco é o
“desencontro”, tanto dos protagonistas com os demais
personagens, quanto consigo mesmos. Mas o encontro
da história de Valle se refere a um encontro
verdadeiro com K., “um ser tão comum!” exclama o
narrador. Esse encontro, todavia, é de fato um
tête-à-tête incompleto, pois K tanto pode ser o
autor Kafka como um de seus muitos personagens
chamados apenas por essa inicial, ou que a
transportam no nome. De qualquer modo, o narrador
tenta discutir com esse K todas as dúvidas e
perplexidades que a leitura de Kafka lhe provoca.
Mas em vão. K não aceita discutir, pois o enorme
sentimento de culpa que carrega consigo impede que
seu retrato se faça completo aos olhos e à palavra
do narrador.
Mas é necessário que o
leitor de Valle atente para o que escrevi no começo
a propósito das entrelinhas da elaboração de uma
frase. “O encontro” principia com a seguinte frase:
“Na frente da catedral, encontrei K.” Nada de mais?
Vejamos: “na frente” pode significar, “no princípio
de”; catedral começa com ca, ou seja, o fonema k.
Assim temos: “no começo da catedral achei o fonema
k.” Dirão que é irrelevante, e eu concordaria se em
Kafka e na história de Valle a catedral não tivesse
nenhum destaque. Mas não é o caso, pois qualquer
leitor de Kafka sabe como é importante a letra (o
fonema) K em sua obra. Valle, portanto, de modo
subreptício, concede pistas para a leitura de seus
textos.
O conto final não tem
como referência uma obra literária, mas um conjunto
de textos musicais. “24 prelúdios” tem como origem o
conjunto das 24 peças com esse nome de Chopin,
obra-prima do Romantismo pós-beethoveniano. Aqui,
Valle cede ao seu lado de profundo conhecedor de
música, não só como teórico mas libretista de óperas
(como Olga, de Jorge Antunes, e Fronteira, de
Guilherme Bauer, baseada no romance de Cornélio
Pena), e que possui diversos textos poéticos
musicados por Ernani Aguiar, Ricardo Tacuchian e
muitos outros. Sua história narra, em 24 parágrafos,
a vida de um certo Frederico, exímio no violão. O
texto acompanha, até certo ponto, a vida e os amores
do próprio Chopin, pois entre outras coisas conhece
uma moça Aurora, que também se faz chamar Jorge,3
com quem vive um romance cheio de altos e baixos,
exatamente como Chopin. A história, como na
realidade que conhecemos, se resolve num rompimento
entre os dois. E assim se encerra o livro de Gérson
Valle, que, por sua originalidade e desenvolvimento,
é um dos melhores lançamentos deste ano.
_
Notas
1. Prêmio Nacional da
ANE (Associação Nacional de Escritores, de Brasília)
no ano de 2006.
2. Adaptação da frase
de Georges Bernanos no começo do romance Journal d'un
curé de campagne: “Toutes les paroisses se
ressemblent” ('Todas as paróquias se assemelham”.)
3. Aurora: prenome da escritora francesa Aurore
Dupin, baronesa Dudevant (1804-1976); Jorge, nome
pelo qual era mais conhecida como escritora (George
Sand). Teve uma relação amorosa e prolongada com
Chopin.
Fernando Py é
poeta, escritor e tradutor, membro da Academia
Brasileira de Poesia e da Academia Petropolitana de
Letras.
Link para Fernando Py