Os fatos se organizam num
enredo de estrutura simples obedecendo à ordem lógica de
causa e conseqüência. Do mesmo modo que ocorreu com a
protagonista de ´Fotografia´, a personagem viaja com o
amado, volta sozinha depois de dois dias, enclausura-se
em um quarto nos fundos da casa e cala-se para sempre.
De acordo com o narrador, o motivo da ruptura jamais
será revelado. As lacunas existentes neste conto são
menores e dizem respeito somente aos dois dias de
duração do casamento, cujo fracasso o narrador já havia
antecipado para o leitor (não só pela maneira como se
conheceram, por meio de um anúncio em revista de novela,
mas também por suas vivências opostas: ele, no mar a
maior parte dos dias e ela, numa cidadezinha perdida no
interior).
Olhos de Cão e Rasga-Mortalha são contos que seguem a
mesma técnica narrativa das lacunas e dos hiatos. Nos
dois casos um narrador externo sabe menos que as
personagens. Em Olhos de Cão, o acontecimento se dilui e
o espaço cede lugar a uma atmosfera onírica e
alucinante. Composto de um só parágrafo compacto,
inicia-se com a descrição de uma cena captada por uma
câmera pequena e escura (o narrador parece encontrar-se
num plano superior ou por trás da câmera) que
descontrolada rasteja pelas coxias, sobe muros, telhados
e focaliza pessoas que saem assustadas de becos escuros.
Pode-se dizer que duas cenas compõem a narrativa: uma
noturna, em que pessoas sorrateiras tiram velhos papéis
dos bolsos e os pregam em paredes de casarões em ruínas
e outra diurna (´... afugentadas pelos primeiros raios
de um sol laranja e orvalhado´), na qual uma pequena
multidão se forma em torno dos papéis disputando-os a
cotoveladas (´e as pessoas voltavam a ter sombras´).
Para dar uma maior ilusão de realidade, o autor situa o
acontecimento num espaço real: as ruas do Benfica,
espaço freqüentado pelo cineasta (já falecido) Eusélio
de Oliveira a quem o conto é oferecido.
Logo de início, o leitor de Rasga-Mortalha percebe que
tempo, personagens e objetos não se encaixam:
Sempre no início da madrugada, se observava o estacionar
de carros: seus passageiros, impecavelmente vestidos,
traziam consigo estranhos objetos. (p. 25)
E o estranhamento cresce, à proporção que ele toma
conhecimento dos objetos: um antigo arado enferrujado e
sujo de barro, um pássaro enorme que tinha os pés
metidos num saco de plástico e o bico amarrado com tiras
de pano. A casa também lembra os cenários das histórias
fantásticas de Théophile Gautier, nas quais o antigo e
decrépito propiciam a ocorrência do inexplicável:
A casa desabitada fazia muitos anos preservava em seus
jardins galhos secos e retorcidos sobre os muros. Na
cumeeira, um ninho de rasga mortalha, de quando em vez
um rufar de asas saindo pela clarabóia. (25)
Para completar o clima de mistério, existe uma figura
sinistra: um homem alto, de cabelos grisalhos, barba
rala e olhar profético. Está tudo preparado, mas falta o
fenômeno insólito e a narrativa termina sem que o
narrador descubra o que acontece dentro da casa.
Por tudo que foi exposto, podem-se considerar esses
contos como narrativas de mistério.
II - Dos contos fantásticos
O primeiro conto fantástico dessa primeira divisão é
´Invasão´, que tem, como a maioria dos contos de
mistério e fantásticos do livro, um narrador de primeira
pessoa, o mais indicado, segundo Todorov, para a
construção do gênero fantástico.
Tendo como espaço uma cidade grande, com suas ruas
iluminadas e seus altos edifícios, o ambiente não sugere
qualquer acontecimento sinistro, embora seja madrugada,
por isso o personagem narrador caminha tranqüilamente,
pensando nas coisas que, de tão conhecidas, não são
realmente notadas. Tomado por esses pensamentos ele pára
em frente a seu edifício e observa-o demoradamente. De
repente, vê passar por sua janela aberta ama silhueta
magra, fica intrigado com aquela presença em sua sala de
visitas e senta-se no meio fio para pensar. Nisso
percebe que as coisas familiares estão diferentes: a cor
do prédio em frente; na esquina, ao invés da farmácia,
há uma floricultura. Essas mudanças o deixam inseguro e
perplexo.
O conto nos leva a refletir sobre a incerteza do real,
sobre a veracidade do que vemos. Ou como afirma Barine (Arvède
Barine - Poetes et névrosés, Paris: Hachette, 1908)
´Quando a ciência nos ensina que uma ligeira alteração
de nossa retina faria o mundo para sempre descolorido,
ela sugere a todos o pensamento de que o mundo real
poderia bem não ser senão uma aparência, como já os
filósofos o sabiam´.
´A Passagem do Dragão´, baseado em acontecimento real -
a comprovação da Teoria da Relatividade Geral, de Albert
Einstein, por pouco não se tornou apenas um exemplo do
fantástico-estranho. Logo no primeiro parágrafo, o
narrador introduz o fenômeno insólito: o horror vivido
pelos habitantes de um povoado, quando, em plena tarde,
o sol tornou-se pálido e desapareceu de vez e, durante a
escuridão, ouviu-se um forte bater de asas atravessando
o vilarejo. Domina todo o texto um sentimento de
estranheza, principalmente pela presença de três grupos
de forasteiros, que chegaram ao lugar uma semana antes
do acontecimento, trazendo enormes caixas, das quais
foram retiradas estranhas máquinas que apontavam para o
céu.
O conto termina com os estrangeiros comemorando e
tentando explicar ao povo o acontecido. Essa explicação
do fato insólito caracteriza o estranho, mas a incerteza
é reintroduzida pelo comentário do narrador: ´... porém
não souberam explicar de onde surgiu e para onde foi o
imenso pássaro que sobrevoou a vila na escuridão´.
Como o discurso pode desvanecer o fantástico a qualquer
momento, Salgueiro, ao colocar a nota de roda pé
explicando a origem do conto, pôs em risco o gênero.
Brincar com Armas, conto que dá título a uma outra obra
de Salgueiro, também é um fantástico atenuado, quase um
estranho, porque o narrador, após o fim da narrativa,
acrescenta um P.S. explicando por que a arma estava
carregada. Um leitor menos atento, não leva em conta a
retificação, entre parênteses, de que o morto levara
dois tiros no pescoço, quando a arma só havia disparado
uma vez.
´A festa´ é a variação de uma história bastante
conhecida: o narrador usa a primeira pessoa do plural
nós, para contar como ele e sua companheira, durante uma
viagem tiveram que ficar para o réveillon e, durante a
festa, observaram algumas pessoas, que destoava das
demais, tinham caras tristes e usavam roupas fora de
moda, pareciam penetras. Ao perceberem que eram
observadas por eles, foram desaparecendo. No dia
seguinte, a dona da casa mostrou-lhe um velho álbum de
fotografias de seus antepassados mortos e, para surpresa
do casal, lá estavam todas aquelas pessoas estranhas,
vestidas exatamente como estavam na festa.
Em Acontecimento, o narrador encontra-se dentro de um
ônibus, numa cidade movimentada e quente. É nesse espaço
do cotidiano que vai emergir o sobrenatural. Ele levanta
a cabeça para desatar o nó da gravata e, apesar do sol
forte ofuscar-lhe a visão, vê algo que o deixa tão
aflito, que ele chega a perder a voz: ´Um nó na garganta
me impediu de gritar´. A personagem reage, tenta se
comunicar com os vizinhos que se mantêm indiferentes.
Utilizando o referido recurso da insuficiência de
informação, o narrador não confessa o que viu, como se
tivesse medo de nomear o extranatural. Diante da
indiferença dos demais, o narrador hesita, já não tem
certeza do que viu: ´... e agora eu duvidava de tudo: do
ônibus que parecia irreal, das pessoas que deviam ter
saído de um sonho, desse calor infernal e daquele
prenúncio de tudo o que estava para acontecer´. A
personagem tenta fugir através do sono, mas quando
desperta vê que nada mudou: a senhora gorda está se
desmanchando, outros passageiros tornando-se
avermelhados e ele vê subir de seus próprios ombros uma
fumaça preta. Diante do impacto da estranha realidade, o
narrador entrega-se às forças do sobrenatural. Como
vemos, o narrador nega informações essenciais ao leitor,
mas o acontecimento insólito deixa conseqüências.
III - Dos contos realistas
Dos dezessete contos desta primeira divisão, apenas seis
são realistas: ´Procissão´, ´No Carnaval´,
´Esquecimento´, ´Asas ao Vento´, ´Todo Domingo às Três
ou Balada de Consolo para Altino do Tojal´ e ´Pânico´.
Também são realistas quase todos os contos da última
divisão, ´Soluço Antigo´, com exceção de ´A rua do
cemitério´, cujo humor dissipa o fantástico, pois a
razão não permite que o gênero sobreviva, mas restam
alguns resquícios de incerteza, e ´Jeremias ou o Vampiro
da Rua das Flores´, em que o narrador, ao longo do conto
nega e confirma os fatos a respeito da personagem,
deixando o leitor confuso; no final, entretanto, ele
jura ter escutado choro de crianças ou latido de cães e
a dúvida volta a rondar o leitor.
Nos contos realistas, os acontecimentos se organizam
numa ordem lógica de causa e conseqüência, sem grandes
rupturas, no máximo uma volta ao passado, e estão
vazados, quase sempre, numa linguagem padrão ou
coloquial, com alguns regionalismos: alpercata de
rabicho, caviloso, lamparina, boquinha da noite, a
caneca de alumínio no beiço do pote.
Na última divisão, predominam os temas relacionados à
velhice, como a solidão, a senilidade, a ambição
familiar, o desamor, a morte. Vale ressaltar a
capacidade de concisão conseguida pelo autor em ´Soluço
Antigo´, o conto que denomina a divisão. O narrador, nas
três primeiras linhas, cria uma atmosfera fantástica que
subverte o real, e nas duas seguintes, ao transcrever a
fala da empregada, desfaz a natureza insólita do
acontecimento e traz o leitor de volta à realidade que o
circunda.
IV - Da recorrência de temas, motivos e elementos
narrativos.
Pode-se afirmar que a intratextualidade é uma das
características marcantes do texto de Salgueiro, seus
contos mantêm uma constante relação dialógica entre si,
seja em relação ao tema, seja em relação ao espaço, ou
mesmo à atitude de um personagem, o certo é que temos a
impressão de já ter lido aquela passagem. Para
exemplificar essa recorrência nos valeremos de contos da
segunda e da terceira divisão da obra.
A maioria das narrativas tem como espaço cidades do
interior, com sua igreja, sua estação, sua bandinha, sua
gente simples que costuma sentar embaixo de árvores
depois do almoço e na calçada à noitinha.
O conto fantástico ´O Jogo de damas´ apresenta um
costume muito comum entre pessoas que vivem em pequenas
cidades, que não oferecem muita diversão: jogar damas.
Por ser um jogo popular que pode ser realizado em
espaços abertos ou fechados e que não exige esforço
físico, esse tipo de entretenimento, assim como o gamão,
tem a preferência das pessoas mais idosas. Aliás,
Salgueiro demonstra grande interesse por essa faixa
etária que é o leitmotiv da terceira divisão do livro.
Em várias passagens o jogo de damas está presente,
exemplo disso são os contos ´Ausência´ (´O tabuleiro de
damas continua empoeirado em cima da mesinha de
cabeceira´) e ´Em Família´ (´Há anos deixou de jogar
damas e já nem se lembrava mais das infindáveis partidas
que ajudavam a vencer a quentura da tarde´).
O trem e a estação também são motivos recorrentes,
talvez por ser o meio de transporte mais utilizado na
época em que se passam as histórias. O certo é que há
sempre um personagem descendo de um trem, como em ´A
Viagem´ que se inicia com a seguinte frase: ´Dom Eugênio
descia do trem, pequena mala de viagem à mão e caminhava
devagarinho pela rua empoeirada´. Em ´Elefante´ quem
chega à cidadezinha é Gumercindo Freire: ´Desde que
avistou os primeiros telhados pela janela do trem,
sentia-se perdido (...)´. Estes dois contos têm como
tema o retorno à cidade natal e há trechos em que
julgamos tratar-se da mesma cidade. ´Madrugada´ repete o
motivo do trem (´Nesses dias eu escuto, com o ouvido
colado à parede, o barulho do trem chegando ao povoado´)
e descreve a mesma paisagem desolada já descrita em ´A
Viagem´, comparemos: ´Aproximou-se da estação, o capim
cobrindo tudo´ (p.48) e ´A estação vazia, o capim
cobrindo a plataforma´ (p.62).
Não se pode esquecer a predileção do autor por
narrativas que tratam de crimes, principalmente crimes
que têm por motivo a vingança: ´O olhar´, ´A longa
espera´, ´Elefante´, ´Procissão´, ´Pânico´.
Dois contos, ´Pânico´ e ´A Rosa Encarnada´, mantêm um
intenso diálogo entre si e levam o leitor, intrigado e
seduzido, a uma releitura. Neles Salgueiro mostra,
através de sua excelente técnica narrativa, como
transformar um conto fantástico em um conto estranho.
Dos valores do inimigo oferece inúmeras possibilidades
de leitura, esta é apenas uma delas, espera-se que
outras venham contribuir para a compreensão da obra de
Pedro Salgueiro.
Lourdinha Leite Barbosa
Ficcionista, poetisa e ensaísta
Bibliografia
BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São
Paulo: Cultrix, 1989.
FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na
narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo:
Ática, 1985.
LEITE BARBOSA, Maria de Lourdes D. A estranha máquina
extraviada: uma escrita surpreendente. In: VestLetras:
obras comentadas. Jornal O Povo, encarte. Fortaleza: Ed.
Fundação Demócrito Rocha.
SAMPAIO, Aíla. Tradição e Modernidade nos contos
fantásticos de Lygia Fagundes Telles. Fortaleza:
Dissertação de Mestrado da UFC, texto datilografado,
1996.
TACCA, Oscar. As vozes do romance. Coimbra: Livraria
Almedina, 1983.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica.
São Paulo: Perspectiva, 1992.