Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

The Gates of Dawn, Herbert Draper, UK, 1863-1920

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Lurdidinha Leite Barbosa

 

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

6.11.2005

 


 

 

A narrativa de Pedro Salgueiro

 

 

Os fatos se organizam num enredo de estrutura simples obedecendo à ordem lógica de causa e conseqüência. Do mesmo modo que ocorreu com a protagonista de ´Fotografia´, a personagem viaja com o amado, volta sozinha depois de dois dias, enclausura-se em um quarto nos fundos da casa e cala-se para sempre. De acordo com o narrador, o motivo da ruptura jamais será revelado. As lacunas existentes neste conto são menores e dizem respeito somente aos dois dias de duração do casamento, cujo fracasso o narrador já havia antecipado para o leitor (não só pela maneira como se conheceram, por meio de um anúncio em revista de novela, mas também por suas vivências opostas: ele, no mar a maior parte dos dias e ela, numa cidadezinha perdida no interior).

Olhos de Cão e Rasga-Mortalha são contos que seguem a mesma técnica narrativa das lacunas e dos hiatos. Nos dois casos um narrador externo sabe menos que as personagens. Em Olhos de Cão, o acontecimento se dilui e o espaço cede lugar a uma atmosfera onírica e alucinante. Composto de um só parágrafo compacto, inicia-se com a descrição de uma cena captada por uma câmera pequena e escura (o narrador parece encontrar-se num plano superior ou por trás da câmera) que descontrolada rasteja pelas coxias, sobe muros, telhados e focaliza pessoas que saem assustadas de becos escuros. Pode-se dizer que duas cenas compõem a narrativa: uma noturna, em que pessoas sorrateiras tiram velhos papéis dos bolsos e os pregam em paredes de casarões em ruínas e outra diurna (´... afugentadas pelos primeiros raios de um sol laranja e orvalhado´), na qual uma pequena multidão se forma em torno dos papéis disputando-os a cotoveladas (´e as pessoas voltavam a ter sombras´). Para dar uma maior ilusão de realidade, o autor situa o acontecimento num espaço real: as ruas do Benfica, espaço freqüentado pelo cineasta (já falecido) Eusélio de Oliveira a quem o conto é oferecido.

Logo de início, o leitor de Rasga-Mortalha percebe que tempo, personagens e objetos não se encaixam:

Sempre no início da madrugada, se observava o estacionar de carros: seus passageiros, impecavelmente vestidos, traziam consigo estranhos objetos. (p. 25)

E o estranhamento cresce, à proporção que ele toma conhecimento dos objetos: um antigo arado enferrujado e sujo de barro, um pássaro enorme que tinha os pés metidos num saco de plástico e o bico amarrado com tiras de pano. A casa também lembra os cenários das histórias fantásticas de Théophile Gautier, nas quais o antigo e decrépito propiciam a ocorrência do inexplicável:

A casa desabitada fazia muitos anos preservava em seus jardins galhos secos e retorcidos sobre os muros. Na cumeeira, um ninho de rasga mortalha, de quando em vez um rufar de asas saindo pela clarabóia. (25)

Para completar o clima de mistério, existe uma figura sinistra: um homem alto, de cabelos grisalhos, barba rala e olhar profético. Está tudo preparado, mas falta o fenômeno insólito e a narrativa termina sem que o narrador descubra o que acontece dentro da casa.

Por tudo que foi exposto, podem-se considerar esses contos como narrativas de mistério.
 


II - Dos contos fantásticos

O primeiro conto fantástico dessa primeira divisão é ´Invasão´, que tem, como a maioria dos contos de mistério e fantásticos do livro, um narrador de primeira pessoa, o mais indicado, segundo Todorov, para a construção do gênero fantástico.

Tendo como espaço uma cidade grande, com suas ruas iluminadas e seus altos edifícios, o ambiente não sugere qualquer acontecimento sinistro, embora seja madrugada, por isso o personagem narrador caminha tranqüilamente, pensando nas coisas que, de tão conhecidas, não são realmente notadas. Tomado por esses pensamentos ele pára em frente a seu edifício e observa-o demoradamente. De repente, vê passar por sua janela aberta ama silhueta magra, fica intrigado com aquela presença em sua sala de visitas e senta-se no meio fio para pensar. Nisso percebe que as coisas familiares estão diferentes: a cor do prédio em frente; na esquina, ao invés da farmácia, há uma floricultura. Essas mudanças o deixam inseguro e perplexo.

O conto nos leva a refletir sobre a incerteza do real, sobre a veracidade do que vemos. Ou como afirma Barine (Arvède Barine - Poetes et névrosés, Paris: Hachette, 1908) ´Quando a ciência nos ensina que uma ligeira alteração de nossa retina faria o mundo para sempre descolorido, ela sugere a todos o pensamento de que o mundo real poderia bem não ser senão uma aparência, como já os filósofos o sabiam´.

´A Passagem do Dragão´, baseado em acontecimento real - a comprovação da Teoria da Relatividade Geral, de Albert Einstein, por pouco não se tornou apenas um exemplo do fantástico-estranho. Logo no primeiro parágrafo, o narrador introduz o fenômeno insólito: o horror vivido pelos habitantes de um povoado, quando, em plena tarde, o sol tornou-se pálido e desapareceu de vez e, durante a escuridão, ouviu-se um forte bater de asas atravessando o vilarejo. Domina todo o texto um sentimento de estranheza, principalmente pela presença de três grupos de forasteiros, que chegaram ao lugar uma semana antes do acontecimento, trazendo enormes caixas, das quais foram retiradas estranhas máquinas que apontavam para o céu.

O conto termina com os estrangeiros comemorando e tentando explicar ao povo o acontecido. Essa explicação do fato insólito caracteriza o estranho, mas a incerteza é reintroduzida pelo comentário do narrador: ´... porém não souberam explicar de onde surgiu e para onde foi o imenso pássaro que sobrevoou a vila na escuridão´.

Como o discurso pode desvanecer o fantástico a qualquer momento, Salgueiro, ao colocar a nota de roda pé explicando a origem do conto, pôs em risco o gênero.

Brincar com Armas, conto que dá título a uma outra obra de Salgueiro, também é um fantástico atenuado, quase um estranho, porque o narrador, após o fim da narrativa, acrescenta um P.S. explicando por que a arma estava carregada. Um leitor menos atento, não leva em conta a retificação, entre parênteses, de que o morto levara dois tiros no pescoço, quando a arma só havia disparado uma vez.

´A festa´ é a variação de uma história bastante conhecida: o narrador usa a primeira pessoa do plural nós, para contar como ele e sua companheira, durante uma viagem tiveram que ficar para o réveillon e, durante a festa, observaram algumas pessoas, que destoava das demais, tinham caras tristes e usavam roupas fora de moda, pareciam penetras. Ao perceberem que eram observadas por eles, foram desaparecendo. No dia seguinte, a dona da casa mostrou-lhe um velho álbum de fotografias de seus antepassados mortos e, para surpresa do casal, lá estavam todas aquelas pessoas estranhas, vestidas exatamente como estavam na festa.

Em Acontecimento, o narrador encontra-se dentro de um ônibus, numa cidade movimentada e quente. É nesse espaço do cotidiano que vai emergir o sobrenatural. Ele levanta a cabeça para desatar o nó da gravata e, apesar do sol forte ofuscar-lhe a visão, vê algo que o deixa tão aflito, que ele chega a perder a voz: ´Um nó na garganta me impediu de gritar´. A personagem reage, tenta se comunicar com os vizinhos que se mantêm indiferentes. Utilizando o referido recurso da insuficiência de informação, o narrador não confessa o que viu, como se tivesse medo de nomear o extranatural. Diante da indiferença dos demais, o narrador hesita, já não tem certeza do que viu: ´... e agora eu duvidava de tudo: do ônibus que parecia irreal, das pessoas que deviam ter saído de um sonho, desse calor infernal e daquele prenúncio de tudo o que estava para acontecer´. A personagem tenta fugir através do sono, mas quando desperta vê que nada mudou: a senhora gorda está se desmanchando, outros passageiros tornando-se avermelhados e ele vê subir de seus próprios ombros uma fumaça preta. Diante do impacto da estranha realidade, o narrador entrega-se às forças do sobrenatural. Como vemos, o narrador nega informações essenciais ao leitor, mas o acontecimento insólito deixa conseqüências.
 


III - Dos contos realistas

Dos dezessete contos desta primeira divisão, apenas seis são realistas: ´Procissão´, ´No Carnaval´, ´Esquecimento´, ´Asas ao Vento´, ´Todo Domingo às Três ou Balada de Consolo para Altino do Tojal´ e ´Pânico´. Também são realistas quase todos os contos da última divisão, ´Soluço Antigo´, com exceção de ´A rua do cemitério´, cujo humor dissipa o fantástico, pois a razão não permite que o gênero sobreviva, mas restam alguns resquícios de incerteza, e ´Jeremias ou o Vampiro da Rua das Flores´, em que o narrador, ao longo do conto nega e confirma os fatos a respeito da personagem, deixando o leitor confuso; no final, entretanto, ele jura ter escutado choro de crianças ou latido de cães e a dúvida volta a rondar o leitor.

Nos contos realistas, os acontecimentos se organizam numa ordem lógica de causa e conseqüência, sem grandes rupturas, no máximo uma volta ao passado, e estão vazados, quase sempre, numa linguagem padrão ou coloquial, com alguns regionalismos: alpercata de rabicho, caviloso, lamparina, boquinha da noite, a caneca de alumínio no beiço do pote.

Na última divisão, predominam os temas relacionados à velhice, como a solidão, a senilidade, a ambição familiar, o desamor, a morte. Vale ressaltar a capacidade de concisão conseguida pelo autor em ´Soluço Antigo´, o conto que denomina a divisão. O narrador, nas três primeiras linhas, cria uma atmosfera fantástica que subverte o real, e nas duas seguintes, ao transcrever a fala da empregada, desfaz a natureza insólita do acontecimento e traz o leitor de volta à realidade que o circunda.

IV - Da recorrência de temas, motivos e elementos narrativos.

Pode-se afirmar que a intratextualidade é uma das características marcantes do texto de Salgueiro, seus contos mantêm uma constante relação dialógica entre si, seja em relação ao tema, seja em relação ao espaço, ou mesmo à atitude de um personagem, o certo é que temos a impressão de já ter lido aquela passagem. Para exemplificar essa recorrência nos valeremos de contos da segunda e da terceira divisão da obra.

A maioria das narrativas tem como espaço cidades do interior, com sua igreja, sua estação, sua bandinha, sua gente simples que costuma sentar embaixo de árvores depois do almoço e na calçada à noitinha.

O conto fantástico ´O Jogo de damas´ apresenta um costume muito comum entre pessoas que vivem em pequenas cidades, que não oferecem muita diversão: jogar damas. Por ser um jogo popular que pode ser realizado em espaços abertos ou fechados e que não exige esforço físico, esse tipo de entretenimento, assim como o gamão, tem a preferência das pessoas mais idosas. Aliás, Salgueiro demonstra grande interesse por essa faixa etária que é o leitmotiv da terceira divisão do livro. Em várias passagens o jogo de damas está presente, exemplo disso são os contos ´Ausência´ (´O tabuleiro de damas continua empoeirado em cima da mesinha de cabeceira´) e ´Em Família´ (´Há anos deixou de jogar damas e já nem se lembrava mais das infindáveis partidas que ajudavam a vencer a quentura da tarde´).

O trem e a estação também são motivos recorrentes, talvez por ser o meio de transporte mais utilizado na época em que se passam as histórias. O certo é que há sempre um personagem descendo de um trem, como em ´A Viagem´ que se inicia com a seguinte frase: ´Dom Eugênio descia do trem, pequena mala de viagem à mão e caminhava devagarinho pela rua empoeirada´. Em ´Elefante´ quem chega à cidadezinha é Gumercindo Freire: ´Desde que avistou os primeiros telhados pela janela do trem, sentia-se perdido (...)´. Estes dois contos têm como tema o retorno à cidade natal e há trechos em que julgamos tratar-se da mesma cidade. ´Madrugada´ repete o motivo do trem (´Nesses dias eu escuto, com o ouvido colado à parede, o barulho do trem chegando ao povoado´) e descreve a mesma paisagem desolada já descrita em ´A Viagem´, comparemos: ´Aproximou-se da estação, o capim cobrindo tudo´ (p.48) e ´A estação vazia, o capim cobrindo a plataforma´ (p.62).

Não se pode esquecer a predileção do autor por narrativas que tratam de crimes, principalmente crimes que têm por motivo a vingança: ´O olhar´, ´A longa espera´, ´Elefante´, ´Procissão´, ´Pânico´.

Dois contos, ´Pânico´ e ´A Rosa Encarnada´, mantêm um intenso diálogo entre si e levam o leitor, intrigado e seduzido, a uma releitura. Neles Salgueiro mostra, através de sua excelente técnica narrativa, como transformar um conto fantástico em um conto estranho.

Dos valores do inimigo oferece inúmeras possibilidades de leitura, esta é apenas uma delas, espera-se que outras venham contribuir para a compreensão da obra de Pedro Salgueiro.

 

Lourdinha Leite Barbosa
Ficcionista, poetisa e ensaísta

Bibliografia

BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1989.
FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 1985.
LEITE BARBOSA, Maria de Lourdes D. A estranha máquina extraviada: uma escrita surpreendente. In: VestLetras: obras comentadas. Jornal O Povo, encarte. Fortaleza: Ed. Fundação Demócrito Rocha.
SAMPAIO, Aíla. Tradição e Modernidade nos contos fantásticos de Lygia Fagundes Telles. Fortaleza: Dissertação de Mestrado da UFC, texto datilografado, 1996.
TACCA, Oscar. As vozes do romance. Coimbra: Livraria Almedina, 1983.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.

                                       


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